O Estado de Goiás e a cultura LGBTQIA+ sempre foram dois ingredientes fundamentais no cinema de Daniel Nolasco. Originário de Catalão, o diretor reside no Rio de Janeiro, mas continua associando suas histórias ao local de origem. Entre pesquisa universitária e obras audiovisuais, tornou-se especialista na estética erótica, fetichista e BDSM.
Vento Seco (2020) combina estes elementos. Na trama, durante o período da seca em Catalão, o tímido Sandro (Leandro Faria Lelo) relaciona-se com alguns homens da região, entre colegas de trabalho e figuras do meio dominador e leather. Acompanhando a rotina do personagem, o projeto apresenta o mundo pela perspectiva gay e fetichista. O filme conquistou grande sucesso de público no Festival de Berlim 2020, e chega ao público brasileiro por meio da edição online do Festival Mix Brasil. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:
Por que queria situar o filme em Goiás? Que importância a região tem no seu cinema?
Essa importância vem muito da minha experiência de vida. Nasci em Catalão, cresci lá e fiquei até me mudar para o Rio de Janeiro, onde fiz faculdade de cinema. Percebi uma diferença de vivências muito grande entre as duas cidades, e também me dei conta de como Catalão era importante para mim, incluindo aspectos que eu nem tinha notado antes. A decisão de voltar a Goiás para fazer os filmes vem desta percepção de que a região condicionou a minha formação. O primeiro filme que fiz lá foi Febre da Madeira (2015), com um motivo muito particular: o represamento na região onde nasci. Foi um processo difícil para os parentes que moravam lá. Mesmo assim, gostei muito da experiência de voltar para Goiás, e a vontade reaparecia à medida que fazia novas obras.
O conservadorismo em Goiás é maior do que no Rio de Janeiro quanto à homossexualidade?
Quando me mudei para o Rio, fiquei incomodado com as pessoas pensando que Catalão era ultraconservadora. Claro, é uma cidade conservadora, mas Catalão não se limita a isso. Existem muitas outras vivências ali, e as pessoas que não conhecem nem Catalão, nem Goiás, não têm essa perspectiva. O Rio de Janeiro também é uma cidade conservadora: nosso prefeito é um pastor evangélico, por exemplo. Essa dicotomia também ocorre em Catalão, mas de forma diferente.
Vento Seco é um filme fetichista?
Totalmente. O filme adota a subjetividade do personagem principal, o Sandro. Ele apresenta a maneira como este homem fetichista enxerga o mundo, e isso perpassa todas as escolhas estéticas do Vento Seco: a forma de filmar os corpos, os figurinos, as escolhas de cor. A gente queria transmitir o desejo erótico dos personagens pela estética. Por isso, faz sentido falar num filme fetichista.
O termo Cinema LGBT faz sentido para você?
Sim. Muitas pessoas que trabalham com cinema recusam essa classificação, como se o fato de classificar significasse uma limitação para esse cinema. Para mim, só seria limitador se eu pensasse que ser LGBT e ser queer é algo depreciativo. Muito pelo contrário. Meus filmes são gays e se enquadram dentro do conceito de cinema LGBT. Não acredito que eles sejam menores por isso. O questionamento sobre o termo reflete o assimilacionismo da nossa sociedade: pensamos que nós não somos diferentes, somos iguais a todos os outros. Mas existe a homofobia e o preconceito estrutural. Como podemos falar que somos igualmente livres dentro deste contexto? Algumas pessoas que trabalham com cinema consideram um elogio dizer que “o filme é tão bom que vai além do cinema LGBT”. Como assim? Estas pessoas estão sugerindo que ser queer, ser LGBT é algo menor. Este discurso é reproduzido sem pensar o que existe por trás.
Como vê o papel tanto de festivais amplos, como Berlim, quanto de festivais LGBT?
Os festivais de cinema sempre desempenharam um papel fundamental para o cinema de arte de modo geral. A discussão e a visibilidade nesses festivais são bem importantes para os caminhos de distribuição. No caso de alguns filmes, este é o único circuito oficial para chegar ao público. Com relação aos festivais LGBT, ainda existe a importância da divulgação das obras dentro da comunidade LGBT – podemos pensar na relevância do Mix Brasil, neste sentido, estabelecendo a comunicação entre as obras e essa comunidade específica.
