Neste dia 06 de fevereiro de 2019, caso estivesse vivo, François Truffaut comemoraria seu 87° aniversário – e é com um pesar incrível que não o temos ao nosso lado! Truffaut nos deixou muito cedo, em 1984, aos 52 anos, vítima de um tumor cerebral. Ali se encerrava a carreira de um dos mais celebrados, respeitados e admirados cineastas franceses, europeus e mesmo de todo o mundo. Em menos de três décadas atuando como cineasta – antes havia sido crítico de cinema – promoveu a revisão de conceitos como um dos protagonistas da nouvelle vague, dirigiu pouco mais de 20 longas-metragens, esteve com seus ídolos (Alfred Hitchcock, no livro-entrevista Hithcock/Truffaut) e foi também idolatrado por celebridades (Steven Spielberg, que lhe pediu – e conseguiu – que atuasse em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, em 1977). Foi três vezes indicado ao Oscar – pelos roteiros de Os Incompreendidos e de A Noite Americana, e por este último também como Diretor – e ganhou uma estatueta de Filme Estrangeiro (A Noite Americana, em 1975). Ganhou ainda três César (França), um David (Italia) e um BAFTA (Inglaterra), foi premiado nos festivais de Berlim e Cannes, e teve cinco dos seus filmes eleitos como o Melhor do Ano pelo Sindicato dos Críticos de Cinema da França. Um realizador de mão cheia e inesquecível, que agora ganha uma justa homenagem do Papo de Cinema, que aponta seus cinco melhores trabalhos – e ainda indica um que merece ser descoberto. Confira!
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959), por Conrado Heoli
A nova onda do cinema francês nasceu no fim da década de 1950, aliada ao talento de jovens e ousados cinéfilos cansados dos maneirismos ditados pelos mais reconhecidos cineastas na época. Após defender a transgressora política dos autores, trabalhar numa série de curtas e desenvolvendo o argumento do cultuadíssimo Acossado (1960), François Truffaut fez sua estreia em longas-metragens com Os Incompreendidos (1959), que remonta com alguma liberdade criativa sua infância agridoce e rebelde. Aclamado com o prêmio de direção em Cannes e indicado ao Oscar por conta de seu roteiro original, Truffaut apresenta neste filme seu alter ego, o ator Jean-Pierre Léaud, que reprisaria o icônico Antoine Doinel em quatro outras produções: O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979). Os Incompreendidos é narrado com tenacidade e inquietude impressionantes, e contesta inúmeros códigos morais e sociais a partir de um cativante protagonista. Inspirado pelos grandes Jean Vigo e Roberto Rossellini, Truffaut compôs sua inesquecível obra com uma linguagem repleta de estilo e inovação, conduzida por seu texto sagaz, que fez com que seu filme de estreia permanecesse atual e, para muitos, ficasse eternamente marcado como sua maior realização.
Jules e Jim: Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 1962), por Marcelo Müller
François Truffaut é expoente da nouvelle vague. Antes crítico, debutou na direção com Os Incompreendidos, filme que contém em si a maioria dos preceitos dessa verdadeira revolução na arte cinematográfica. Sua rixa com o antes amigo Jean-Luc Godard acabou por polarizar atenções entre os que preferem a paixão desbragada de um ao estilo mais cerebral do outro. Não raro, Jules e Jim: Uma Mulher para Dois é utilizado pelos fãs de Truffaut como “evidência de superioridade”, justo por conter a quintessência de seu estilo inconfundível. Na trama, a amizade entre Jules (Oskar Werner), judeu-alemão tímido, e Jim (Henri Serre), francês extrovertido, que floresce na iminência da Primeira Guerra Mundial. Surge Catherine (Jeanne Moreau), conduto apaixonante de venturas e desventuras da dupla que, inclusive, em certo momento batalha literalmente em lados opostos no front. A marcante trilha sonora (como esquecer Le Tourbillon de La Vie?) emoldura relacionamentos fervilhantes, estes capturados com profunda sensibilidade por François Truffaut que, ao gerar Jules e Jim: Uma Mulher para Dois, reafirmou sua condição de grande artista.
Beijos Proibidos (Baisers volés, 1968), por Pedro Henrique Gomes
Antoine Doinel é assombrado por sua História. É também parte desse assombro, uma vez que compõe a própria trajetória de um certo cinema francês. Junto dele vem Truffaut, seu criador, mago organizador de uma saga que diz muito sobre a Nouvelle Vague. Beijos Proibidos está aí, presente nesse enxame. Dá seguimento a história da vida de Doinel, mas vai além: é uma poesia do encantamento, das relações apaixonadas que as pessoas estabelecem um tanto apressadamente e, ainda mais, dos encontros casuais que movem o mundo. Não há signos a serem erigidos, não há a grande moral a ser questionada (ao menos não profundamente), mas sim um olhar desconcertante dessa ciranda de casos e acontecimentos que, em grande parte, nos escapam e nos moldam. No limiar, Doinel é cheio das contradições que os demais personagens de Truffaut carregam. Os tais beijos proibidos, eles também, potencializam a afetividade que o filme emana a cada cena. Mea culpa: este é seu melhor filme.
