Indiscutivelmente uma das maiores atrizes do Brasil, Irene Ravache é exemplo de excelência seja nos palcos, nas telinhas e também nas telonas. Dona de uma carreira que se estende por mais de cinco décadas, ela se define como uma filha do teatro, porém apaixonada por cada um dos muitos e adoráveis personagens que já interpretou na televisão. O que lhe falta, segundo ela própria, é uma proximidade maior com a sala escura. No cinema, estreou como uma das protagonistas do thriller Geração em Fuga (1972), de Maurício Nabuco, aparecendo ao lado de Iara Lins e Edgard Franco. Atuou em clássicos, como Doramundo (1978), de João Batista de Andrade, premiado como Melhor Filme no Festival de Gramado, e Que Bom te Ver Viva (1989), da Lúcia Murat, que lhe rendeu o candango de Melhor Atriz no Festival de Brasília. Mas essas aparições sempre foram esporádicas. De um tempo para cá, tem se especializado no papel da “mãe”: do Murilo Benício, em Amores Possíveis (2001), do Alejandro Claveaux, em Os Homens são de Marte… e é pra lá que eu Vou (2014), e do Fabio Porchat, em Entre Abelhas (2015). Entre estes trabalhos, no entanto, um se destaca: a figura materna distante e independente que defende com bastante intensidade no drama Yvone Kane (2015), uma coprodução com Portugal filmada em Moçambique. Após anos de espera, esse premiado longa chegou, finalmente, aos cinemas brasileiros. E nós conversamos com a atriz para saber um pouco mais sobre sua participação e, claro, sobre sua paixão pela sétima arte. Confira!
Como você se envolveu com Yvone Kane?
Foi logo após as filmagens de A Memória que me Contam (2012), o segundo filme que fiz com a Lúcia Murat. Como se tratava de uma coprodução entre Brasil e Portugal, isso despertou a minha curiosidade de imediato. Nunca tinha ouvido falar dessa diretora, a Margarida Cardoso, mas fui pesquisar e só li coisas boas a respeito. Ela é mais reconhecida como documentarista, este foi recém seu segundo longa de ficção. O primeiro tem um título muito bonito, se chama A Costa dos Murmúrios (2004). E sou muito grata a Portugal por terem estes nomes tão belos. Lá é o único lugar onde o cemitério se chama Dos Prazeres, né?
Como você mencionou, Yvone Kane é uma coprodução entre Brasil e Portugal. Como foi feita essa divisão?
De brasileiros, éramos só três envolvidos: dois técnicos de som e eu. Mas foi uma grande aventura, que adorei ter feito parte. As filmagens foram em Moçambique, para teres uma ideia. Quando teria outra oportunidade como essa? Além disso, tive a oportunidade de trabalhar com atores interessantíssimos. Essa atriz portuguesa, a Beatriz Batarda, que faz a minha filha no filme, é considerada, no seu país, a melhor de sua geração. Ela nasceu na Inglaterra, mas mora em Portugal há anos. Mesmo assim, faz, de vez em quando, alguns trabalhos na televisão inglesa. E ela é muito ativa: estava, também, em A Costa dos Murmúrios, trabalhou com o Lázaro Ramos em O Grande Kilapy (2012), com o Jeremy Irons no Trem Noturno para Lisboa (2013), e há pouco passou pelos cinemas brasileiros no drama Colo (2017), que concorreu no Festival de Berlim deste ano. É uma grande atriz, e foi uma parceira incrível. Foi um prazer imenso trabalhar com ela, além de muito fácil.
Como foi a questão da voz? Você precisou trabalhar o sotaque?
Um alívio foi que o sotaque de Moçambique, ainda que a língua oficial seja o português, é mais parecido com o nosso do que com o de Portugal. É mais aberto. As vogais não são tão apertadas. A minha personagem é meio indefinida. Você não sabe se ela é portuguesa, se nasceu em Moçambique ou se é brasileira. Pode ser qualquer coisa. Ela é uma médica, e tem uma doença terminal. Quando começou a Guerra Civil, que lá durou 20 anos, ela mandou os dois filhos para fora do país, os enviou para a Europa, mas ela ficou. Trabalhando, e envolvida na luta.