Como definiu a estética entre o realismo e o sonho?
Meu trabalho com estéticas fetichistas vem desde os meus curtas-metragens e as pesquisas na faculdade. Começou com um trabalho sobre cinema o cinema underground norte-americano, como John Waters, e isso levou às estéticas fetichistas, até chegar ao BDSM e ao Leather, uma parte da comunidade muito voltada à iconografia gay erótica masculina. Em Vento Seco, temos um protagonista calado, mas cheio de desejos. Conversei bastante com o Larry Machado, diretor de fotografia, e a Carol Breviglieri, diretora de arte, sobre como trazer ao universo imagético todos os sentimentos que o personagem tinha. Trabalhamos com as referências de uma pornografia vintage, da década de 1960 e 1970 norte-americana, além da estética neon ligada ao cinema entre 1970 e 1980. Existem representações bem fortes do neon no cinema brasileiro, a exemplo de Anjos da Noite (1987). A gente mergulhou no universo erótico fetichista. Quando você trabalha com essas estéticas, existem referências incontornáveis: para o Leather, tem o Tom of Finland, para o cinema fetichista, tem Fassbinder e Jean Genet. Vento Seco queria assumir os excessos, o tom carregado. Temos um diálogo direto com a pornografia e o melodrama, dois gêneros de excessos.
O audiovisual queer brasileiro voltou a se apropriar do neon em Tinta Bruta, Boca a Boca…
O neon é muito presente dentro da cultura pop LGBT. Muitos clipes de cantoras pop utilizam o neon: você pode pensar, por exemplo, na apresentação da Miley Cyrus no VMA, com Midnight Sky, toda baseada no vermelho e no azul neon. São cores que nós também utilizamos muito. A cultura LGBT é marcada pela apropriação e pela colagem de referências pop. A gente pode interpretar como um caminho natural destes últimos cinco anos, construindo uma narrativa relacionada ao neon.
Como trabalhou este universo tão referencial com seus atores?
Foi um trabalho extenso: cada ator recebeu uma lista de referências relacionadas ao seu personagem. Alguns casos se repetiam, por exemplo: Querelle (1982) foi visto por todos. Mas existiam títulos específicos para cada um. As referências existiam principalmente para as cenas de sexo. Eu apresentava exemplos de como queria que as cenas fossem filmadas, e então a gente sentava e assistia juntos, comentando a decupagem. Perguntava o que eles achavam: se modificariam alguma coisa, se tinha algo que não estariam confortáveis em fazer. Toda a construção das cenas de sexo foi pautada pelas referências trabalhadas em paralelo pelo Larry e a Carol.
Como vê as reações ao sexo explícito no cinema não-pornográfico?
Vento Seco não é meu primeiro filme com sexo explícito, mas é aquele com maior circulação, e que tem despertado mais comentários. Tenho percebido um debate que eu acreditava já ter sido superado, talvez por inocência da minha parte. Para a minha surpresa, algumas pessoas acreditam que o filme não deveria ter cenas de sexo em preocupação com a sensibilidade do espectador heterossexual. Pensei que isso tivesse sido superado desde Vito Russo, na década de 1980. Sei que cenas de sexo, especialmente sexo gay, produzem ruído em certa parte do público. Mas pensei que as discussões girariam em torno de ser “necessário”, “gratuito” ou algo do tipo. Imaginei que as pessoas fossem discutir a importância do sexo dentro da narrativa: como o sexo explícito foi utilizado para contar essa história? Mesmo assim, as respostas foram majoritariamente positivas quanto ao uso do sexo, das referências e da pornografia. De qualquer modo, o pensamento sobre a sensibilidade hétero ainda tem fôlego, e retorna ao debate com alguma regularidade. Isso está relacionado com o período que vivemos no Brasil. A gente tem a sensação de regredir, nos tornando cada dia mais conservadores. As conversas se tornam um reflexo disso.
Qual é a viabilidade hoje de produzir um filme tão aberto sobre sexualidade e gênero quanto Vento Seco?
