20200822 kaue telloli 0 papo de cinema e1598114717145

Kauê Telloli Kachvartnian – ou apenas Kauê Telloli, o que facilita bastante a vida da gente, hehe – é um inquieto. Começou sua carreira artística como ator, mas logo estava se aventurando também como roteirista e diretor. Formado pela Escola de Teatro Celia Helena e pelo Studio Beto Silveira, participou de oficinas de atuação com o Theatre Du Soleil, no Lee Strasberg Theatre Institute, em Nova Iorque, e com a preparadora de elenco Fátima Toledo, uma das mais conceituadas de todo o Brasil. Há mais de uma década começou a participar dos seus primeiros curtas-metragens – alguns estão reunidos no longa Fucking Different São Paulo (2010). Depois de aparecer no consagrado Trabalhar Cansa (2011), se encontrou em séries como A Menina Sem Qualidades (2013), Psi (2014) e O Negócio (2014-2018). Estreou como realizador com o independente Eu Nunca (2015), no qual assinou o roteiro e a direção, além de ter aparecido também como protagonista. E agora está de volta atrás das câmeras – e somente lá, dessa vez – com o suspense dramático Volume Morto (2019), premiado no exterior, exibido no Festival de Brasília e que agora, em meio às restrições provocadas pela pandemia do Covid-19, começa uma carreira por cinemas drive-in de todo o país, até ser lançado em streaming e VoD em meados de setembro. Foi sobre esse mais recente projeto que o cineasta conversou com o Papo de Cinema. Confira!

 

Olá, Kauê. Hoje em dia, quem fala mais alto: o ator ou o diretor?
Puxa, acho que agora é o diretor. Mas é uma coisa que varia muito, tem espaço para todos dentro de mim. No ano passado, por exemplo, estive na última temporada de O Negócio, fazendo um personagem que me deu muito prazer. Além disso, participei ainda do filme Segundo Tempo, do Rubens Rewald, que é uma história muito bonita, um filme lindo que tenho um baita orgulho de ter sido chamado. E veja bem, tudo como ator. Foram dois projetos bem grandes, com uma baita visibilidade. Mas, ao mesmo tempo, escrevi duas séries para a televisão, uma para a Globo e outra para a Fox. Não consigo ficar parado por muito tempo. Estou dirigindo muito, também com publicidade, e envolvido já no meu terceiro filme como diretor. Não sei precisar ainda quando tudo isso será lançado, estamos no meio de um caos criativo e social, então é preciso dar o tempo certo para cada uma dessas coisas. Mas uma hora elas acontecem, só precisa ter paciência.

20200822 volume morto 04 papo de cinema e1598116991667
Júlia Rabello, Daniel Infantini (acima), Fernanda Vasconcellos e Kauê Telloli (abaixo)

Como surgiu a ideia do Volume Morto?
Foi uma coisa muito curiosa. Aconteceu que estava com alguns amigos, passando o tempo, jogando conversa fora, e vimos um desenho feito por uma criança. Era algo bonito, a seu próprio modo, mas também bastante enigmático. E isso nos estimulou a fazer diversas leituras. Todo mundo começou a interpretar, a conversamos entre nós, cada um defendendo seu ponto de vista. Começou uma discussão boa. Representava um pouco esse momento que estávamos – e seguimos – vivendo, de opiniões polarizadas, ninguém quer dar o braço a torcer. Todo mundo quer falar, mas parece que são poucos os que realmente estão dispostos a ouvir. A partir disso, comecei a elaborar um cenário com uma história que abordasse essa questão. Coloquei em uma sala de aula, a partir de uma situação única. Um único espaço, que pudesse ser resolvido de uma maneira simples. Nasceu dessa observação, dessas pessoas expondo seus olhares e brigando por eles. Achei interessante, e que merecia mais atenção.

