Gabriel Bá, Fábio Moon, Milton Hatoum, Ronaldo Fraga, Leonardo Moreira, Laís Bodanzky, Toquinho e Denise Fraga. Dotados de inegável talento e de aspirações plenas em suas respectivas áreas, esses renomados artistas acreditam na máxima do iluminado Ferreira Gullar que atesta o seguinte: “A arte existe porque a vida não basta”. E assim como eles, os cineastas Caio Tozzi e Pedro Ferrarini fazem de tal pensamento a força motriz de suas vidas artísticas e também de seu belíssimo documentário A Vida Não Basta (2013).
Num bate-papo exclusivo com o Papo de Cinema, a dupla de realizadores detalha mais sobre o processo de produção do filme, já exibido em inúmeras mostras e festivais ao redor do país – entre eles, o 37º Guarnicê Festival de Cinema, 10º Cinedocumenta, II Festival Brasil de Cinema Internacional e até mesmo na OFF FLIP 2014. Confira!
Como nasceu a parceria entre vocês para realizarem A Vida Não Basta?
Caio Tozzi: A minha parceria com o Pedro nasceu há sete anos. Unimos nossos talentos, que eram complementares, para criar projetos audiovisuais. Eu, que sou formado em jornalismo e pós-graduado em roteiro, tinha bagagem e visão para produzir um bom conteúdo e o Pedro, que é formado em Rádio e TV e pós-graduado em cinema, trazia e expertise em produção. Dessa união, criamos uma produtora e, além de atender o mercado publicitário e institucional, também passamos a realizar projetos autorais, como o A Vida Não Basta.
Pedro Ferrarini: Há 8 anos conheci o Caio em uma agência de publicidade e logo começamos a compartilhar ideias que nos direcionaram a abrir uma produtora, a Vila Filmes. Venho do mundo visual, como diretor de filme, e ele do mundo da literatura, como roteirista, o que resultou em uma união criativa de “forma” e “conteúdo”. Além dos trabalhos do dia-a-dia, sempre buscamos contar histórias que nos instigavam e foi aí que nasceu a vontade de criar um filme que contasse um pouco sobre pessoas que criam e como a arte pode transformar a vida das pessoas.
Como conceberam a ideia do filme, de onde ela surgiu?
CT: O filme surgiu de uma das várias ideias que dividi com o Pedro para realizarmos dentro da Vila Filmes, a produtora que criamos. Eu, com esse espirito inquieto e criativo, sempre querendo produzir algum projeto artístico como filmes e livros (também sou escritor), ficava fascinado com as pessoas que criavam coisas que me tocavam e inspiravam. Com isso, um dia, tive a ideia de fazer um filme sobre pessoas que criavam. Dividi a ideia com o Pedro, que gostou. Acabei desenvolvendo um pré-roteiro e estrutura do filme como trabalho de conclusão de curso da minha pós-graduação, mas não sentia que o projeto estava fechado. Afinal, falar de arte, processos criativos e pessoas criadores é muito subjetivo, às vezes, pouco palpável. Fiz algumas versões do projeto, primeiro enfocando a criatividade, depois focando o potencial narrativo de pessoas que criam. Mas a luz só veio quando ouvi, em uma palestra FLIP (Festa Literária internacional de Paraty) de 2010, o poeta Ferreira Gullar dizer a frase “a arte existe porque a vida não basta”. Mais do que aquela afirmação explicar muita coisa que eu sentia e pensava, ela surgiu como o mote que faltava para a ideia do filme: por que as pessoas criam? Por que a vida não basta? A partir daí o projeto ficou redondo e ganhou corpo. Refiz o projeto, utilizei a base de pesquisa e pré-estrutura que já tinha em mãos e partimos para a produção.
PF: O projeto nasceu da vontade de contar histórias de pessoas que criam em cima de indagações que sempre nos acompanharam no processo do dia-a-dia. De onde vem a arte? Quem a cria? Que momento algo ordinário se transforma em arte? Como que isso acontece? Qual a relação que o criador tem com a criatura? E certo dia o Caio me trouxe uma frase que escutou em uma palestra do Ferreira Gullar, “A arte existe porque a vida não basta“, e como se tivesse um insight ele levantou o tema do filme sendo o recorte desta frase, “A vida não basta” como fio condutor projeto.
Como se deu o processo para definirem os entrevistados?
CT: Nossa ideia sempre foi tentar fazer um mosaico com histórias diferentes. A primeira coisa, para falar de arte, era que cada personagem atuasse em uma área artística: cinema, literatura, teatro, TV, quadrinhos, moda, etc. Queríamos que os profissionais tivessem uma força artística e criativa, fossem atuantes no mercado e reconhecidos nas respectivas áreas. Além disso, buscamos pessoas que fossem de gerações diferentes e que viessem de diversos lugares do país; também era preciso ter homens e mulheres. Fizemos uma lista de nomes, mas muitos dos que estão no filme foram nossa primeira opção.
