Indicada pela primeira vez ao Oscar em 2017, quando já contava com mais de uma centena de créditos em sua filmografia, Isabelle Huppert é a prova certeira do quanto Hollywood está habituada a olhar apenas para o próprio umbigo e ignorar os talentos superlativos que se encontram ao redor do mundo. E isso que ela nunca esteve longe – há mais de quarenta anos, por exemplo, estreou no cinema norte-americano no épico Setembro Negro (1975), de Otto Preminger. Desde então, já trabalhou ao lado de nomes como Peter O’Toole, Christopher Walken, Jeff Bridges, Jude Law, Dustin Hoffman, Mark Wahlberg, William Hurt, Jessica Chastain e Jesse Eisenberg, entre tantos outros. Mas é na Europa, mesmo, onde tem entregue suas melhores performances, a serviço de diretores como Claude Chabrol e Michael Haneke. Considerada a “Meryl Streep da França” – é recordista de indicações ao César, o Oscar francês, finalista em 16 ocasiões e vencedora em duas – foi premiada em todos os maiores festivais do mundo – Cannes (duas vezes), Veneza (duas vezes) e Berlim (troféu especial) – além de contar com um Bafta e um Globo de Ouro entre seus mais importantes reconhecimentos. É por isso que, ao comemorar mais um aniversário, não poderíamos deixar de prestar nossa homenagem, com essa seleção comentada dos seus cinco filmes imprescindíveis, além de apontar mais um, igualmente delicioso. Confira!
Neste que foi o quarto dos seis filmes que fizeram juntos, Isabelle Huppert está longe de ser a protagonista de Claude Chabrol. Esta é Sandrine Bonnaire, a jovem da cidade grande contratada para trabalhar como criada na grande casa de uma família do interior. Huppert, no entanto, quando surge em cena, vem com uma presença tão forte e absoluta que é impossível não ficar hipnotizado. Seu papel é representar a ‘semente do mal’, aquela que irá determinar o destino não só da nova amiga, mas também dos patrões desta. Como a responsável pelo posto de Correios que não se importa em ler as correspondências dos outros – e nem em disfarçar esta mania – e dona de um passado trágico – “Como eu poderia ter matado minha própria filha? Que mãe faria isso?”, diz ela, com um sorriso no rosto – ela não só domina cada minuto em cena como termina por roubar o filme inteiramente para si, contaminando aqueles ao seu redor com uma influência perniciosa e deturpada. Uma atuação magistral, que lhe valeu não apenas o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza (dividindo com Bonnaire), como também seu primeiro César (ganhando de sua colega de cena, aliás). – por Robledo Milani
Na trama que mistura suspense e drama familiar dirigida pelo eterno jovem turco Claude Chabrol, Huppert dá vida à Mika, uma empresária que administra uma fábrica de chocolates e leva uma vida luxuosa ao lado do marido pianista, André, interpretado por Jacques Dutronc. A chegada de uma jovem musicista que descobre que quase foi trocada na maternidade pelo filho do primeiro casamento de André muda o cotidiano da família e acaba aflorando um lado da personalidade de Mika que poucos conhecem. Admirador confesso de Alfred Hitchcock, Chabrol faz de Huppert a sua “ruiva fria”, se valendo das expressões fortes da atriz para construir uma das protagonistas mais completa de sua filmografia. Muito da curiosidade do público pelo que vai acontecer na cena seguinte vem dos olhares e gestos de Mika, onde nada é o que parece e até a fábrica que está sob seus cuidados ganha ares de laboratório de vingança. Por sua interpretação, Huppert levou o prêmio Lumiére e colocou mais uma mulher dúbia na sua galeria de personagens. – por Bianca Zasso
Isabelle Huppert não era uma novata quando chamou a atenção ao interpretar a protagonista deste filme do austríaco Michael Haneke. Ela já havia trabalhado com grandes diretores, é claro, e era uma atriz consagrada, mas lhe faltava um papel daqueles que definem carreiras. Sua concepção de Erika, professora de piano do Conservatório de Viena, foi, então, um divisor de águas. A personagem é conceitualmente rica, afinal de contas o contraste entre a fleuma acadêmica, em consonância com o comportamento aparentemente engessado da mulher que mora com a mãe, não fuma e tampouco bebe, e sua frequência em cinemas especializados em filmes pornôs e peep-shows, à procura de excitação, por si já garante uma série de possibilidades dramáticas. Todavia, o trabalho de Huppert consegue levar esse material rico por natureza a um patamar sublime por conta da maneira como dá vida às complexidades, ambiguidades e aos conflitos da personagem. Quando Erika começa a se relacionar com um de seus alunos, Walter Klemmer (Benoît Magimel), a atriz tem à disposição o terreno ideal para expor a luta interna, constante e violenta que o desejo trava com os grilhões sociais que aprisionam essa mulher. Trabalho não menos que brilhante de Isabelle Huppert. – por Marcelo Müller