A Noite Americana (La nuit américaine, 1973), por Willian Silveira
O apaixonado reverencia reiteradamente o seu amor. Isso faz de A Noite Americana a homenagem maior do cinéfilo François Truffaut ao seu métier. O amante não vê distância entre si e o objeto. No filme, Truffaut é Ferrand, diretor de “A Chegada de Pâmela”. O drama banal da garota que foge com o sogro toma proporções inesperadas e serve como alusão jocosa da “nova onda” ao modelo star system americano. Tudo é em demasia e falso. Os rostos imaculados encobrem as crises de idade de Severine (Valentina Cortese, indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante), o egocentrismo do promissor Alphonse (Jean-Pierre Léaud) e a turbulência conjugal de Julie (Jacqueline Bisset). As cenas repetidas incessantemente miram a perfeição. A chance de desfazer os erros pertence ao estúdio, não à vida. Lá se seleciona, aqui se soma. Ainda que a superfície pouco confessional possa disfarçar, este é o filme mais íntimo do diretor desde Os Incompreendidos. Do diretor ou do homem. Em todo caso já confundimos as vozes. Não sabemos a diferença.
A História de Adele H. (L’histoire d’Adele H., 1975), por Robledo Milani
François Truffaut teve muitas paixões, e uma delas certamente foi o interesse por mulheres fortes e obstinadas. E poucas puderam se comparar à Adele H., que escondia o sobrenome famoso (filha do celebrado escritor Vitor Hugo, autor de, entre outros, Os Miseráveis) e que largou tudo – família, amigos, futuro, orgulho pessoal – para ir atrás de um amor impossível, de um homem que não mais a queria. Desequilibrada, preferia agir como se ignorasse os fatos óbvios que se desenrolavam em sua frente, acreditando mais no que se passava em sua mente do que no que de concreto se sucedia. Truffaut, neste filme, é mais do que discreto – mesmo uma rápida participação como ator, como um dos militares, é tão rápida que se assemelha às figurações de Alfred Hitchcock em seus próprios trabalhos – abrindo espaço para o desempenho arrebatador de Isabelle Adjani. Por esse trabalho ela concorreu ao Oscar e ao César, além de ter sido escolhida como Melhor Atriz pelo National Board of Review e pela Sociedade Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA. Mas o diretor não ficou para trás, e seu sensível trabalho como realizador foi compensado com o prêmio de Melhor Filme do ano pelo Sindicato dos Críticos de Cinema da França. O reconhecimento máximo dos críticos franceses para aquele crítico que ousou abandonar a teoria e partir para a prática, com resultados nunca aquém do fantástico. Merecido!
+1
Domicílio Conjugal (Domicile conjugal, 1970), por Matheus Bonez
Em 1970, Truffaut continua a saga de seu alter-ego, o personagem Antoine Donel (sempre interpretado por Jean Pierre Léaud) com uma comédia – não tão – romântica em, talvez, um de seus filmes menos queridos pela crítica, Domicílio Conjugal. A trama realmente chega a ser básica do gênero: agora casado com Christine, Donel espera um filho com a esposa, o que não o faz ficar menos ansioso e culmina em um caso com Kyoto. Abandonado pela mulher, ele se arrepende e tenta reconquistá-la. Além do humor peculiar de Truffaut, o que engrandece esta pequena obra é a metáfora que o cineasta faz do amadurecimento de seu personagem, de si mesmo e, consequentemente, do homem na vida adulta através do cotidiano deste casal. As pequenas e hilárias histórias dos coadjuvantes (como o cabeludo que sempre pede dinheiro ao personagem principal) aumentam a qualidade do filme. É uma leve crônica sobre a vida conjugal, mas conduzida da forma mais realista e divertida possível, o que torna este um dos mais refrescantes longas da filmografia do diretor francês.
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Bela homenagem, obrigado por nos lembrarem da data e nos trazerem à lembrança esse grande artista. Aproveito para contribuir com uma informação. Steven Spielberg, além de convidar Truffault para atuar em Contatos Imediatos, prestou ao diretor francês outro gesto de admiração, respeito e justiça. Na festa do Oscar de 1985, no palco para apresentar um prêmio (não me lembro qual, não importa), Spielberg pediu licença para homenagear o grande diretor francês que havia morrido no ano anterior. Além de homenagem, foi uma informação prestada ao mundo por Steve Spielberg, já que a academia de cinema americana simplesmente havia omitido o nome de Truffault da lista de personalidades do cinema falecidas no ano anterior.