Yvone Kane foi filmado há uns cinco anos, certo? Por que demorou tanto para chegar às telas?
Bom, a crise na Europa explica um pouco. Portugal, assim como muito dos seus vizinhos, passou nos últimos anos por momentos bem complicados. E quando se precisa espremer os custos, a primeira fatia a sofrer, invariavelmente, é a da Cultura.
Quem é Yvone Kane?
A Yvone Kane é uma amiga da Sara, a minha personagem. É um nome fictício, claro. Mas ela representa muitas coisas. Yvone Kane, na nossa história, foi uma guerrilheira, que teve uma atuação muito importante na Guerra Civil de Moçambique. Estes elementos são muito próximos com aqueles vistos em A Memória que me Contam. Pois a Yvone é uma amiga que foi guerrilheira e está ausente, já morreu. Se fala muito dela, mas ela não está em cena. É o mesmo que acontecia com a Ana, vivida pela Simone Spoladore no filme da Lúcia. A presença das duas é muito forte, ainda que já tenham partido.
O filme, então, tem como foco essa relação de mãe e filha?
Exato. A filha, vivida pela Beatriz, volta para Moçambique com o pretexto de fazer um trabalho sobre a Yvone. Ela é uma jornalista. Faz muito tempo que não vê a mãe, e logo no começo descobrimos que ela própria acabou de perder uma filha, ainda criança. É uma história muito feminina.
Como foi essa experiência de filmar em um lugar tão distante?
Foi uma loucura. Enquanto estávamos filmando, isso lá no início de 2012, sabe qual era o programa mais assistido na televisão em Moçambique? A novela Passione (2010-2011). E era uma coisa inacreditável, um verdadeiro fenômeno. O retorno do público era muito maior do que o que estamos acostumados a ver no Brasil. E tem outra: ninguém imaginava que eu pudesse estar lá. Aquela personagem, a Clô, era uma deslumbrada, a rainha do lixo, todo mundo ria muito com ela. Eles adoravam. Teve uma vez, durante estes dias, em que fomos filmar num cemitério. No meio do trabalho, passou um cortejo por nós. Era um carro, e dentro dele havia quatro senhoras, todas de preto, com luvas brancas, chapéu e véu. Através dele vinham os demais, a pé. E estavam cantando, todas enroladas em suas capulanas – aquele tecido, colorido, que usam para tudo. É uma peça muito importante na indumentária deles.
E vocês pararam tudo para presenciar o cortejo?
Sim, interrompemos tudo. Alguns ficaram sentados, mas decidi ficar de pé, esperando o cortejo passar, mas também num sinal de respeito. Quando o carro passava bem na minha frente, uma daquelas senhoras, que só chorava, olhou de repente para mim e disse: “Clô?”. E o carro seguiu. Eu, bem séria, só concordei com a cabeça. Depois fiquei pensando: “o que será que essa senhora deve ter pensado?”. Afinal, para mim já havia sido uma coisa louca! Eu estava na África, no meio de um enterro, e me veem como uma das minhas personagens? É muito maluco.
Tem um filme teu que gosto muito, tanto da história, como da tua personagem, que é o Amores Possíveis (2001).
Ah, aquele filme foi uma delícia. Gostosíssimo de fazer. Eu não conhecia o Murilo naquela época, mas a química entre nós foi instantânea. Faço a mãe dele, ou melhor, três versões dessa mãe. Foi olhar e dar certo. Embarquei muito no que a Sandra Werneck, a diretora, queria e propunha para nós, atores. Foi um filme que chegou numa hora tão gostosa da minha vida. Sem falar que o retorno do público foi muito bacana, ganhei até alguns prêmios (N.E.: Ravache foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e premiada como Melhor Atriz Coadjuvante no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami).
