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XI Festival Pachamama :: “Chamamos atenção ao potencial do cinema enquanto ferramenta de luta, conscientização e conhecimento”, explicam os organizadores

Publicado por
Bruno Carmelo

Neste sábado, 15 de maio, se inicia o XI Festival Internacional Pachamama – Cinema de Fronteira. Pela primeira vez, o evento focado na tri-fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru é realizado de modo online e gratuito, em adequação ao contexto de pandemia. Até 22 de maio serão apresentadas dezenas de longas e curtas-metragens, tanto de jovens realizadores, diretores que despontam no cenário autoral e três veteranos, homenageados da edição 2021: o brasileiro Geraldo Sarno, o argentino Fernando Solanas e o mexicano Paul Léduc.

Que mudanças o festival precisou efetuar para se adequar ao formato online? Que forma de resistência ele propõe, dentro de um cenário cultural de crise? O Papo de Cinema conversou com a produtora executiva Karla Martins, o diretor artístico Sérgio de Carvalho e o diretor de programação Marcelo Cordero sobre as escolhas desta edição. Eles efetuam uma bela ponte entre o cinema radical em termos estéticos e o cinema radical em termos políticos. Confira este bate-papo e descubra as nossas críticas e informações sobre os filmes selecionados na matéria especial do XI Festival Pachamama:

 

Sérgio de Carvalho, Karla Martins e Marcelo Cordero. Foto: Arquivo pessoal

 

Como organizaram o Pachamama este ano, após um ano de 2020 sem edição do festival?

Sérgio de Oliveira: No passado, a gente já fez o festival sem nenhum recurso, apenas apoio logístico do governo. Até pensamos em desistir, talvez na sexta ou sétima edição, por falta de patrocínio. No primeiro ano, o Pachamama foi uma Mostra pequena de tri-fronteira: Brasil, Peru e Bolívia. No segundo ano, a gente foi aprovado no Petrobrás Cultural, o que garantiu o crescimento do festival. Assim foi, até o golpe de 2016. Depois, sempre foi um mistério para a gente descobrir como conseguiria recursos: às vezes um pouco vinha do Banco da Amazônia, dos editais estaduais e municipais, de emenda parlamentar etc. Ano passado, com a pandemia, sem patrocínio e tendo que lidar com uma tecnologia relativamente nova, a gente se sentiu inseguro para realizar o festival. Entendemos que não daria para fazer. A Karla não estava em Rio Branco no ano passado, e ela é fundamental para esse processo acontecer. Ano passado, já não tinha condição nenhuma de fazer o festival de modo presencial. Este ano, tivemos uma mudança de data que gerou uma queda de braço com a Fundação de Cultura aqui. Eles queriam que o projeto tivesse grande parte presencial, mas entendemos que isso iria contra a mensagem que pretendemos passar neste momento.

