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Uma das coisas mais bonitas num evento dedicado ao cinema é o reconhecimento, com todo tipo de láureas, de personalidades de notável contribuição á arte, seja em nível nacional ou internacional. Neste ano, o 29º Cine Ceará escolheu três pessoas de trajetória distintas para serem celebradas no palco do Cineteatro São Luiz. O cineasta Karim Aïnouz, filho da casa, foi à Fortaleza, também, à première brasileira de A Vida Invisível (2019), produção vencedora da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes 2019. A atriz Lilia Cabral passou pelas terras abençoadas com um clima tropical, a fim, também, de mostrar Maria do Caritó (2019), versão cinematográfica da peça homônima por ela protagonizada. Para fechar a trinca, Matheus Nachtergaele subiu ao palco do Cineteatro São Luiz a fim de igualmente receber o reconhecimento por uma carreira heterogênea, com um conjunto de personagens que simboliza a diversidade do povo brasileiro. Os três foram agraciados com o troféu Eusélio Oliveira, batizado com o nome de alguém cuja importância é incontornável, inclusive, ao entendimento do sucesso do querido Cine Ceará.

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Wolney Oliveira, Fernanda Montenegro e Karim Aïnouz – Foto: Celso Oliveira

Karim, o bom filho a casa torna
Karim Aïnouz subiu ao palco na noite inaugural do evento, acompanhado do numeroso elenco de seu novo longa, recebido com contornos de orgulho local. Sua convidada de gala, aquela que lhe entregou a honraria, foi nada menos do que Fernanda Montenegro, a grande drama do teatro e do cinema brasileiro. Ela começou sua participação com um alentador “o Brasil vai dar certo”, sendo aclamada pela plateia que lotava no Cineteatro São Luiz na noite de sexta-feira, 30. Fernanda fez um discurso forte e necessário. (Ah, se tivéssemos mais Fernandas no mundo). E Karim, visivelmente emocionado, falou logo em seguida, fazendo questão de começar afrontando a nomeação de um interventor na Universidade Federal do Ceará, assim abrindo espaço para a quebra do protocolo que teve alunos com faixas de protesto e palavras de ordem. O subsequente discurso do cineasta foi não menos consciente e politizado.

Karim fez menção às presenças ilustres na plateia – estavam na sessão os ex-presidenciáveis Fernando Haddad e Ciro Gomes, sentados próximos, na primeira fila do cinema –, bradou a favor da valorização da cultura, bateu com palavras firmes nos poderes obscurantistas que ameaçam apequenar o tão maiúsculo cinema brasileiro, naquilo que pode ser definido como uma noite memorável. As manifestações de resistência, a bem da verdade, haviam começado bem antes, com as colocações de políticos locais que, claramente contrários às estratégias governamentais da União, manifestaram a necessidade de investir em cultura não apenas como forma de fomentar o saber e o repertório, mas também a fim de incentivar a indústria cultural que gera empregos e é bastante rentável economicamente.

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José Loreto presta sua homenagem a Lilia Cabral – Foto: Rogerio Resende

Lilia, gente como a gente
Lilia Cabral foi recebida no Cineteatro São Luiz na noite do sábado, 31, num clima bem menos politizado, mas embebido de ternura e do carisma peculiar à homenageada. Após o anúncio por parte da apresentadora, o ator José Loreto subiu ao palco e rasgou elogios a quem estava prestes a entregar o troféu Eusélio Oliveira. Ele mencionou a generosidade que lhe cativou, a forma como Lilia proveu ensinamentos e o ajudou no processo da novela em que eles contracenaram com destaque considerável. A atriz, emocionada e esfuziante na plateia, quase subiu ao palco antes do tempo assim que teve seu nome anunciado no microfone, mas saiu-se muito bem da pequena saia justa do protocolo, arrancando gargalhadas da plateia ao dizer “tudo bem falo daqui a pouco”, isso antes que um clipe com os principais momentos de sua carreira cinematográfica fosse exibido na telona do São Luiz. Imediatamente após, convocada a finalmente subir as escadas, caminhou até José Loreto em meio aos aplausos da plateia que a reverenciava de pé. Foi outro momento muito bonito de se testemunhar nesta 29ª edição do Cine Ceará.