Acostumada a trabalhar com os mais relevantes autores do cinema mundial, Isabelle Huppert realizou aqui uma aguardada parceria com sua compatriota Claire Denis. Criada na África, a cineasta retorna a este cenário familiar para narrar a história de Maria Vial (Huppert), imigrante francesa que comanda uma fazenda de café, antes pertencente ao ex-marido, André (Christopher Lambert), num país africano em efervescente revolução popular. Além dos perigosos conflitos, Maria ainda precisa lidar com o comportamento instável do filho, Manuel (Nicolas Duvauchelle) e com o líder rebelde “The Boxer” (Isaach De Bankolé), que surge ferido em sua propriedade. Com seu estilo narrativo único, mesclando urgência e contemplação, Denis trata do colonialismo no continente africano sob um prisma bastante particular, o da noção de não pertencimento, representado por Maria, que mesmo escolhendo amar um lugar que não o seu originário, permanece vista como um corpo estranho neste ambiente. Algo que transparece na atuação magnética de Huppert, emanando a força e a obstinação de quem se recusa a abandonar seu mundo, mesmo em franco desmoronamento, em contraste com sua aparência frágil – a pele alva, cabelos ruivos e vestidos simples. Uma composição com toques de mistério e incredulidade transmitidos com a precisão habitual da atriz. – por Leonardo Ribeiro
Embora papéis de entrega física sejam aqueles mais reconhecidos como grandes atuações, às vezes precisamos constatar que a entrega da própria imagem por parte de um ator representa um trabalho tão complexo quanto. Aqui, Huppert vive Michèle Leblanc, dona de uma produtora de videogames que acabou de ser estuprada. Apesar do evento traumático, ela decide tocar sua rotina e tratar o acontecido como algo banal – uma vontade que seu emocional, obviamente, não corresponde. É nesse ponto que Isabelle se faz essencial à personagem. Sua persona seca, sarcástica e direta serve à Michèle perfeitamente. A exposição dessa psique exige da atriz que seja constante o mais honesta possível com aquela mulher, não deixando que a postura ou a entoação de suas falas caiam em lugares comuns de atuação. A força de Michèle como protagonista está na naturalidade – e quando ela acha uma situação divertida à mesa, durante um jantar em família, é preciso acreditar que ela está realmente se divertindo, e não apenas cumprindo uma exigência de roteiro. Os diálogos são internalizados na atriz, e apenas por essa fluidez já mereceria um Oscar – aliás, é uma performance que lembra muito o estilo de Sônia Braga em Aquarius (2016). – por Yuri Correa
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A comédia musical de humor negro de François Ozon pode até ter dividido as opiniões de público e crítica, tamanhas as situações improváveis que se passam pela tela. Mas sua reunião de divas do cinema francês como Catherine Deneuve e Fanny Ardant na história das garotas que ficam presas dentro de uma casa durante uma nevasca e tentam solucionar a morte do patriarca da mansão é uma delícia de assistir justamente pelo nonsense kistch com que tudo é contado. Neste carnaval de absurdos que parece uma versão feminina de O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie, nossa homenageada mostra seu lado cômico da melhor maneira na pele de Augustine, a solteirona cunhada do falecido. Hipocondríaca e mentirosa nata, a personagem é um amontoado de clichês ambulantes que se tornam uma graça na pele de Huppert. O exagero da atuação pode até parecer fake, mas é exatamente o que o roteiro e a direção pedem. Assim, Huppert mostra, mais uma vez, seu talento acima da média e permeado pela versatilidade, chegando a ofuscar grandes colegas de cena. Um deleite para quem precisa se desligar da realidade e apenas aproveitar a magia do cinema. – por Matheus Bonez