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Há alguns meses, Zombi Child (2019) estava prestes a estrear nas salas de cinema quando o lançamento foi afetado pela pandemia de coronavírus. Mesmo assim, a produção selecionada nos festivais de Cannes, Nova York e BFI Londres chega a diversos serviços de streaming como iTunes, Google Play, Now e YouTube nesta quarta-feira, 29 de abril.

O diretor Bertrand Bonello, de Saint Laurent (2014) e L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância (2011), mergulha na cultura haitiana para retratar a vida dos zumbis que, de acordo com a tradição vodu, transitam entre a vida e a morte, podendo voltar à vida normal. Enquanto o zumbi Clairvius tem sua força de trabalho explorada no Haiti dos anos 1960, na França de cinquenta anos mais tarde, uma adolescente negra entra para uma das escolas mais elitizadas da França, onde suas origens familiares serão fonte de curiosidade e conflitos. Aos poucos, o passado e o presente se unem de maneiras surpreendentes. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta francês sobre o projeto:

 

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Bertrand Bonello (à esquerda) com o elenco de Zombi Choild em Cannes. Foto: Quinzaine des Réalisateurs / Susy Lagrange

 

De onde vem o interesse pela cultura haitiana e pelo vodu em particular?
Eu tenho um amigo que estava fazendo um filme no Haiti há quinze, vinte anos, e ele me falou bastante sobre aquele país. Eu me interessei e comecei a ler diversos livros a respeito. Quando se lê sobre o Haiti, você rapidamente chega ao vodu, e quando lê sobre o vodu, imediatamente encontra a figura dos zumbis. Foi assim que cheguei à história de Clairvius. Então o meu interesse nasce dessa conexão pessoal. Dois anos atrás eu buscava um filme diferente para fazer, com novo modo de produção mais enxuto e ágil. Eu também tinha vontade de sair da França para explorar outros cenários, então me lembrei dessa história que li mais uma vez. Esse foi o ponto de partida do filme. Em seguida, precisei encontrar o melhor ponto de vista, porque sou francês e branco, então seria difícil eu falar apenas desta cultura distante. Por isso, inventei toda a parte francesa, para delinear melhor o ponto de vista da história.

As histórias dos zumbis e das garotas francesas se desenvolvem em paralelo, e demoramos a descobrir de que maneira elas se conectam. Sempre desejou criar esta estrutura?
Essa ideia me apareceu durante o processo: experimentar a montagem paralela, algo que eu nunca tinha utilizado antes. Neste caso, tentei ver como uma trama poderia alimentar a outra, como uma acabaria interferindo na outra. Essa narrativa acentua os contrastes, porque este é um filme de contrastes entre o Haiti e a França, o passado e o presente, a noite e o dia, o silêncio e a palavra. Para trabalhar estas oposições e descobrir a força que teriam, optamos por essa estrutura. De qualquer modo, o resultado da montagem é muito semelhante àquele concebido desde a escritura do roteiro. No terço final do filme, se descobre a conexão entre todas as tramas e os personagens, seja pelos rituais do Haiti, seja pelos acontecimentos na escola.

 

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Clairvius (Mackenson Bijou) em Zombi Child

 

De que maneira o filme evoca a colonização francesa?
Num primeiro momento, ele evoca principalmente a condição dos escravos e o contexto do escravismo. Em seguida, aborda as relações históricas entre a França e o Haiti. A escola utilizada no filme foi construída por Napoleão, e foi ele quem quis introduzir novamente a escravidão no Haiti, o que deu origem à Revolução e depois à Independência. Este foi o primeiro país a se tornar independente. Então a trama retoma a questão do colonialismo por este viés. Este período é muito bem explicado pelo professor de História, no início do filme.

Considera Zombi Child um filme crítico sobre a intervenção francesa na África?
Sim, com certeza. Não poderia dizer que este constitui o foco do projeto, mas é um dos temas que participam dele. Na verdade, o que sempre me interessou foi esta questão: o que fazemos da nossa História, seja ela pessoal ou nacional? De maneira pessoal, você tem o personagem da pequena filha de zumbi, que não sabe muito bem como lidar com este passado em sua vida. Quanto ao povo do Haiti, de que maneira eles podem lidar com o passado? Este é um povo repleto de orgulho por sua cultura e pela nação, apesar de terem conhecido muito sofrimento. Nunca sabemos muito bem de que maneira lidar com o nosso passado, e é isso que diz o professor de História. Nós inventamos a noção de revolução e de diretos humanos, mas podemos dizer que estamos à altura dessa História?

Você mostra a França das classes extremamente privilegiadas, em contraste com o Haiti. Por que optou por este recorte?
De fato, eu gostei muito deste local, quando encontrei esta escola. Este cenário é ao mesmo tempo irreal e absurdo, mas também realista, porque esta escola existe de fato. Ela funciona exatamente desta maneira, até hoje. A escola representa certa ideia da França, um tanto antiga, porém persistente. Gostava da possibilidade de centrar toda a trama em torno de um único local, que representasse essa parcela muito específica do país.

