Em 2020, o Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema comemorou sua 30ª edição em formato inédito devido à pandemia de Covid-19. Enquanto um número restrito de convidados e jornalistas assistia aos longas-metragens da mostra competitiva no Cineteatro São Luiz, usando máscaras de proteção e respeitando o isolamento social, sessões simultâneas ocorriam via Canal Brasil. Em paralelo, curtas-metragens e debates eram disponibilizados através de plataformas online e do YouTube.
Com a consagração do documentário espanhol A Meia Voz (2020), o festival concluiu uma edição particularmente forte no nível das obras selecionadas, além de bem-sucedida na articulação entre diferentes telas. Os abraços dos colegas de profissão foram trocados pelos acenos à distância, mas pela primeira vez, os títulos do Brasil, Chile, Argentina, Espanha, Venezuela e outros chegaram aos espectadores do Brasil inteiro. O Papo de Cinema conversou com Wolney Oliveira sobre esta experiência singular. Segundo o cineasta e diretor executivo do Cine Ceará, o formato híbrido veio para ficar, e não deve se limitar ao evento cearense:
O ano de 2020 facilitou a seleção, porque havia boas opções esperando oportunidade de exibição, ou dificultou, porque os filmes não tinham condições de finalização?
No ano passado, a curadoria foi feita por Margarita Hernández e Eduardo Valente. O Valente, além de cineasta, crítico e curador do Olhar de Cinema em Curitiba, tem uma ponte fundamental com o Festival de Berlim. Neste ano, por questão de recursos, a Margarita assumiu a curadoria sozinha. Além da crise na saúde, tem a crise financeira. No ano passado, nosso principal patrocinador foi a SP Combustíveis, terceira maior distribuidora de combustíveis do Brasil. Mas esse ano, não tivemos as mesmas condições. A gente teve que fazer alguns cortes, e a Margarita assumiu a curadoria sozinha. Felizmente, a gente vem construindo essas relações desde 2006. Nos últimos anos, filmes como O Clube (2015) escolheram o Cine Ceará para estrearem no Brasil – ele ganhou a mostra competitiva, inclusive. Violeta Foi para o Céu (2011), A Vida Invisível (2019) e Uma Mulher Fantástica (2017) passaram aqui. A seleção de 2020 é muito poderosa: nós temos filmes como Era uma Vez na Venezuela (2020), por exemplo.
Como cineasta, eu fiz quatro filmes: uma ficção, A Ilha da Morte (2007), um docudrama, Milagre em Juazeiro (1999), e dois documentários, Os Últimos Cangaceiros (2011) e Soldados da Borracha (2019). Estou terminando meu quinto documentário, Lampião: O Governador do Sertão. Isso também abre um leque de contatos à Margarita Hernández, uma cubana-brasileira-cearense, e minha ex-companheira. Temos contatos no mundo inteiro, e criamos o MAN – Mercado Audiovisual do Nordeste, que teve a quarta edição no ano passado. No entanto, não conseguimos fazer a quinta edição esse ano. No ano passado, vieram pessoas de Cuba, Argentina, Espanha e outros países para o encontro de coprodução. O Cine Ceará já se consolidou como um dos principais festivais de cinema do país, e por isso, muitas pessoas oferecem seus filmes hoje. Claro, ainda descobrimos filmes interessantes e procuramos por eles. Mas diversas produções buscam diretamente o Cine Ceará, então orientamos que se inscrevam para passar pela curadoria.
Sempre fizemos questão que o formato do Cine Ceará permitisse ao cinéfilo, ao crítico e ao estudante ver toda a programação, se quiser. Os longas da mostra competitiva passam à noite, com a Mostra Olhar do Ceará à tarde, os curtas no Canal Brasil etc. Este ano foi muito desafiador. Depois da pandemia, desde o mês de março, somos o único evento audiovisual no país em formato híbrido. No ano passado, não couberam no cinema todas as pessoas que queriam ver A Vida Invisível, por exemplo. Então é estranho: antes via o cinema lotado, e hoje tem apenas 144 pessoas, porque todo cuidado é pouco. Sanitizamos os ambientes, precisamos tomar precauções. No final, tivemos que fazer dois festivais: o presencial e o virtual, o que representou um trabalho dobrado. Mas a experiência com o Canal Brasil e a TV Ceará foi ótima. Espero que em 2021, toda a história da pandemia tenha sido resolvida. Mesmo assim, queremos renovar a parceria com eles.
Então podemos esperar o formato híbrido de agora em diante?
