Alice de Andrade respira cinema desde cedo. Filha de Joaquim Pedro de Andrade, expoente do Cinema Novo e um dos nossos maiores cineastas, seguiu os caminhos do pai bem-sucedido, embarcando nesse mundo e dele não mais saindo. Além de realizadora, ela se dedica à preservação fílmica. Formada pela prestigiada Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV), de San Antonio de Los Baños, em Cuba, realizou em 1992 o curta-metragem Luna del Miel, em que se deparou com 40 casais dispostos a contar as suas histórias de amor. Mais de 20 anos depois, Alice decidiu encontrar novamente essas pessoas com as quais teve contato num momento bastante distinto da ilha caribenha. Embora o famigerado embargo econômico imposto a Cuba pelos Estados Unidos ainda vigore, as relações entre os países foram flexibilizadas. A realidade vai sendo alterada, inclusive no que tange à paisagem humana. Vinte Anos (2018) é o documentário que Alice fez a partir dos reencontros com os casais de outrora. Confira o bate-papo que tivemos com ela acerca dessa realização, bem como a respeito do que a motiva a criar na seara audiovisual.
Emocionalmente, como foi esse retorno a Cuba, à vida em transformação dos casais?
Venho voltando a Cuba sistematicamente. Estudei lá durante três anos, depois fiquei 17 sem ir. Na verdade, fui ao país em 2007 para apresentar as versões restauradas da obra do meu pai, mas não procurei os personagens do Luna del Miel. Curiosamente, eles me encontraram, me viram na televisão divulgando o evento e estabeleceram contato. Em 2008, apareci por lá novamente, numa programação sobre preservação fílmica, minha segunda profissão. Portanto, empreendi essa volta durante todos esses anos. O filme se encerra justamente no momento em que as relações entre Cuba e Estados Unidos são reatadas de certa maneira. Desde então não parei de voltar. Continuo rodando lá, mas agora para uma série de televisão, na qual observo a visita do então presidente norte-americano Barack Obama, o show dos Rolling Stones e que culminará nas comemorações dos 60 anos da revolução.
Quais as principais diferenças que você encontrou na paisagem humana de Cuba?
O embargo continua existindo. O ex-presidente norte-americano Barack Obama queria suspende-lo integralmente, mas o senado estadunidense não permitiu. Houve uma flexibilização quanto ao turismo, e isso já ajuda muito. Mas, agora tudo retrocedeu com a política de Donald Trump. O embargo continua firma e forte. Os cubanos têm coragem e dignidade inabaláveis, são donos de uma impressionante fé em si mesmos. No ano de 92 certamente havia mais romantismo e fantasia do que agora. Mas, considero que as pessoas continuam reagindo, afrontando as dificuldades com a mesma bravura e força. E sempre com bom humor. Isso me espanta e me interessa.
A estrutura narrativa do filme é fruto de uma preconcepção rígida, ou foi mais condicionada pelos eventos que você encontrou nos retornos à ilha?
Na verdade, o Vinte Anos é um prolongamento do Luna del Miel, sendo-lhe uma antítese no que diz respeito à estrutura. O curta era muito roteirizado, com primeiro, segundo e terceiro atos bem definidos. Imaginei os personagens: dois casais, um mais velho, comprometido com a revolução, e um mais jovem, cujo desejo é curtir a vida. Quando fiz o casting, apareceram 40 casais incríveis, pelo menos 20 imprescindíveis. Depois, fiquei pensando o que seria do filme se eu não tivesse levado o roteiro tão a sério. No Vinte Anos a regra era, portanto, não ter roteiro, me deixar levar por histórias de amor, tendo com pano de fundo as alterações da sociedade cubana. O problema é que as mudanças não aconteciam (risos). Adaptei o projeto para uma equipe pequena, a fim de continuar filmando e observando. Por sorte divina, houve a flexibilização e felizmente as coisas começaram a mudar de verdade. Este é um filme de montagem, que pretende levar o espectador por um país e uma humanidade específicos.
O cinema está praticamente no seu sangue. Suas motivações seguem as mesmas do início?
As motivações são as mesmas: fazer uma arte que me mova, descobrir coisas através do cinema, ter contato com realidades que me interessam. A vaidade e o engajamento mudam, sem dúvida, mas vou continuar fazendo coisas nas quais realmente acredito. Como este longa, em que acredito. Ele não pretende revolucionar a linguagem, apenas mostrar o mundo que conheci, especialmente em 1992, período pouco filmado em Cuba. Pretendia organizar tudo isso num filme, tornando acessível. Espero nos próximos trabalhos fazer voos cinematográficos mais audaciosos. Estou louca para voltar à ficção, não aguento mais documentário (risos). Essa missão já deu. Torço para que o Vinte Anos consiga desarmar a granada da raiva e dos julgamentos precipitados através do amor.
Como você percebe essa demanda atual por mais mulheres criadoras de audiovisual, disseminando narrativas diversas?
É algo que temos de festejar, é uma coisa cada vez melhor. Mulher é um bicho sensível e tenaz. Cinema vindo daí é sempre bom.
(Entrevista concedida por telefone, direto do Rio de Janeiro, em julho de 2018)