 

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Você trabalha mais uma vez com jovens atrizes sem experiência prévia de atuação. Por que gosta desta configuração?
Nós fizemos o que se chama de “casting selvagem”: encontramos várias centenas de pessoas inicialmente, e eu mesmo acabei conversando com cerca de cem jovens para o filme. Quando se trabalha com não-profissionais, 50% do personagem será o que você previa desde o roteiro, e 50% será uma parte deles mesmos, então é preciso estar aberto para acolher personalidades distintas. O prazer de trabalhar com eles é descobrir novos rostos, novas vozes, novos corpos. Existe algo interessante em trazer algo que não estamos acostumados a ver. Mas são os filmes que exigem que se parta para a escolha de atores não-profissionais, ou para atores bastante conhecidos. No caso de Zombi Child, trabalhar com jovens atrizes profissionais seria impensável.

Como trabalhou com o elenco pouco experiente? Fez muitos ensaios, forneceu referências a verem e lerem?
Normalmente, não faço nenhum ensaio. Mas neste caso, como há muitas cenas de grupo e filmamos tudo muito rápido, em apenas quatro semanas, eu decidi organizar ensaios todo final de semana, para que o elenco pelo menos se acostumasse à ideia de atuar juntos, criando uma espécie de fluidez. Não há improviso: tudo é bastante escrito e controlado. Neste caso, fizemos ensaios, mas não acredito que isso tenha retirado a espontaneidade das atuações e do resultado.

Seus filmes costumam trazer forte carga de erotismo, e fiquei surpreso de ver que isso também se inseria num projeto sobre zumbis.
Eu nunca reflito sobre isso previamente, para falar a verdade. Não costumo pensar desta maneira. Mas a partir do momento que você fala sobre uma garota de 16 anos enfrentando uma desilusão amorosa, haverá necessariamente uma carga de erotismo. Além disso, o zumbi é acima de tudo um corpo sem alma. Por isso, a noção de corpo está presente, ela se torna indispensável à representação dos zumbis no cinema.

 

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Você enxerga conexão entre a mitologia zumbi haitiana e a cultura de zumbis norte-americanos, aos quais estamos mais acostumados no cinema?
Não. A única conexão que eu poderia ver entre os dois seria o fato de serem corpos sem alma. Em todos os outros sentidos, é completamente diferente, porque o zumbi americano está morto de fato, e como não encontra sua paz no inferno, retorna à Terra para se alimentar e perturbar os vivos. Já o zumbi haitiano está entre a vida e a morte, entre a noite e o dia. De certo modo, ele continua parcialmente vivo, mesmo que tenha sido afastado do contato social.

O filme está repleto de detalhes sobre esta mitologia: se o zumbi come carne ou sal, ele pode voltar à vida normal. Em que medida queria se ater aos detalhes específicos da cultura haitiana, e o quanto permitia a criação fictícia a partir disso?
Eu sempre acredito que, quanto mais se documenta e se introduz os detalhes, mais fácil será incorporar a ficção. Isso vale para todos os filmes: eu me sinto muito mais livre a partir do momento que estou possuo uma farta documentação sobre os meus temas. Mas é verdade que introduzir aspectos muito específicos, como o sal e o frango, ou sobre a maneira como se faz a farinha, e de que modo se prepara o peixe, me proporciona uma base verídica a partir da qual eu me sinto mais confortável para criar.

 

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Bertrand Bonello reencontra o elenco para a projeção de Zombi Child em Cannes. Foto: Quinzaine des Réalisateurs / Susy Lagrange

 

A trilha sonora é surpreendente. Qual papel queria que ela desempenhasse na história?
Eu sempre preparo as trilhas sonoras com bastante antecedência, desde a escritura do roteiro. No começo de cada filme, fico alternando entre meu escritório e o estúdio, para preparar a música à medida que escrevo. Assim, quando o roteiro está concluído, a trilha sonora está pronta também. Por isso, a música possui um papel narrativo ao invés de apenas ilustrativo. Mesmo o momento exato em que cada música vai ser incluída é determinado durante a criação do roteiro. Neste caso, foi simples: eu parti da ideia de ter um tema para as meninas, e um tema para Clairvius. Para as meninas, utilizei a voz de corais femininos que cantam muito bem. Isso pode lembrar alguns filmes dos anos 1970, ou então as trilhas de Ennio Morricone e Dario Argento. Para o Haiti, eu queria uma música subeletrônica, que não fosse completamente eletrônica e ainda deixasse passar algum ar para se escutar também os sons do país. Tinha ideia de conferir certa modernidade a este trecho sem enveredar pelo eletrônico habitual.

Os haitianos já puderam ver o filme? O que pensaram deste retrato do colonialismo?
O filme ainda não foi mostrado no Haiti. Não sei o que vai acontecer em breve, mas gostaria de fazer uma pequena turnê no mês de setembro, partindo de um festival em que está selecionado para então rodar os países ao redor. Além disso, não existem salas de cinema por lá como estamos acostumados no nosso país: exceto por duas pequenas salas na capital, o resto são projeções itinerantes. No entanto, vários haitianos o viram no Festival de Nova York, onde existe uma grande comunidade do Haiti. Tivemos bons debates por lá, e os haitianos receberam a proposta muito bem. Sobre o colonialismo, nada ali é novo, eu não inventei nada: está tudo nos livros de História!

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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