Amores Possíveis foi um filme que surgiu num momento importante para o cinema brasileiro, bem no começo da retomada.
O mais importante, no caso dele, é que era uma história muito bem contada. A ideia de mostrar os mesmos personagens, porém em três tempos diferentes, em três possibilidades deles, foi uma grande sacada. Gosto muito daquele roteiro. Como gosto, também, do filme que fiz com o Roberto Bomtempo. Acho uma joia.
Você está falando do Depois Daquele Baile (2005), dirigido pelo Bomtempo, no qual você vive um triângulo amoroso com o Lima Duarte e o Marcos Caruso.
Aquilo tudo foi muito bonito. A gente conhece, no nosso dia a dia, todas aquelas pessoas. É fácil se identificar com elas.
Você nunca teve vontade de dirigir?
Cinema? Não, nunca. Eu escrevi, uma vez, uma ideia, um argumento para um roteiro. Seria um curta, sobre uma visita à casa paterna. No caso, dos meus avós. Eles tinham uma casa muito bonita, que ficava no caminho do Corcovado. Você precisa tomar o bondinho para chegar nela. E, nas minhas lembranças, quando você tomava o bondinho, como ela ficava escondida, no meio das folhagens, ela ia se mostrando aos poucos. É uma casa em estilo normando, muito bonita, com pedras, madeiras. Só que foi vendida para um casal de professores. O marido era muito fã do meu avô, achava ele uma figura muito diferente – e ele realmente era. Nesse roteiro, a casa é colocada à venda outra vez, e está vazia. É quando os netos vão visitá-la pela última vez. Eles sobem pelos três caminhos diferentes que existem para chegar nela: pelo próprio trem, de carro ou a pé, pelos trilhos, que é uma coisa que a gente fazia muito, quando criança. Eles se reúnem lá em cima, alguns casados, outros não, ou seja, cada um com a sua vida.
São quantos personagens ao todo?
São sete personagens, sete netos. Quando entram na casa, duas delas sobem, e começam a abrir as janelas. As meninas, lá de cima, fazem um comentário sobre uma linda mangueira que tem no jardim. Quando se afastam e descem, os que já estavam lá embaixo olham para cima, de novo, e ficam com a impressão de terem visto alguém. Teriam outras pessoas na casa? Ou foi o reflexo do sol? A sensação é de que ficou alguém lá em cima. Porém, à medida que vão passeando pela casa, as pessoas vão aparecendo. São os que já morreram, mas que ainda estão por ali. Só que estão de uma forma muito agradável, não há nada de fantasmagórico. Não são assombrações, são apenas sombras, lembranças, memórias. A casa está povoada. E os netos não falam dessas impressões entre si. Cada um tem a sua própria experiência. Na hora de irem embora, decidem voltar todos no mesmo carro. E ao se acomodarem, acabam olhando para o portão. E o que veem? Todos estão lá, cada um com o seu fantasminha.
Esse tema, da memória, parece muito caro para ti. E até está bem explícito, claro, em A Memória que me Contam, da Lucia Murat.
Sim, com certeza. Neste filme, já durante os ensaios, sempre que possível dava os meus pitacos. Experimentamos muito antes das filmagens. Nele, no entanto, aquele núcleo de amigos já chegou pronto para nós, atores. E o melhor: nós que estávamos ali, reunidos, também éramos amigos entre si. Era a primeira vez que trabalhei com o Hamilton Vaz Pereira, por exemplo, mas foi bater o olho e tudo fluiu. Isso foi o que mais gostei neste filme. Sem falar, é claro, da convivência com o Franco Nero.
Pois então, como foi trabalhar ao lado do grande Franco Nero?
Ele é o Django, né? O Franco chegou pelo Rio, o vi pela primeira vez em Copacabana. Mas as filmagens foram em Paulínia, e fomos todos juntos para lá. Na primeira semana, ficamos mais sozinhos. Eu tinha mais volume de trabalho, e ele precisava filmar logo a parte dele, para se liberar e ir embora. De manhã, quando estávamos tomando café, era muito curioso. Estávamos sentados na mesma mesa, daí tocava o meu celular, era o meu marido. Só que quando tocava o celular dele, era a Vanessa Redgrave (risos)! E quando desligava, vinha falar comigo: “to muito preocupado, a Vanessa não está bem”. Era uma coisa louca. Quando percebi, estava dando sugestões para ele sobre como lidar com a esposa dele. Éramos dois confidentes. Foi um momento complicado para eles, pois logo após ao acidente que resultou na morte da filha dela, a também atriz Natasha Richardson (1963-2009). Eles ainda estavam passando pelo luto, e tudo que eu podia dizer era: “é melhor se acostumarem, pois essa dor não vai acabar nunca”. Só que no dia seguinte ele vinha de novo: “Irene, sabe o que me preocupa? A Vanessa fuma demais!”. E lá ia eu dar sugestões para a Vanessa Redgrave largar o cigarro (risos).
De todo o elenco, você foi a que ficou mais próxima dele, pelo jeito?
Pois é. Ele dizia que eu era muito gentil. Sou dona de casa, né? Tenho um jeito para lidar com as pessoas. No começo ele estranhou um pouco o nosso set, achou meio bagunçado. Técnicos passando, pessoas fazendo gestos que ele não compreendia. “Vou falar com a Lucia a respeito”. E eu tentando acalmá-lo: “não, deixa assim, aqui é desse jeito que funciona”. E ele me olhava com espanto: “mas em lugar nenhum do mundo é assim!”. Então, demorou um pouco para se adaptar, mas logo estávamos bem entrosados. Ele dizia que eu tinha “muito bom senso”. Mas isso foi até me convidar, num dia de folga, para ir numa corrida de motocicletas. Ele é louco por esportes. Só olhei e disse: “com todo aquele barulho? É lógico que não vou”. Ele ficou ‘quase’ ofendido. “Você vai me deixar ir sozinho?”. E eu: “mas é claro. Amanhã vou é dormir!”.
Você fez dois filmes com a Lucia Murat, porém com um intervalo de mais de vinte anos entre eles. O que mudou nesse meio tempo?
Quando fizemos o Que Bom Te Ver Viva (1989), era tudo muito recente, ainda. Digo em relação à Ditadura Militar. Com o A Memória que me Contam, no entanto, já havia um distanciamento maior. Só que o mesmo tema voltou. Talvez essa distância tenha ajudado. Não sei. Afinal, já são os nossos netos. Eu sou avó de um rapaz de mais de vinte anos, que estudou Escola Dramática. E ele foi criado por pais com uma outra cabeça, diferente da dos meus, por exemplo.
Por que você faz tão pouco cinema?
Eu faço pouco cinema, é verdade. Mas é porque tenho poucos convites. E acontece, também, de alguns chegarem até mim num momento em que já estou comprometida com outra produção. Ou pode ser que não me atraiu. Às vezes, no entanto, o que parece é que me veem mais ligada ao teatro, depois à televisão, e só por fim ao cinema.
Essa é, também, a tua ordem de preferência?
Não necessariamente. Eu me vejo, acima de tudo, como uma atriz de teatro. Sinto muita falta quando não estou no palco. Mas gostaria que o cinema viesse logo em seguida. Só me falta fazer mais. Não sei porque não sou uma prima-irmã, acabam me colocando como uma parente distante. Porque gosto muito de fazer cinema. Gostaria que fosse mais próximo. Só que depende de lembrarem de mim, né?
Isso que você tem mais de 40 anos de cinema.
Sério? Não lembro disso. Nossa, você deve estar sabendo mais do que eu. Mas o fato é que não sou muito convidada. Acontece também, às vezes, de me convidarem para coisas que fico imaginando “como pensaram em mim para fazer isso?”. Delicadamente, agradeço, mas se não é o que imagino, não faço. Por outro lado, há muitos filmes que vejo e penso: “puxa, isso tem a minha cara, por que não lembraram de mim?”. Ou seja, são coisas que acontecem.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre)
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