PF: Pensamos muitos nomes interessantes para o projeto mas o que sempre tínhamos em mente era que precisávamos de diversidade. Diversidade nas áreas artísticas, diversidade regional e diversidade de idade e gênero. Assim teríamos respostas e caminhos bem diferentes para o filme.
E vocês tinham em mente outros nomes para integrar o filme?
CT: Tínhamos uma lista enorme. Levantamos nomes como os de Lygia Fagundes Telles, Fernando Meirelles, Laerte, Lenine, entre outros. Mas acredito que o “time” que conseguimos reunir no filme foi único. Todas personalidades ímpares, com muito a dizer. Eles conseguiram se complementar de uma maneira incrível.
Vocês aprenderam muito com os entrevistados? Alguma conversa os surpreendeu ou ocorreu alguma situação inusitada durante as gravações?
CT: Sempre que me perguntam isso, costumo dizer que fazer o A Vida Não Basta foi uma faculdade para mim. Eu, que sou um artista iniciante e que vislumbro a possiblidade de trabalhar com meus projetos, me sinto muito privilegiado por ter podido conversar com nove nomes de nossa arte. Tudo o que falavam foi inspirador: a importância da força de vontade; a paixão pelo que faz; que as coisas, apesar de difíceis, não são impossíveis. Não havia como não sair transformado dessa experiência. Saí completamente modificado para seguir meu caminho. Não consigo citar ou destacar algo que foi mais surpreendente ou importante ao longo do trabalho, cada um me deu algo de novo: a Denise, aquele brilho nos olhos, aquela luz, que conseguimos ver no documentário; a obsessão e cuidado com sua obra, como Toquinho e Bá e Moon trazem; a leveza e inteligência de Leo Moreira; a sabedoria de Hatoum e Gullar; a força da Laís e de Ronaldo. Cada um trouxe algo particular e especial para o projeto.
PF: Todas as entrevistas foram incríveis e transformadoras. É muito rico escutar o que pessoas como Toquinho, Denise Fraga, Ronaldo Fraga e Milton Hatoum tem pra contar sobre as histórias de vida de cada um deles. São grandes artistas nacionais, que deixarão o legado de ter vivido a arte intensamente. Ouvir um pouco do caminho que trilharam para chegar até onde chegaram é realmente um aprendizado.
E como foi o processo de captação das imagens que intercalam as entrevistas? Quais são os significados para vocês dos lugares, situações e imagens apresentadas?
CT: Para aqueles trechos de “respiro” do filme, a nossa ideia era poder abrir uma lacuna ao longo dos depoimentos para que o espectador pudesse ver a detalhes da vida. o discurso do filme é esse: como ver a vida com outros olhos; como buscar poesia no nosso dia a dia. Eu e o Pedro listamos alguns locais no Rio e em São Paulo que pudessem trazer esse sentimento. O Pedro, então, saiu com a equipe em três diárias para buscar aquelas imagens. Acho que o resultado ficou lindo.
PF: As imagens ilustrativas foram pensadas para conduzir ainda mais o espectador para uma reflexão sobre o que estava sendo contado. Elas foram feitas após quase todos os depoimentos captados, por isso buscamos direto cenas que somassem ao depoimento daquela história, ou daquele bloco que o filme estava contando. Bem sutis, contemplativas e pontuadas elas servem de respiro ao conteúdo denso que o filme apresenta.
A trilha também tem uma presença bastante marcante na produção. Como se deu este processo?
CT: A trilha foi um trabalho realizado pelo José Sérgio Pinchiaro, da WAW Studio, que é um grande parceiro nosso. O que buscamos na trilha foi criar algo que pegasse o espectador pela mão e o conduzisse ao longo do filme. Queríamos algo que fosse poético, mas não grandioso (ou que desse aquela sensação de que a arte é algo divino) – muito pelo contrário: a busca foi tentar deixar algo mais pé no chão, um som que caminhasse.
PF: Assim como a linguagem das imagens, para a trilha pensamos em algo mais leve e pontuado com algumas características nacionais. O José Sérgio Pinchiaro, produtor musical da WAW Studio, é um amigo de anos que entendeu o que gostaríamos de transmitir no filme e criou este universo musical lindo que dá suporte para os momentos ilustrativos e abraça o filme.
Como tem sido a recepção do público com o filme?
CT: Para a nossa alegria, a receptividade tem sido incrível. Desde a estreia oficial, que aconteceu na Balada Literária de 2013, realizada sob o comando do escritor Marcelino Freire, aqui em São Paulo. As pessoas ficam encantadas, querem mostrar para amigos. Tem gente que se descobre artista no seu dia a dia, temos casos de conhecidos que resolveram encarar seus sonhos depois de ver o filme, que largaram casamento até. O filme é impactante, toca mesmo. Acho que o grande mérito dele é o seguinte: a gente começou a produzir o projeto pensando em fazer um longa que falasse de arte, e conseguimos realizar um que falasse de vida.