Lilia pegou o microfone e o que se viu foi uma manifestação bem de acordo com sua persona gentil e cativante. Ela falou que gostaria de ter feito mais cinema, algo não possível em virtude dos consecutivos papeis assumidos em telenovelas e nos palcos, por meio dos quais conquistou uma popularidade condizente com o seu talento. Humildemente, agradeceu ao colega José Loreto, exaltando sua garra jovial para ultrapassar barreiras e melhorar numa profissão tão difícil e sujeita a intempéries de diversas naturezas. Não se furtando de colocar-se politicamente, mas não entrando tanto no mérito, a homenageada se restringiu a dizer “os governos passam, mas a arte fica”, dando o devido recado aos bons entendedores. Logo depois, fez questão de chamar ao palco os colegas de Maria do Caritó e dizer o quanto estava feliz de finalmente ter levado a peça homônima às telonas, assim generosamente dividindo o protagonismo do instante reservado especialmente para a celebração de sua vasta carreira.

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Luiz Fernando Guimarães homenageia Matheus Nachtergaele – Foto: Arlindo Barreto

Matheus, o representante de um Brasil diverso
Por fim, Matheus Nachtergaele foi homenageado na noite derradeira do Cine Ceará. Ele recebeu o troféu Eusélio Oliveira das mãos do colega Luiz Fernando Guimarães, mencionando com gratidão vários os profissionais com quem trabalhou. Antes mesmo da cerimônia, ele falou com exclusividade ao Papo de Cinema sobre o que estava sentido naqueles instantes: “Dizem que sou o belgo-paulistano mais nordestino que há. Sou um ator plantado no teatro, mas colhido no cinema. Sou um dos fazedores da Retomada do cinema brasileiro. Talvez, não por acaso, ela acompanha o processo recém-interrompido da democratização do Brasil. O Cine Ceará há anos acompanha minha trajetória. Já apresentei o festival. Estive aqui muitas vezes mostrando filmes, ganhei prêmios por atuação. Tenho alegrias nessa casa. Há muitas emoções hoje em mim. Primeiro, por ser homenageado nesse festival resistente, num momento em que estou furioso e triste. Fizemos uma semeadura bonita de crescimento do nosso cinema. É um lugar livre, de muitas visões, no qual atua a subjetividade do povo. Há filmes para todos os gostos. Esta edição tem esse tom especial. O cinema está sob ameaça de uma égide obscura, num país que acreditei que seria o lugar de invenção do novo para o mundo inteiro. Espero que isso não seja interrompido violentamente”.

Mantendo o tom de esperança, mas nunca perdendo ao senso crítico de vista, ele continuou falando sobre a importância da cultura para o povo: “Assim como Ariano Suassuna, acredito que é fundamentando o solo da nossa alma, com cultura, que a gente vai crescer. O popular vira arte nobre. Sou um desses interlocutores de muitas áreas do saber e da cultura brasileiros. Tenho certeza de que o trabalho no cinema dos últimos anos é rico. Estive em alguns filmes que permitiram ao brasileiro fazer as pazes com o seu cinema e, portanto, com sua imagem. Meio que recebo hoje essa homenagem em nome da Retomada do cinema brasileiro. Definitivamente o Brasil não é ultracapitalista e neopentecostal. Não tenho a menor dúvida de que o cinema brasileiro é um dos melhores do mundo, principalmente por conta da diversidade. E tecnicamente não devemos mais nada a ninguém. O nosso cinema não é feito, como no capitalismo norte-americano, como um distrativo para escravos laborais. Ele questiona, provoca, denuncia, erotiza. Nós somos esse lugar”. A plateia que praticamente lotava o Cineteatro São Luiz vibrou com manifestações similares de Matheus no palco, demonstrando ampla afinidade com suas ideias.       

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O falecido cineasta Eusélio Oliveira, a personalidade que dá nome ao troféu da homenagem no Cine Ceará

Os filmes ocupam um lugar muito especial no coração da gente. Dizer “eu te amo”, como a plateia do Cineteatro São Luiz fez efusivamente a Karim Aïnouz, Lilia Cabral e Matheus Nachtergaele, os três agraciados com o troféu Eusélio Oliveira na 29ª edição do Cine Ceará, é um sinal de retribuição que deve ser cultivado, pois não permite esquecer, até diante do obscurantismo, que arte é afeto e transformação.

 

(O repórter viajou à Fortaleza à convite do festival)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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