Eu sempre comento com a produtora Lidiana Reis que, se fosse em 2020, não conseguiríamos fazer Vento Seco por falta de orçamento de editais públicos. Isso vem da mudança de cenários que vivemos. Primeiro, é importante falar que o desmonte da Ancine não começou com o governo Bolsonaro, e sim com o governo Temer. O PRODECINE 05, edital pelo qual o Vento Seco foi financiado, foi extinto. Uma das primeiras ações do Temer foi acabar com isso. Por este fator, o filme já não existiria. Com Bolsonaro, existe uma perseguição política muito forte, sobretudo em relação aos cinemas LGBTs. Bolsonaro se declara há décadas como uma pessoa LGBTfóbica. Já pensávamos que seria difícil realizar filmes com essa temática no atual governo – vide o cancelamento dos editais específicos para o cinema LGBT.
Mas eu achava que a produção continuaria, em paralelo a um crescimento de produções familiares e evangélicas. Imaginei uma dificuldade maior, mas não uma paralisia. Agora, a Ancine está basicamente parada há um ano, com quase nenhum projeto em andamento, nem aqueles que já tinham sido aprovados. Mesmo para eles, o dinheiro não foi liberado. Tem sido pior do que as nossas expectativas pessimistas. O cenário é muito difícil em relação à lógica de políticas públicas que rendeu tantos frutos. Ao mesmo tempo, não acho que vamos enfrentar uma nova era Collor: a produção cinematográfica não vai desaparecer da mesma maneira. A lógica mudou, temos outras formas de conseguir financiamento em paralelo. A revolução tecnológica, com as produções digitais, barateou os custos e permitiu fazer cinema de outras formas. Ainda não sabemos o que vai acontecer daqui em diante. É impossível fazer projeções.
Como vê o papel da transgeneridade e cisgeneridade em Vento Seco? Você tem atores trans que não necessariamente interpretam personagens trans.
Isso vem desde a escolha do elenco. A gente tinha muita vontade de trabalhar com um elenco inteiramente composto por atores e atrizes LGBTs. Eu já tinha escrito o personagem da Rita para a Mel Gonçalves – vários personagens foram escritos diretamente para estes atores específicos. Pensamos então em chamar atores e atrizes trans para fazer personagens cisgênero. Quando abrimos essa possibilidade, nos aproximamos de pessoas cujo trabalho a gente admirava, e que tinham um pensamento em afinidade com o filme. Assim, chegamos na Renata Carvalho e no Leo Moreira Sá, que faz o Cezar. A personagem dela tem uma vivência cisgênero, sem qualquer elemento permitindo pensar que ela não seja cis. Mas por ser a Renata, as pessoas já pensam que a personagem é trans. A Renata sempre lembra que o corpo dela chega primeiro. É interessante ver como as pessoas reagem a essas questões.
Vento Seco e Mr. Leather parecem filmes irmãos, um em ficção, e o outro, em documentário.
Mr. Leather (2019) se transformou muito ao longo do tempo. Inicialmente, eu queria registrar um evento BDSM em São Paulo, não apenas sobre o Leather. Isso acabou não acontecendo, e o projeto ficou suspenso. Durante este tempo, comecei a desenvolver Vento Seco, em 2016. Enquanto isso, a comunidade Leather cresceu bastante em São Paulo, fazendo o primeiro concurso Mr. Leather, onde o Dom Barbudo foi eleito. Sempre tive uma ligação muito forte com ele: Dom Barbudo foi a minha porta de entrada para a comunidade fetichista de São Paulo. Então conseguimos o financiamento para o Vento Seco, mas existiam demoras burocráticas para liberar o dinheiro, além da questão do tempo, porque a história precisava ser filmada durante a seca. Jogamos o filme para quase dois anos depois, quando teríamos as condições de filmar. Neste meio tempo veio a ideia de fazer o Mr. Leather. O filme aconteceu muito pela vontade da Cecília Brito, a produtora do documentário. Decidimos filmar sem dinheiro, e ver o que aconteceria na hora -a gente queria aproveitar o momento em que o Dom Barbudo passava a faixa. Tanto Mr. Leather foi afetado pelo que eu já pesquisava para o Vento Seco, quanto o Vento Seco foi afetado pelas coisas que eu descobri ao fazer Mr. Leather. Mesmo que sejam um documentário e uma ficção, existe essa aproximação entre eles.