Estudante de Direito. Diretor de teatro. Crítico de cinema. Glauber Rocha foi de tudo um pouco, até proclamar uma das suas frases mais emblemáticas: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Pronto, era tudo que precisava que que surgisse um dos maiores cineastas de todo o mundo. Um dos grandes nomes do Cinema Novo, movimento que se responsabilizou em reinventar o modo como a sétima arte se expressava no país, saindo dos estúdios e ambientes controlados e invadindo ruas, fábricas e casas, mostrando anseios, manifestações e protestos. Rocha foi casado com Helena Ignez (que, depois, se casaria com o também mítico Rogério Sganzerla) e Paula Gaitan, e foi pai de Paloma (com a primeira), Ava e Eryk Rocha (ambos com a segunda) – todos, como se bem sabe, cineastas. Uma família de realizadores, portanto. Glauber se consagrou ao receber três troféus no Festival de Cannes – Prêmio da Crítica por Terra em Transe (1967), Melhor Direção por O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) e Melhor Curta-Metragem por Di Cavalcanti (1977) – além de ter tido passagens também pelos festivais de Veneza e Locarno, entre outros. Um nome que até hoje projeta sua sombra sobre o cinema feito no Brasil, tanto como inspiração como também como exemplo de criatividade. Um gênio, portanto. E por isso, nada mais justa essa nossa homenagem, como uma seleção comentada dos seus cinco filmes essenciais, além de mais um, ainda pouco conhecido, mas ainda assim imprescindível. Confira!
Barravento (1962)
A estreia de Glauber Rocha em longas-metragens é, antes de tudo, uma declaração de amor à Bahia, sua terra natal. Como tudo no diretor, não é uma declaração banal nem dotada de clichês de quem fala do lugar onde nasceu e construiu sua vida e sua arte. O pano de fundo são lugares importantes da cidade de Salvador, como o Farol de Itapuã, mas a beleza das paisagens contrasta com a jornada do protagonista, interpretado por Antonio Pitanga num dos papeis mais marcantes de sua carreira, que volta às origens para tentar livrar sua família e seus amigos da exploração feita pelos comerciantes locais. Poético e subversivo, como seria toda a obra do diretor, o filme faz jus ao seu título e trata de questões como o amor, o preconceito e a ignorância como se fossem forças da natureza, fazendo da batalha pela mudança empreendida pelo personagem principal uma verdadeira tempestade. Exibido na edição de 2003 do Festival de Veneza, foi recebido com bastante entusiasmo pela plateia. Mais uma prova de que a produção continua atual e ainda gera discussão, mesmo tendo se passado mais de 50 anos de seu lançamento. – por Bianca Zasso
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)
Exibido no Festival de Cannes, onde concorreu à Palma de Ouro, este longa-metragem de Glauber Rocha é encontrado facilmente em qualquer lista que se preze a respeito dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Operístico, bebendo na fonte do faroeste, da nouvelle vague francesa e do cordel, a produção estrelada por Othon Bastos, Maurício do Valle, Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães é uma alegoria sobre a fé cega, sobre a pobreza desmedida, sobre a coragem à flor da pele. Glauber constrói um western no sertão, colocando em polos opostos o letal Antonio das Mortes (Valle) e o perigoso Corisco (Bastos), este fiel seguidor de Lampião. O beato Manoel (Del Rey) se vê literalmente entre a cruz e o punhal, tendo de decidir entre a morte na fé e a vida no cangaço. Com uma crueza impressionante no que tange a violência, mas lirismo ao conceber seus personagens grandiloquentes, quase teatrais, o cineasta de segunda viagem apresentou ao mundo um cinema pulsante, muito autoral ao misturar diversas referências e as empregando como suas. Othon Bastos e Marcelo do Valle preenchem a tela com interpretações inesquecíveis, encenando o duelo mais emblemático do cinema brasileiro. Verdadeira obra-prima. – por Rodrigo de Oliveira
Terra em Transe (1967)
Realizado por Glauber Rocha pouco após o imenso êxito crítico de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), esse filme foi marcado tanto pela explosão do potencial estético de seu realizador, atingindo aqui o ápice nesse sentido, quanto pelas consequências políticas do golpe de 64, sentidas muito diretamente pelo Cinema Novo brasileiro. Tal movimento cinematográfico era profundamente imbuído de valores de esquerda, logo, a tomada do poder pelos militares significou traumatizante derrota também para ele, como para todas as forças políticas progressistas brasileiras que apostavam na transformação social. Esse terceiro longa-metragem de Glauber é, portanto, atravessado por essa sensação de derrota, por uma melancolia desesperada e por um pessimismo que não o impedem, no entanto, de construir uma análise absurdamente lúcida e complexa da política e da sociedade brasileiras – análise que se dá através da crítica aos intelectuais de classe média (encarnados aqui na figura do jornalista e poeta Paulo Martins, brilhantemente interpretado por Jardel Filho) e de suas relações utópicas com as massas. Em tempos de novos golpes e tomadas do poder por velhas elites cínicas, essa obra-prima de Glauber se revela, ainda, muito atual. – por Wallace Andrioli
