Nascido na Argentina, em 7 de fevereiro de 1946, o diretor Hector Babenco era um brasileiro de coração. Mudou-se para o país com 19 anos e, em 1977, naturalizou-se. São dele grandes obras do nosso cinema – e essa grandiosidade era refletida tanto em suas qualidades artísticas quanto em sua conexão com o público. Ele assinou uma das maiores bilheterias nacionais – Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia (1977) – e, mais recentemente, levou mais de 5 milhões de pessoas ao cinema para conferirem o polêmico Carandiru (2003). Nestes dois filmes é possível observar uma marca na cinematografia do diretor: o interesse pelos personagens marginalizados, uma vontade de olhar para o outro e enxergar o que há de bom em todos nós. Esse conceito podemos enxergar muito bem em outros sucessos de sua carreira como Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980) e O Beijo da Mulher Aranha (1984).
Também diretor de teatro, Babenco era um profissional de talento sem igual. Respeitadíssimo, o cineasta foi indicado ao Oscar pela direção de O Beijo da Mulher Aranha, e teve este e mais Coração Iluminado (1998) e Carandiru (2003) concorrendo a Palma de Ouro em Cannes. No Festival de Cinema de Gramado levou o Troféu Eduardo Abelin, em 2005, além de ter exibido seus longas-metragens em tantos outros festivais ao redor do mundo. Em 13 de julho de 2016, Babenco faleceu, vítima de uma parada cardiorrespiratória, deixando um grande legado cinematográfico, com filmes que certamente perdurarão o teste do tempo.
Hector Babenco tinha uma conhecida preferência por personagens marginalizados, que desafiavam as estruturas do status quo e, não raro, pagam preço caro por esta libertária condição. Em seu segundo longa-metragem de ficção, o cineasta já mostrava esta predileção neste belo e controverso título, produção vencedora de quatro Kikitos no Festival de Gramado em 1978. Na trama, assinada por Babenco ao lado de Jorge Durán e José Louzeiro, conhecemos o criminoso Lúcio Flávio (Reginaldo Faria). No seu caminho, uma polícia tão corrupta quanto a bandidagem, que faz acordos escusos para levar algum lucro em qualquer empreitada. Neste contexto em que o Esquadrão da Morte, parte da polícia que eliminava criminosos sem prestar contas, começou suas operações, Lúcio Flávio foi uma das vozes que colocou o jogo sujo dos homens da lei nos jornais. Se nesta sinopse o protagonista surge como uma figura heroica, não é mero engano. Babenco, inclusive, foi bastante criticado por colocar em luz tão branda um homem que assaltava bancos. Sua vontade era mostrar a desonestidade da polícia do início da década de 1970, mas nem por isso o diretor livra completamente a barra do protagonista. Tentar enxergar o lado do outro, afinal de contas, era uma marca do cinema de Babenco. – por Rodrigo de Oliveira
Hector Babenco já era um nome de destaque no cenário artístico nacional quando decidiu deixar as celebridades de lado – O Fabuloso Fittipaldi (1973) – a crônica da classe média – O Rei da Noite (1975) – ou os traumas de um passado até então recente – Lúcio Flávio: O Passageiro da Agonia (1977) – para se focar em algo muito mais urgente: a situação dos meninos de rua no Brasil. Fernando Ramos da Silva foi o garoto escolhido para viver o personagem-título, que circula pelas vielas e encruzilhadas de São Paulo em busca de afeto, calor, comida, ou mesmo de um peito ao qual possa se acolher. Entre pequenos crimes e outras contravenções, vemos desigualdades e injustiças, tanto entre os mais fortes como, também, entre aqueles frágeis e desprovidos de melhores condições. Marília Pêra dá um show como a materna prostituta Sueli, a ponto de ter sido premiada como Melhor Atriz do ano pelos críticos dos Estados Unidos. Mas foi, acima de tudo, o olhar sensível de Babenco que fez deste um trabalho atemporal, que ao ser indicado ao Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro levou ao mundo a imagem de um país em crise, que mesmo mais de trinta anos depois permanece assustadoramente atual. – por Robledo Milani