PF: As pessoas tem sentido muito o que sentimos ao produzí-lo. Parece que a mensagem de que a arte transforma a vida das pessoas, planta uma semente dentro da gente que pode trabalhar o nosso olhar para o que estamos fazendo da nossa vida e, de repente, mudar o modo de ver as coisas como meramente ordinárias para construir algo novo, extraordinário. É assim que nasce a arte! Até hoje tivemos um retorno incrível nessa caminhada de exibições de A Vida Não Basta!
E por onde o filme já foi exibido e onde deverá ganhar sessões em breve?
CT: Como o documentário é um projeto que foi realizado de maneira totalmente independente, estamos fazendo um trabalho quase individual de apresentar o filme para cinemas independentes de todo o país. Já fomos exibidos em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraty, Caxias do Sul, Campinas, Cuiabá, São Luís do Maranhão, Goiânia, Fortaleza, Ipatinga, Natal. Além disso, o A Vida Não Basta foi exibido em alguns festivais de cinema e, inclusive, ganhou o prêmio de melhor documentário no II Festival Brasil de Cinema Internacional. A grande novidade (em primeira mão) é que, em breve, o filme entra em cartaz na programação de unidades do SESC em todo o país.
Para vocês, porque a vida não basta?
CT: Olha, posso dizer com todas as letras que, para mim, a vida realmente não basta. Preciso ir muito além do que a realidade, o dia a dia, me oferece. Preciso criar, inventar histórias, projetos. Acho que sou assim desde criança: sempre buscando uma ideia para realizar. Isso me ajuda muito a viver (e a sobreviver). Esses projetos de arte me levam para frente. Me fazem bem e sei que fazem bem aos outros, a quem consome ele. Acho que é isso que eu quero para a vida – pessoal e profissional: poder fazer coisas bonitas para as pessoas. Acho que é essa a minha função por aqui.
PF: A vida é feita de muitas facetas, de muitos Pedros, de muitos Caios e Conrados. Mas a partir do momento que você consegue trazer algo da sua essência verdadeira você fortalece uma destas facetas e põe pra fora o que é verdadeiramente seu. Quando olhamos a vida em terceira pessoa isso muda o modo como estamos presentes nela. A vida pode bastar em muitas destas facetas que compõem a nossa essência, mas dentro de nós sempre existirá uma porta aberta onde a vida, por si própria, não basta. É ai que nasce “o novo”, “a arte” que irá alimentar a sua própria vida e a de outras tantas pessoas.
Como documentaristas, como vocês visualizam a produção documental nacional nos últimos tempos?
CT: Acho que nos últimos anos o documentário brasileiro ganhou destaque. Vários títulos foram sucesso e se mantiveram por semanas no circuito, como Elena (2012), Tropicália (2012), Simonal: Ninguém Sabe o Duro que Dei (2009), entre outros. Acho isso positivo demais. Sou jornalista de formação e apaixonado pela ideia de contar a história de outras pessoas, histórias reais. E acredito que o público, cada vez mais, vem se interessando por esse gênero.
PF: Documentários sempre me encantaram porque eles trazem na sua essência pouco da função de preservar uma história. Uma história de um tema, de uma região, de uma situação, enfim… a pessoa mergulha em um universo novo que até então desconhecia por completo. Isso é muito rico quando pensamos que grande parte dos documentários nacionais preservam a nossa história.
Quais são os realizadores, entre documentaristas ou não, que mais admiram e lhes influenciaram?
CT: Acho que tenho muitas inspirações. Como sou escritor também, me espelho em muitas pessoas do universo literário, como Ziraldo (sobre quem fizemos um documentário em 2010), Fernando Sabino, Adriana Falcão, Marcelino Freire. Sou muito inspirado por essas pessoas que contam histórias. Além disso, o próprio A Vida Não Basta me deu de presente a possibilidade de conhecer pessoas que hoje me inspiram muito, como o Ronaldo Fraga e o Leo Moreira.
PF: Acabamos de perder um documentarista incrível que foi uma referência pra mim no processo de criação do filme, o Eduardo Coutinho. Nos seus últimos trabalhos ele traz muito uma linguagem que usamos no nosso filme que é o olho no olho, sem muitas interferências externas no quadro para focarmos apenas no que o depoente apresenta, como se entrássemos na história daquela pessoa e fizéssemos parte daquilo. A linguagem que ele utilizou nestes trabalhos somou muito ao olhar que passamos no filme.
E quais são seus próximos projetos? Podemos esperar uma nova parceria entre vocês?
CT: Eu e o Pedro acabamos de lançar um livro infanto-juvenil chamado O Segredo do Disco Perdido, que foi inspirado nas canções do Clube da Esquina. Foi publicado pela Panda Books e estará em livrarias de todo o país. Eu tenho mais alguns projetos na literatura. No audiovisual, estamos colhendo os frutos do A Vida Não Basta, mas certamente criaremos mais projetos juntos em breve!
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