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969)
Conhecido internacionalmente como ‘Antonio das Mortes’, nome do matador de cangaceiros (Maurício do Valle) surgido em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), este filme rendeu a Glauber Rocha o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. Recentemente restaurado, tendo recuperado o esplendor da fotografia original de Affonso Beato, é uma espécie de sequência do filme lançado cinco anos antes sobre um sertão alegórico. Tão simbólico quanto é o embate que se vê desta vez, entre o protagonista e a consciência que lhe oprime após cumprir as ordens de assassinar outro cangaceiro. Misturando ópera e cordel, valorizando os rituais e o folclore típicos do povo do nordeste, Glauber realiza a proeza de aludir a um ideário pré-existente, sendo-lhe, ao mesmo tempo, reverente e distante. Se na produção de 1964 o preto e branco reforça a escassez, o sol castigando as almas que vagam pela caatinga, aqui o que sobressai é o colorido vibrante de uma paisagem ainda sob o jugo de poderes espúrios. Memorável o duelo de Coirana (Lorival Pariz) e Antonio das Mortes, primeiro no plano da poesia verbal, depois no do visual, uma briga rimada de facão emoldurada pela cantoria do povo. – por Marcelo Müller
A Idade da Terra (1980)
O último filme do poeta barroco do cinema brasileiro não poderia ser menos polêmico ou até compreensível para muitos. Ao fazer um retrato de como seria a vida (ou seriam “vidas”) de Cristo na sociedade contemporânea, o cineasta expõe suas visões políticas e humanas sobre os mais diversos setores do Brasil e do mundo. Não é uma obra para se entender. A narrativa vai e volta, e imagens são jogadas a todo momento para o espectador com trilhas impactantes. Num momento, temos uma celebração do candomblé. No outro, freiras dançando. Tudo parece desconectado. Mas seja nos planos fechados ou abertos, no fim, faz sentido. É a crítica de um homem inconformado. Um cineasta que não se prende a fórmulas para contar uma história. Ou seria mais de uma? É ainda mais famoso por ter perdido o Leão de Ouro do Festival de Veneza para Gloria, de John Cassavetes, e Atlantic City, de Louis Malle. Inclusive com uma discussão quase a tapa de Glauber com Malle. Mas não importa. Tem-se, aqui, Glauber Rocha em sua total essência, numa maturidade na mais alta potência. Um contraste à sua indignação que aparenta ser intempestiva, porém muito bem pensada. Obra-prima? Com certeza. – por Matheus Bonez
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O Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have Sept Cabeças, 1970)
Em seu primeiro trabalho durante o exílio, Glauber Rocha escolheu o Congo como cenário para uma verdadeira epopeia africana. A coprodução Itália/França denota sua natureza multicultural já no título original, utilizando palavras nos idiomas originários dos personagens da trama: um insurgente latino-americano, Pablo (Giulio Brogi), que une forças a um líder rebelde africano, Zumbi (Baiack), iniciando uma revolução contra o domínio estrangeiro, representado por um agente norte-americano (Gabriele Tinti), um mercenário alemão (Reinhard Kolldehoff) e um conselheiro português (Hugo Carvana), que servem à misteriosa Marlene (Rada Rassimov). Explorando ao máximo o experimentalismo narrativo, dialoga ainda mais abertamente com o cinema de Godard e com a Nouvelle Vague francesa, até pela presença de Jean-Pierre Léaud como um pregador messiânico. A encenação teatralizada, contrastando com o registro documental de cerimônias nativas e da reação da população local às ações, serve à criação de uma incisiva, ainda que por vezes irregular, alegoria política que sintetiza os séculos de colonialismo na África – dos exploradores europeus e religiosos católicos aos capitalistas americanos. Um trabalho que dividiu opiniões à época de seu lançamento, permanecendo oculto para muitos até a restauração recente de seus negativos originais, numa parceria entre a Cinemateca Brasileira e Cineteca Nazionale di Roma. – por Leonardo Ribeiro
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