Co-produção entre Brasil e Estados Unidos e adaptado do romance de Manuel Puig, a trama deste filme conta a história do prisioneiro político esquerdista Arregui (Raul Julia), e um homossexual, Luis Molina (William Hurt), condenado por corrupção de menor. Os dois acabam dividindo uma cela e também as suas particularidades, o que ocasiona na criação de um forte laço de amizade (até mesmo romantizada). Junto se apresenta um contraste entre um ativista político prático e um homem sonhador. Sonia Braga, em linda participação, é a protagonista dos filmes que Luis inventa em sua mente, enquanto está entediado na prisão. No belo roteiro, esse paralelismo narrativo traz nuances e um tom peculiar para a história. A direção indicada ao Oscar de Babenco é de uma beleza que somente confirmava a obra-prima que havia criado anos antes em Pixote. O longa-metragem agradou tanto os produtores norte-americanos após ser indicado a 4 Oscar, que lhe rendeu um convite para dirigir Ironweed, com Meryl Streep e Jack Nicholson, no ano seguinte. Vale lembrar que Hurt e Julia não cobraram cachê para participar do filme, apenas uma ajuda de custos. O primeiro, com sua impactante e poética performance, venceu o Oscar de Melhor Ator. – por Renato Cabral
Adaptações são marca registrada na carreira de Hector Babenco. Então, que nome seria melhor para levar às telas a obra de Dráuzio Varella sobre a penitenciária conhecida como Carandiru e o consequente massacre ocorrido por lá em 1992? Pois o diretor argentino conseguiu fazer um mosaico de histórias que torna a experiência uma jornada angustiante, triste e realista sobre a situação dos presídios brasileiros. É em cada personagem atendido pelo médico protagonista, um narrador que não interfere muito, que se revela a natureza quase documental da obra, ainda que esta seja uma ficção. Os presos são praticamente entrevistados, revelando detalhes de sua vida pregressa e como se sentem naquele ambiente superlotado, permeado por sujeira e maus tratos. É um retrato das condições sub-humanas às quais os detentos de todo o país estão sujeitos todos os dias. Poderia ser um filme político e pretensioso, mas Babenco sabe utilizar a história a seu favor para humanizar estas pessoas tão temidas pela sociedade aqui de fora, especialmente aquelas que não entendem porque crimes são cometidos. Alguns podem parecer injustificáveis, mas sempre há o outro lado de uma história. E só alguém com a sensibilidade de Babenco para tornar uma obra tão pesada em um exercício prazeroso e de qualidade. – por Matheus Bonez
Argentino de nascimento, mas brasileiro por opção, o diretor Hector Babenco retornou à sua língua-mãe na adaptação cinematográfica do livro do conterrâneo Alan Pauls. Neste filme o protagonista é Rimini (Gael Garcia Bernal), um tradutor que acabou recentemente o casamento de longa duração com sua primeira namorada. Um emaranhado de emoções se instaura a partir do momento em que ele começa a sair com uma modelo. A tragédia posterior traz a névoa da depressão que demora a se dissipar. Um novo casamento e a paternidade subsequente não são suficientes para estabilizá-lo emocionalmente, descompasso que fica ainda mais evidente com o retorno da primeira esposa à sua vida, uma presença bastante significativa. Babenco conduz a trama com sua habilidade característica, aqui, sobretudo, mesclando com inteligência o naturalismo e o melodrama, não deixando que um sufoque o outro, assim, ao mesmo tempo, operando num registro que lhe é caro, mas fazendo alusão à certa tradição cinematográfica latino-americana, mais precisamente da própria Argentina. Autor de qualidades inegáveis, personagem polêmico e muitas vezes feroz, Babenco possui uma trajetória artística admirável, uma obra sólida. E neste longa-metragem ele mostra que, mesmo radicado no Brasil desde a década de 1970, nunca perdeu um contato profundo com suas raízes. – por Marcelo Müller
Ironweed (1987)
Após o sucesso de O Beijo da Mulher Aranha (1985), todo mundo queria Hector Babenco em Hollywood. Vários roteiros foram oferecidos, mas o diretor argentino tinha tanta paixão pelo romance homônimo do escritor norte-americano William Kennedy que aproveitou a oportunidade para filmá-lo com um elenco de peso. Jack Nicholson e Meryl Streep estrelam esta história como personagens marginais, ou seja, o mote preferido de Babenco: os rejeitados pela sociedade, pela vida comum. A trama se passa na época da Grande Depressão dos EUA no final dos anos 1920 e a falta de estrutura do país aliada à miséria geral encontra reflexos na direção do cineasta, que coloca esta realidade sem floreios na tela, dando um peso ainda maior a um conto já triste por natureza. Em cada quadro, Babenco mostra que é um realizador muito mais interessado em saber contar uma história do que ser o melhor de todos. Talvez por isso mesmo ele tenha sido tão bom no que fazia. Apesar das indicações ao Oscar aos dois protagonistas, o longa não foi unânime entre a crítica, muito menos visto pelo público. Uma grande pena. Trinta anos depois, nada mais justo que redescobrir uma obra tão forte que não merece ficar relegada ao esquecimento. – por Matheus Bonez