Camila Morgado tem sido uma presença constante na tela grande nos últimos meses. Com uma média de um novo filme por ano – os últimos foram Divórcio (2017) e O Animal Cordial (2018) – ela agora está de volta aos cinemas a partir dessa semana com o drama Vergel, uma co-produção entre Brasil e Argentina que teve sua primeira exibição na mostra competitiva do Festival de Gramado. E depois desses ela já está com mais dois trabalhos prontos, só esperando o momento da estreia: Domingo, que foi exibido na sessão de abertura do Festival de Brasília, e Albatroz, em que irá aparecer ao lado de Alexandre Nero e Andrea Beltrão. E se na maioria destes longas ela interpreta uma das personagens principais ou mesmo uma das coadjuvantes, no drama da diretora Kris Niklison a atriz passa a maior parte do tempo sozinha em cena, carregando a história, literalmente, nos ombros, sem ter mais ninguém para dividir as atenções. E foi sobre esse desafio que Camila Morgado conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Quem é essa mulher sem nome, a protagonista de Vergel, e o que te atraiu nessa personagem?
Você encontra essa mulher, que não tem nome, em um apartamento. Alguma coisa está estranha, e o espectador começa a entender que ela saiu de férias com o marido para a Argentina e agora está ali, sozinha, naquele lugar, que foi emprestado por uma amiga. Você percebe que o marido dela morreu no meio da viagem. Ela tá perdida, sem saber o que fazer. Por conta do marido ter morrido num acidente, há um trâmite burocrático que precisa ser cumprido para o corpo ser liberado. Ela precisa escolher, se fica esperando ou se volta para o Brasil. É quando diz: “só saio daqui com o meu marido”. O filme se passa durante este mês em que ela fica no aguardo, dentro desse apartamento, sempre em Buenos Aires. Ela vai vivenciar, durante esse tempo, o processo de luto e, também, de renascimento, pra ficar pronta e, enfim, partir.
Mesmo sendo composto somente de cenas internas, as filmagens foram todas na Argentina?
Sim, tudo em Buenos Aires. Exatamente. A diretora, Kris Niklison, é argentina, e era uma vontade dela filmar no mesmo apartamento onde morou durante cinco anos, enquanto ia atrás do dinheiro para fazer esse filme. Há uma importância nele, pois foi durante esse período que se deu conta de que a história que ia contar tinha que se passar ali.
Qual a importância do apartamento para a jornada dessa mulher?
Nessa espera, na vivência desse luto, ela parece estar um pouco perdida, até você se dar conta de que ela está é em um estado de suspensão. É algo que o luto traz, e é muito difícil. Ela não sai do apartamento, está sempre ali, em todas as cenas. Vendo o mundo através da varanda, passando por baixo dela, o que é atravessado. Ela está lá em cima, apenas observando. Isso mostra, mais uma vez, o quanto ela está suspensa, vendo tudo do alto, à distância. Ela consegue ver um vizinho no edifício da frente, algumas meninas, mais adiante, que pegam sol no terraço, um pianista que a lembra do próprio marido. O único contato com o mundo que tem, além do porteiro, é uma vizinha de baixo. E, também, com o marido que vem através dos sonhos.
Este é um filme com escolhas muito ousadas. Foi isto que te atraiu? Como você se sentiu ao ler o roteiro?
O que me atraiu foi o roteiro, mesmo. Não por ser ousado, ou por ter cenas em que me exponho muito. Tem uma hora em que até falei: “nossa, tem essas cenas…”. Meu interesse era saber como seriam filmadas. Pois não é nada inédito, acontecem nas vidas das pessoas, dos atores, dos diretores. Estamos falando do ser humano, que é livre. Isso, para mim, não era problema. A questão maior era como seriam feitas. E a Kris, nesse ponto, foi muito segura, com muito bom gosto. Ela me disse: “Camila, em nenhum momento vou te expor, ou de uma maneira gratuita. Vai ter um motivo”. E, realmente, tinha. Quando você vê o filme, você se identifica. Não causa nenhum distanciamento, como falar “olha”, ou ficar se perguntando “por quê” dessa cena. Há uma identificação, faz parte. O processo do luto tem várias fases, e você fica suspenso até conseguir cumprir esse processo de renascimento. O filme é isso.
A geografia desse apartamento, tão particular, também tem algo a dizer, não?
Esse apartamento tem uma varanda incrível, que foi construída, de fato, durante estes cinco anos. É uma verdadeira floresta. São 38 metros quadrados a parte interna – a gente filmou em apenas 38 metros quadrados, uma equipe inteira de cinema! E a parte da varanda também tinha 38 metros quadrados. Com todas as plantas colocadas lá, devem ter sobrado uns 5 metros. Era um filme difícil de ser feito por conta disso. Através desse verde, e dessa água para regar as plantas, ela começa a fazer esse processo de crescimento, de renascimento. É através disso. E também através de todas essas pulsões que surgem quando você está em luto. Você esquece um pouco o racional. Fica focado no que é prioritário – às vezes, esquece até de comer. Porque o luto te deixa numa anestesia. Você fica anestesiado. E aí você vai vendo essa personagem aos poucos indo se reconstruindo. Essa exposição, do sexo e da nudez, foi algo tranquilo, pois foi também através do corpo que ela passa a viver novamente. Do desejo que surge, mesmo que se culpe por isso. Mas é animal, a gente é feito disso, do instinto primitivo. Isso acontece. E foi tão bem filmado, ficou tão natural. Não é nada gratuito, está ali pelo personagem.