 

Volume Morto brinca com diversos gêneros. Isso foi intencional?
Realmente, é um filme inquieto – talvez essa seja uma característica minha (risos), que acabei passando para a minha obra. Ele começa muito realista, sem dar espaço para outras interpretações. Mas, aos poucos, vai se transformando em outra coisa. Primeiro num suspense, até que chega num final com tons de absurdo. A ideia era ir caminhando, conduzindo a narrativa, mas sem perder de vista o quebra-cabeça que estava sendo montado. No final, não importa se esse ou aquele estavam certos, acontece que estão todos errados. E aquele que motivou toda essa discussão, o menino, o que acontece com ele? Não era nada do que estávamos imaginando. No final, entendemos que não poderia ser diferente. A ideia era ir quebrando essas certezas aos poucos, ir desconstruindo as versões individuais dos personagens.

 

Quanto tempo levou até chegar ao formato que hoje vemos na tela?
Trabalhei em cima desse roteiro por uns dois meses, mais ou menos. Depois de uma primeira versão, que levei cerca de um mês para considerá-la pronta, organizei leituras com conhecidos, participei em grupos de estudo, fui mostramos para amigos e observando essas reações. Isso tudo foi muito importante, pois me permitiu ir acrescentando outras camadas, inserindo elementos que não haviam sido pensados num primeiro momento. Esse processo todo levou uns dois, três meses. E claro, depois que os atores estavam definidos, também havia a necessidade de ouvir os lados deles, colocar tudo o que teria que ser dito nas palavras com as quais eles estavam mais acostumados.

20200822 volume morto 00 papo de cinema e1598117072795
Cena de Volume Morto

Volume Morto tem uma estrutura bastante teatral. Chegou a pensar em adaptá-lo para esse formato?
Sabe que, quando ouço isso, sinto até orgulho. Pois estou satisfeito com o resultado do filme, e com esse tipo de retorno percebo que ele pode ir além do formato que foi concebido originalmente. Isso é muito estimulante. Mas é importante que se diga: ele foi pensado primeiro como cinema, antes de qualquer outra coisa. A primeira vez que me ocorreu a possibilidade de adaptar para uma peça de teatro foi quando fomos convidados para o Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia. É um super evento, que reúne pessoas do mundo todo. Após a nossa sessão, um realizador, que estava com outro filme, chegou até nós e me pediu os direitos para levar a nossa história para o teatro. Ele disse que havia ficado muito empolgado com o que havíamos feito, e gostaria de recriar aquele mesmo universo, mas no palco. Ele é de Kosovo. Estamos em contato, desde antes da pandemia, e as conversas tem sido ótimas. Mas não sei que rumo vai tomar, nada foi decidido até o momento. Eu, particularmente, estou envolvido com outros projetos, então a mim não interessa em fazer teatro agora com essa trama. Depende mais de alguém querer ou não. Se me procurarem com uma ideia legal, com certeza isso iria me deixar muito feliz. Vou ser o primeiro a apoiar.

 

Há basicamente três atores em cena na maior parte do tempo. Como você chegou a esses nomes?
Primeiro, fizemos alguns testes. Conversamos com bastante gente, mesmo. Uma das pessoas que testamos online, ainda numa fase de experimentações, foi a Fernanda Vasconcellos. E olha que curioso: ela e a Julia Rabello são da mesma agente que eu. Foi ela, aliás, que leu o roteiro e me indicou para as duas. Fizemos com a Fe, que foi muito bem, e depois chamamos a Julia. Com ela foi ainda mais especial, pois tinha esse gostinho de quero mais, sabe? Ela vem da comédia, e queria mudar, estava disposta a se arriscar. Já o Daniel Infantini vinha do teatro, foi uma aposta que fizemos, e o resultado dele foi surpreendente. Quando vimos, tínhamos já os nossos três atores, e fechamos com eles, nem fomos procurar mais. O filme é todo em cima deles, e era importante para nós termos essa relação de confiança entre nós.

 

Como foi teu trabalho com eles? Muito ensaio?
Até por ser uma produção independente, tínhamos poucos recursos, precisávamos ser rápidos. Decupei todo o filme antes. Sabia exatamente como seria a movimentação dos autores, não tinha tempo para inventar algo diferente na hora. Foram três dias de ensaios, apenas. O texto escrito é o que foi falado, muito em cima daquilo. Precisava ser em cima do que todos haviam estudado. De outra forma, não funcionaria. Por outro lado, foi um baita aprendizado. Com poucos recursos, sem outras locações, sem mudar o rumo da história. Teria que resolver tudo ali, naquele mesmo ambiente, com os mesmo atores.