Karla Martins: Apesar da pandemia, existia uma vontade de resistência, e digo não apenas do Pachamama, mas de todos os festivais de cinema. Ao mesmo tempo, alguns fazedores não se entendiam no lugar de tirar o seu filme da grande caixa para a caixinha. Para mim, o maior desafio quando eu penso o festival é lidar com a nossa compreensão, habituada ao festival presencial, sabendo que precisamos articular um novo canal de recepção para um processo de resistência. Além disso, são outras magias, e quem produz audiovisual resiste muito a isso. Algumas pessoas têm o filme pronto há mais de um ano, mas ainda seguram para estrear nos cinemas num futuro, quem sabe se Bolsonaro cair ou se vier o milagre da multiplicação das vacinas. Mas a gente não volta aos cinemas no Brasil ainda esse ano. Mesmo no ano que vem, devemos voltar a um formato híbrido durante muito tempo. Por mais que a gente esteja louco para sair de casa, imagino que reste certo medo de frequentar um espaço fechado e público. Tenho acompanhado muito as agendas internacionais de festivais, e nos países que vacinaram todo mundo, as previsões são para a retomada em agosto em espaços abertos, mas nada muito definido para espaços fechados. Nosso maior desafio, preparando um festival de cinema, foi entender que essa situação não é passageira. Ela vai demorar um tempo, e precisamos lidar com ela. Fiquei pensando inclusive no vazamento do Marighella (2019). O que isso significa para quem faz um filme esperando a magia da caixa grande? A gente não vai ter essa magia da sala de cinema fechada, como ela sempre existiu, por muito tempo. Estamos lidando com algo novo, e o gesto de resistência significa fazer em versão online, porque dessa vez tivemos aporte financeiro. Temos que chegar nesse público do computador, porque a gente não está sozinho nesse momento. Estamos isolados, mas não estamos sós. Apesar de incômoda, existe uma ideia fascinante de ter acesso aos filmes pelo celular. No primeiro governo Lula, quando fizeram uma pesquisa nacional, descobriram que 90% das pessoas nunca tinha entrado numa sala de cinema. Foi isso, inclusive, que motivou os editais de cinema. Agora, quantas pessoas vão poder acessar o festival? E aqui no Acre? Estamos no Norte do Brasil, com a pior banda larga de Internet do país. Mesmo assim, o formato online converge a uma política assertiva e inclusiva.

Sérgio de Carvalho: Eu olhava com muita desconfiança para os festivais virtuais. Pensava que o Pachamama não se encaixaria nesse formato, por causa dos encontros que sempre promoveu. As pessoas vinham dos países de fronteira para visitar o festival, inclusive. Mas esse ano eu me dediquei a acompanhar dois festivais online, e foi incrível. Eu nunca poderia assistir aos filmes do É Tudo Verdade estando aqui no Norte, sem o suporte online. Percebi o poder de descentralização e democratização do formato.

 

 

Como chegaram ao tema “Mirações, a transcendência, um outro mundo possível”?

Sérgio de Carvalho: Tudo o que estamos vivendo, politicamente e com a pandemia, tinha que estar expresso de alguma maneira. A gente debatia o tema desta edição, e sempre vinha a ideia incômoda de “novo normal”. Mas não era possível voltar ao normal, afinal, foi ele que nos trouxe até aqui. Começamos a pensar num momento posterior, pelo ponto de vista da Amazônia. Veio a questão dos estados visionários nas comunidades indígenas: a Ayahuasca é muito forte aqui no Acre. Ela também é conhecida como “cinema de índio”, porque estes povos tomam a Ayahuasca para terem imagens, mirações e sonharem um novo mundo. A gente queria que o cinema feito neste momento pudesse, como a Ayahuasca, apontar um outro caminho para seguir. A definição é mais sensorial do que objetiva. Ela decorre do sentimento de necessidade de transcendência dessa sociedade em que vivemos hoje. A ideia não era pensar uma volta ao “normal”, e sim apontar outro normal, um estágio transcendente de arte e de realidade, tendo o cinema como uma das ferramentas possíveis para estas mirações, que é o nome das imagens vistas a partir da Ayahuasca.

Karla Martins: Existe uma questão: para onde estamos olhando? Quem vai contar a história da pandemia, de maneira histórica, e também reflexiva para a sociedade? Esse será o exercício mais importante para nós brasileiros, depois do insucesso das medidas protetivas aqui no país. O Pachamama já teve como eixos “Veja o mundo com novos olhos”, “Política e resistência”. Ele é um espaço de resistência, que comunga com o lugar de onde ele vem: a floresta. Ninguém sai intacto de uma miração de Daime: você transcende de alguma maneira. A gente pensava na transcendência deste tempo que está por vir. Agora, estamos com os pés no chão, sem capacidade de transcender porque a realidade pesa muito, mas acreditamos nesta miração, não apenas pela Ayahuasca, mas pela capacidade de olhar para os nossos tempos e enxergar adiante. O tema precisava trazer uma esperança para pensar adiante. A gente já teve uma mostra chamada “Cinema de miração”, e já passamos O Abraço da Serpente (2015) aqui, além de outros filmes falando de Ayahuasca. Para além dos psicotrópicos, estamos falando de substâncias que transcendem.

 

Pano de Chão, filme da Mostra Cinema É Política

 

De que maneira a representatividade de gênero, étnica e regional norteou a seleção?

Sérgio de Carvalho: Estas questões sempre estiveram em pauta, e apareciam em todas as nossas discussões internas. Esse ano, convidamos os filmes, ao invés de abrirmos a convocatória tradicional, por causa do prazo apertado. Optamos por fazer a curadoria apenas com o Marcelo Cordero, diretor de programação, e o Marcelo Miranda, curador brasileiro. Nos outros anos, a curadoria pensava muito em termos de países: Brasil, Peru e Bolívia, além da tri-fronteira que inclui o Acre. Hoje, entendemos que é fundamental ter um olhar de gênero, raça e etnia. Nas próximas edições, vamos olhar em profundidade para além da nacionalidade.

Marcelo Cordero: A curadoria está composta por pessoas dos três países, primeiro com a intenção de representatividade. O festival é articulado em torno do tema da fronteira, e a curadoria estabelece critérios capazes de unir estas produções. O festival Pachamama tem duas tendências: primeiro, a dos filmes da mostra competitiva, tanto longas-metragens quanto curtas-metragens. Para esta mostra, privilegiamos obras pequenas, minimalistas, experimentais e de risco estético e visual. São filmes que usam a linguagem audiovisual como meio de discurso e provocação. Em relação a outros festivais, existe um alinhamento com Valdívia, FICUNAM e Transcinema, por exemplo. Vivemos num continente onde o cinema de receita tomou conta. Precisamos formar público, especialmente num território como o Acre, onde existem poucas conexões com tendências cinematográficas nacionais e internacionais. Neste contexto, montar uma programação apenas com este cinema autoral seria suicídio, então tratamos de equilibrar com uma forma de cinema mais tradicional e comercial. São os filmes que compõem as outras mostras. Deixando de lado os critérios estéticos e de gênero, tratamos de encontrar outros discursos cinematográficos produzidos nas periferias. Isso ultrapassa as questões de “cinema de autor” e “cinema comercial”, chegando ao cinema enquanto ferramenta política, para discursos sindicais, de direitos humanos, assim por diante.

Sérgio de Carvalho: Além da preocupação com a linguagem cinematográfica, o festival tem uma veia militante. A gente se posiciona sobre alguns temas com a Mostra Cinema É Política, a Mostra Identidade, voltada aos direitos humanos, a Mostra Originários (que se chamava Mostra Índio, mas corrigimos o nome após conversas com os parceiros). O festival está se repensando. Ele encerrou um ciclo muito voltado à conexão latino-americana. A gente estava muito bem relacionado com redes ligadas ao Chile, Bolívia e Peru, mas tínhamos pouca ligação com a Amazônia. Há umas quatro edições, temos feito um esforço para estabelecer maiores conexões com esta região. Este ano, um ponto positivo vai ser o primeiro encontro entre festivais da região Norte, para discutir curadoria, e para a gente se conhecer, pensando em novas redes. Isso vai desde o Guarnicê, o segundo mais antigo do Brasil, ao Pachamama e ao extinto festival de Manaus. Estamos num momento de efervescência. Mas sempre tivemos estes dois braços: o cinema autoral, ou seja, o cinema pelo cinema, principalmente na mostra competitiva, e as outras mostras compostas por questões ambientais, políticas etc.

Karla Martins: Esse é um caminho sem volta. Nunca mais vamos conseguir fazer os eventos artísticos e culturais sem pensar nas consciências de representatividade do nosso tempo. Estou sendo parceira agora de um festival LGBT, mas alertei que esse seria meu primeiro e último ano, porque isso precisa ser feito por uma pessoa LGBT. Isso é fundamental em termos de representatividade e pensamento. Estamos num momento de encontrar equilíbrios: em alguns filmes, a estética é impressionante, e o conteúdo representa os nossos tempos. Em outros casos, a estética não é tão boa, mas o conteúdo diz algo que precisamos escutar. Acredito que o festival combine estes dois aspectos. Eu tive um grande mestre de teatro que me dizia: “O melhor ator é 50% técnica e 50% coração. Em caso de dúvida, bote os 50% de coração, porque estamos falando de humanidades, enquanto a técnica fala de perfeição, o que não é um estado de igualdade”. Essa fala do Barba me norteia para pensar o festival. Como não falar de indivíduos LGBT, pretas e pretos, índios? Temos grandes cineastas indígenas aqui no Acre. Por que os filmes indígenas precisariam da anuência de cineastas e público não-indígena? Essas obras existem, e pronto. Se existem, elas têm um espaço, e precisamos garantir isso.

Marcelo Cordero: Trabalhamos com o cinema indígena e comunitário, entendido não apenas como produto artístico com ambições estéticas, mas também uma ferramenta para representar tensões políticas, sindicais e de denúncia. Dentro do Pachamama, temos a competitiva de Cinema Comunitário, onde não participam profissionais, e sim pessoas comuns que veem na câmera uma ferramenta. O Pachamama tenta combinar o cinema autoral e outros discursos possíveis de elaborar a partir do dispositivo. A competitiva também é pensada enquanto forma de provocação e resistência à produção comercial que domina o cinema e a televisão.

 

Sertânia, de Geraldo Sarno

 

De que maneira definiram Paul Léduc, Fernando Solanas e Geraldo Sarno como homenageados desta edição?

Marcelo Cordero: Paul Léduc é uma das referências do cinema mexicano. Vamos passar Reed, México Insurgente (1970), a história do México revolucionário do século XX. Ele faleceu no ano passado, e quisemos abrir este pequeno espaço no festival para honrar a sua memória. Vamos estrear a cópia restaurada aqui no Pachamama. O mesmo vale para La Hora de los Hornos (1968), de Octavio Getino e Fernando Solanas, que também faleceu no ano passado. Ele foi um dos grandes mestres do cinema latino-americano. Agora trazemos algo novo: as cópias que recebemos são as versões restauradas e reeditadas por Solanas antes de morrer. Temos uma nova sincronização, nova tradução e legendagem de vários trechos do filme. Este é um espaço para resgatar referências da história do cinema latino-americano. Em tempos de Bolsonaro, quando a cultura é atacada, tanto os filmes de Leduc quanto de Solanas são fundamentais para que o Pachamama contribua à reflexão sobre a luta histórica de liberação enfrentada pelos povos latino-americanos desde antes do século XX. Com estes dois filmes, chamamos atenção ao potencial do cinema enquanto ferramenta de luta, de conscientização e de conhecimento sobre a história latino-americana.

Sérgio de Carvalho: O Geraldo Sarno é um cineasta que também registrou as transformações do país, enquanto homem do Nordeste, com uma cinematografia incrível. Ele foi pouco homenageado em festivais brasileiros, se você pensar o tamanho da obra que construiu. Este ano, estamos homenageando dois grandes cineastas in memoriam: o Solanas e o Leduc. Por isso, consideramos muito importante fazer esta homenagem com o Sarno em vida, destacando o brilhantismo dele. Além disso, com mais de 80 anos, ele fez a obra-prima Sertânia. Os três diretores são da mesma geração: o Sarno no Brasil, Solanas na Argentina, e Leduc no México, com o mesmo anseio de retratar as questões políticas do seu tempo. Eles dialogam muito bem entre si, e este era o ano perfeito para homenagear Geraldo Sarno.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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