Pretendemos manter o festival em formato híbrido daqui para frente. Eu estava vendo uma live do Canal Brasil com os diretores Belisário Franca (Nazinha Olhai por Nós), Eduardo Morotó (A Morte Habita à Noite) e Victor Furtado (Última Cidade). Anteontem, assisti à entrevista inteira de uma hora e meia de duração, com mais de 5,2 mil visualizações. Vamos ter o balanço exato de quantas pessoas assistiram ao Cine Ceará no Canal Brasil, na TV Ceará, no YouTube, mas acredito que tivemos bons resultados. A pandemia obrigou o setor artístico a criar alternativas, enquanto o audiovisual contribuiu muito à experiência da quarentena. Passei cinco meses sem sair de casa, ouvindo Tim Maia, por exemplo. Sem a arte, a gente enlouqueceria. A decisão de fazer o festival também em formato presencial seguiu os protocolos de segurança adotados pelo governo do Estado. Conversamos com os outros festivais: Gramado, Cine PE, Brasília, Festival do Rio, e todos discutem estes formatos possíveis. O Canal Brasil também gostou deste formato, porque eles podem exibir filmes inéditos de Gramado, Cine Ceará e outros. Foi bom para todo mundo.
O medo da exibição online costuma vir da possibilidade de desprestigiar a exibição em salas de cinema.
O Cineteatro São Luiz é uma das salas com melhores equipamentos de projeção em todo o Ceará. Nada substitui a experiência de ver um filme neste templo sagrado: o São Luiz foi construído nos anos 1950, e para mim, é um dos cinemas mais bonitos do Brasil. O fato de ver um filme diante da tela grande oferece uma experiência totalmente diferente daquela de ver na televisão ou computador. É claro que as exibições em casa eram a possibilidade que tínhamos durante este período. Por estas razões, optamos pelo formato híbrido. O filme de encerramento, O Silêncio da Chuva, teve sua primeira exibição presencial no Brasil durante o Cine Ceará. Lançar o projeto no cinema, ou diretamente na televisão, traria resultados bastante diferentes. Enquanto diretor de cinema, acompanhei Soldados da Borracha no É Tudo Verdade, e deveria exibi-lo em março no Festival do Panamá, um dos eventos latino-americanos que tem mais crescido nos últimos anos, mas ele foi cancelado. Para o espectador, para o diretor, para o artista, a oportunidade do lançamento presencial é fundamental. Conversei com Eduardo Morotó, que ainda não conhecia o Cine Ceará, e ele me confessou que esta experiência de exibição era fundamental para ele. Ao mesmo tempo, temos receios, é claro: nem posso abraçar meus amigos por motivos de segurança.
Você disse durante a apresentação da 30ª edição que uma das preocupações do Cine Ceará se encontrava no tripé produção-formação-difusão. Como isso se sustenta em 2020?
Eu sou da primeira geração da Escola de Cinema de Cuba. Tive o prazer e a honra de fazer parte desta turma. Estudei em 1986, mas quando voltei, em 1993, a única possibilidade de fazer um curso de cinema no Brasil era ingressar na UnB, em Brasília, na ECA-USP, em São Paulo, ou na UFF, no Rio de Janeiro. Meu pai não tinha condições de pagar isso. O primeiro projeto que desenvolvi, atrelado ao Cine Ceará, se chamava Luz, Câmera, Imaginação, em 1995. A ideia era trazer Orlando Senna, Nelson Pereira dos Santos, Flávio Tambellini e outros para darem cursos de produção, roteiro, som etc. Depois a gente produzia três curtas, selecionados no curso de roteiro do Orlando Senna e exibidos no Cine Ceará. O festival sempre se preocupou com produção, formação e difusão, sem esquecer a política do cinema brasileiro.
Foi o Cine Ceará que articulou a criação da Associação de Produtores de Cinema do Norte e Nordeste – na época, batizada por Gilberto Gil, durante o Cine Ceará. Em 2017, a gente juntou a APCNN, incluindo o Centro-Oeste e construindo a Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Fui o primeiro diretor-presidente, representando o Nordeste. Toda esta efervescência de formação do audiovisual cearense, o fato de termos dois cursos superiores de cinema, além do curso sequencial da Vila das Artes, o Porto Iracema das Artes, com o Cena 15 de Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado, foi ajudado pelo Cine Ceará. Este ano exigiu adaptações, mas no ano passado, tivemos cursos de direção de atores, consultoria jurídica e muitos outros. Temos uma preocupação central em fazer políticas que permitam fazer cinema. Infelizmente, no nosso país, se você não fizer política, não faz cinema.
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