 

O roteiro foi colaborativo? Houve espaço para improvisações?
Eu abri o roteiro quando estávamos em discussão com os grupos de estudo, e durante esse processo mexi muito no texto. Quando mandei para os atores, ainda antes de filmar, é claro que palpitaram, e gerou outras mudanças. Mas no set, não havia muito espaço para improvisações, não. Era aquilo que tava no roteiro, e precisávamos nos ater a ele. Um improviso aqui poderia gerar um problema lá adiante que não teríamos como contornar. Sem falar que esse é um filme com muitos diálogos, é preciso manter o ritmo, é difícil.

20200822 kaue telloli 00 papo de cinema
Kauê Telloli (sem camisa, ao fundo) em cena de Segundo Tempo

Volume Morto foi selecionado para o Festival de Brasília e teve uma carreira internacional. Como acompanhou esse processo? Como foram as reações?
O Tallinn Black Nights foi antes de Brasília. O Q&A depois da sessão, lá na Estônia, foi incrível. Mas foi aquilo, no dia seguinte já estávamos em Brasília. A grande diferença entre um lugar e outro é que lá fora foi visto como um filme de suspense, de gênero, que é o que ele é de verdade. Mas em Brasília havia um olhar mais político, e isso acrescentou outras camadas de leitura e de interpretação, algumas que nem nós havíamos nos dado conta. Foram duas percepções completamente diferentes. A discussão em um lugar foi completamente diferente de outro. Cada uma tinha o seu teor. São culturas muito distintas, e por isso a coisa muda muito. Tiramos proveito desse aprendizado para os próximos trabalhos.

 

Quais foram as principais observações que você percebeu?
Algumas pessoas amaram, mas outras reclamaram, pois estavam em busca de uma resposta mais clara. Durante todo o processo, desde a feitura do roteiro, questionamos isso, o que seria esclarecido ou não. Está muito gostoso acompanhar isso agora. Tudo é muito lindo, pois cada percepção é válida. Não entendeu? Também é uma observação que levamos para os próximos trabalhos. A proposta era essa, não ser tão óbvio. Esse gostinho de sair e ficar pensando.

 

Você comentou antes que já está envolvido no teu próximo trabalho como diretor. O que pode nos adiantar?
Pois é, vai ser meu terceiro longa. Não é um suspense, dessa vez, é um filme mais terno e gostoso. Fala de uma senhora de 90 e tantos, que mora numa dessas mansões do Morumbi, em São Paulo. Só ela e os funcionários, sem família. Quando ela morre, os empregados decidem esconder o corpo para conseguirem se aposentar. É uma comédia, mas algo leve, sem escracho. Meio argentina, ou também no estilo de Pequena Miss Sunshine (2006) – que é um filme que adoro. Nada muito rasgado.

20200822 kaue telloli 01 papo de cinema
Kauê Telloli (à frente) no set

O quanto a pandemia e a atual política do governo federal de desestruturação da cultura nacional tem interferido no teu trabalho?
A gente tenta seguir, mas é complicado. Estamos trabalhando nesse roteiro, por exemplo, e a vontade é de filmar ainda esse ano, se as coisas permitirem. Depois a gente vai ver como faz, pois tudo é muito difícil. A previsão agora é de lançar daqui dois anos, provavelmente. Essa falta de um olhar para a cultura atrapalha todo mundo, o mercado inteiro. Estava dirigindo um filme do MIS quando começou a pandemia, tive que parar. Outros projetos perderam captação por conta do governo. Não tá fácil. Mas seguimos nos inventando, tentando achar outros caminhos. A solução é resolver as coisas nós mesmos, por isso o Volume Morto, um filme feito sem qualquer tipo de incentivo. Já usei desses recursos, é claro, vários editais nos ajudam. Mas às vezes queremos ser independentes, e fazer acontecer.

(Entrevista feita por telefone em agosto de 2020)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *