O paranaense Paulo Biscaia Filho é uma figurinha carimbada no cenário dos filmes de horror. Realizador de longas-metragens cultuados como Nervo Craniano Zero (2012) e Morgue Story: Sangue, Baiacu e Quadrinhos (2010), ele agora estreia em solo norte-americano com Virgens Acorrentadas (2018), baseado num roteiro de Gary McClain Gannaway, também produtor do projeto. A trama dá conta de um grupo disposto a fazer um exemplar cheio de sangue, assassinos ensandecidos e mulheres, em trajes sumários, presas a correntes. As filmagens de Virgens Acorrentadas ocorreram prioritariamente no Texas, com algumas tomadas feitas em Curitiba. Não faltam litros de fluído corporal, decapitações e brincadeiras com clichês do gênero, numa estrutura narrativa ousada, que se vale, inclusive, da dinâmica do filme-dentro-do-filme. Paulo nos atendeu gentilmente para esta conversa por telefone, em que falamos acerca de suas motivações artísticas, bem como do cenário brasileiro e internacional do cinema de horror. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo:
O que mais lhe atraiu no roteiro de Virgens Acorrentadas?
Foi basicamente o potencial de humor. Essa mescla é um negócio que sempre curti bastante. Certa vez, o Carlos Primatti, um dos grandes estudiosos brasileiros do cinema de horror, disse que gostava de meus filmes divertidos, mas me cobrou fazer alguma coisa mais pesada. Aí escrevi um roteiro bem casca grossa. Ele respondeu, dizendo que sentiu falta da avacalhação (risos). Avacalhação é importante. Gosto de trabalhar o humor, sobretudo o derivado do ridículo, do patético, algo que marcou bastante o cinema B dos anos 50, 60 e 70, do qual sou fã.
Quais as diferenças entre rodar um longa de horror lá e aqui no Brasil?
Muita gente me faz essa pergunta. Não há diferença, principalmente porque não fiz um filme de estúdio, continuei na seara independente, com a galera fazendo muita coisa na garra, no amor pelo cinema. Ninguém recebeu rios de dinheiro. A equipe comprou totalmente a ideia. Pude montar o time. Como marinheiro de primeira viagem nos EUA, tive muita sorte, porque realmente todos vestiram a camisa. Aqui no Brasil somos dependentes das ferramentas governamentais de financiamento. Lá, isso não existe, tudo é pelo mercado. Esse filme foi produzido porque o Gary levantou grana com investidores. É uma forma de financiamento muito diferente da que temos aqui.
Você já definiu o filme como um meta-slasher-cômico. Qual a complexidade de lidar, ao mesmo tempo, com metalinguagem, horror e comédia?
A metalinguagem é uma das formas de contar essa história. É uma trama de horror, narrada de maneira cômica, com uma estrutura metalinguística. As três camadas distintas vão se entrelaçando, e isso acontece organicamente. Especificamente quanto à metalinguagem, posso dizer que ela evidencia isso do filme ser um exemplar sobre amor ao cinema. O Virgens Acorrentadas fala justamente acerca desse afeto louco que temos pela Sétima Arte.
Como você percebe o cenário do horror no Brasil?
Estamos tentando há muito tempo, mas parece que apenas agora as comissões finalmente estão olhando para os projetos e não os considerando brincadeiras. O Brasil pode e deve trabalhar o gênero. O cenário é vasto. Tem muita gente que trabalha com horror há vários anos, mas que apenas agora consegue um pouco de espaço. Por outro lado, há os que não costumam lidar com o gênero, mas que investem em boas histórias, por acaso, marcadas por elementos do horror. E, por fim, os exemplos negativos, aqueles que produzem algo do filão, mas apenas voltado ao apelativo, que não tem a ver com a paixão pelo exploitation. Fazem apenas para embarcar na modinha. Terror não é modinha. Além de outras coisas, é uma engrenagem importante para o mecanismo do cinema.
Qual a sua opinião sobre o conceito “pós-horror”?
Vejo da seguinte forma. Primeiro, acho importante que estejam falando e discutindo o gênero. Se isso de pós-horror vai pegar, só saberemos daqui a uns 20 anos. Não acredito em movimentos maciços estéticos, principalmente hoje em dia. Não estamos nas primeiras décadas do século 20. O horror tem uma quantidade enorme de subgêneros. O pós-horror é legal, desde que feito com sinceridade, ou seja, contando as histórias sem os padrões e os clichês, mas de um jeito verdadeiro e sincero. Acho problemático quando a pessoa está querendo fazer um filme de horror, mas não tem coragem de deixar 100% horror, exatamente para poder emplacar mais com festivais e os críticos.
Quando um diretor brasileiro filma nos EUA, boa parte do público entende isso como uma evolução. Na seara do horror, você acredita que funciona assim, também?
Após um longo período, temos conversas mais sérias sobre produção de cinema de horror no Brasil. O caso do José Mojica Marins, nosso maior expoente, explica bem como o horror sempre foi tratado por aqui. Na sua biografia, Maldito, de André Barcisnki e Ivan Finotti, consta que, em determinado ano, ele foi ao Japão para uma retrospectiva de seu trabalho; depois, recebeu homenagens na Europa; passou por Miami para o lançamento de seus DVD, onde foi paparicado por fãs como Joe Dane e John Landis; e, depois, voltou para o Brasil, a fim de animar um bingo. Essa é a melhor definição de como o horror foi tido no Brasil durante anos. Meus dois filmes anteriores ganharam prêmios apenas fora do país. Mesma coisa para o Rodrigo Aragão e outros. Muitas vezes ouvi produtores dizendo que brincávamos de fazer cinema. Em suma, é uma conquista fazer um filme, não importando onde (risos).
Tem projeto de filmar novamente no Brasil?
Será o Marlon Brando, Whiskey, Zumbis e Outros Apocalipses, de longe minha produção com maior orçamento: R$ 2.2 milhões. É um filme que fala da importância da arte diante do apocalipse. Dia desses fiquei chocadíssimo com uns comentários numa entrevista da Fernanda Montenegro, bem coisa de Bolsominion (referência aos simpatizantes do deputado Jair Bolsonaro). Um bando de coisas estúpidas. Cara, para a Fernanda Montenegro! Toda essa ferocidade proferida por zumbis apáticos somente reforçava o que ela estava dizendo, acerca da falência do Estado quando o teatro/arte vai mal. Meu filme fala sobre essa necessidade de fazer arte mesmo quando parece que o mundo acabou.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Curitiba/Rio de Janeiro, em julho de 2018)