Faz sentido dentro da proposta do filme, portanto?
Totalmente. Você se vê como se estivesse espiando aquela mulher, em segredo, pois ela não está exposta. Quase como se olhasse por um buraco da fechadura, que lhe fosse permitido fazer isso. E ver aquela intimidade, sem julgamento.
Vergel foi um filme que lhe levou ao Festival de Gramado. Como foi esse convite?
Eu fiquei muito feliz. Gramado é um festival tão antigo, tão importante, de encontros. Algo que a gente tem muito próximo do coração, sabe? O momento que a gente está vivendo é muito importante, como resistentes. A cultura vem sendo marginalizada nesse país, mesmo. As pessoas ficaram caretas. Essa coisa do certo, do correto, do politicamente incorreto. E a gente vê que tá tudo ruindo. Nós somos tratados como marginais, culturalmente falando. Como se os artistas fossem vagabundos. E a gente não é nada disso. A gente ajuda o outro a ir à reflexão. Foi muito bom estar, justamente com esse filme, em Gramado. É um ato de resistência. Por estar falando sobre isso, se juntando, trocando, encontrando amigos. As possibilidades são incríveis.
Entre o Olga (2004) e o Vergel, você teve uma presença marcante no cinema, porém voltada à comédia popular. Vergel significa uma mudança de rumo na tua persona cinematográfica?
Não sei se uma mudança. Gosto dessa versatilidade. Acho que o ator tem que ser camaleão. Gosto quando as pessoas falam: “não é possível que a mesma atriz tenha feito estes dois filmes”. Você ser travestido, estar cada hora de um jeito, adoro isso. Ano passado estive em O Animal Cordial, que é um filme de gênero, um thriller, e pouco tempo antes no Divórcio, comédia do Pedro Amorim. Estes dois, aliás, foram ao lado do Murilo Benício, que é um grande parceiro.
Vergel é erótico, sem ser, necessariamente, explícito. Qual a importância de explorar todas essas facetas do ser humano?
Essa é a função da arte. E, nisso, vem o cinema. Acho que mostrar as possibilidades da gente, como seres humanos, com os desejos, fraquezas, o corpo, a voz, o sexo, todas as sensações, isso é válido porque faz parte da nossa natureza. Com certeza, e é questão do cinema, do teatro, da pintura, das artes plásticas, artes visuais. É onde a gente tem essa possibilidade de ser livre pra mostrar exatamente como a gente enxerga a nossa natureza.
Na cinematografia brasileira, há alguns filmes marcantes no que diz respeito à sexualidade feminina. Vera (1986), que foi premiado no Festival de Berlim, ou o Como Esquecer (2010), com a Ana Paula Arósio, são alguns exemplos. Você acha que o Vergel pode se encaixar nessa linha?
Acho que pode. Às vezes isso incomoda, né? Ainda há muito pudor em cima do corpo. Não há uma educação no sentido de que a gente é livre, temos nosso corpo, e o que fazemos com ele é responsabilidade de cada um. Vamos tentar tirar as travas? O corpo é muito poderoso. Ele, travado, não tá na sua plenitude. É bom expandir. O sexo fala sobre isso, sobre essa liberdade. Não à toa o gozo é considerado a pequena morte, porque você expande tanto que quase se perde. Esse é um tema difícil. Outro dia estava lendo Nelson Rodrigues, porque adoro, e percebi que nele também o corpo é muito presente, junto com essas questões. É engraçado, pois a sociedade ainda é reprimida. E é uma coisa louca, o brasileiro tá acostumado a expor o corpo. Mas, ao mesmo tempo, somos reprimidos. Na Europa você faz topless nos parques, na beira da praia, mas no Brasil, não. Ao mesmo tempo, ficamos pelados com tanta facilidade nas escolas de samba… Que corpo é esse?
Então o Vergel tem uma função a cumprir também?
Acho que é um tema que, às vezes, as pessoas veem, mas ficam um pouco reprimidas. A arte tem essa função, não só de mostrar, mas também de incomodar. Acho normal quando você vê um filme e diz: “pra mim foi perturbador, então não gostei”. Mas o perturbador não é pra gostar ou não, é bonito ou não. O que te incomoda, pode ter certeza que é esta a sua função. É como fazer análise, às vezes você sai perturbado, com ódio…
É algo que te tira da zona de conforto e provoca a reflexão…
Exatamente! A arte está nisso mesmo, na obrigação de te tirar da zona de conforto, como você falou. Então, talvez o Vergel entre nisso. Com toda essa nudez, esse desejo, ele vai mexer com você, sim. Porque ele existe, o que a gente vai fazer? Dizer que não? (risos)
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em Agosto de 2017)
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