Polêmica poderia ser um dos nomes do meio de Lars von Trier, e isso muito antes de o cineasta ter sido banido do Festival de Cannes após um comentário de gosto duvidoso sobre Hitler. O diretor dinamarquês também é conhecido por periódicas fases de depressão, o que pode ser uma espécie de inspiração para os temas da maioria de seus filmes. Um dos autores do Dogma 95, movimento de cineastas que pretendiam realizar filmes mais realistas e menos comerciais, o cineasta é um talento precoce. Aos 11 anos já dirigia seu primeiro curta-metragem, Turen til Squashland (1967). Quando estudou na Danish Film School, adotou o “von” no seu nome.
Elogiado pela crítica, von Trier foi presença quase constante no Festival de Cannes até sua argumentação polêmica, tendo nove de seus filmes concorrendo à Palma de Ouro, prêmio máximo do evento que até hoje ele conquistou apenas uma vez, por Dançando no Escuro (2000). Nascido em 30 de abril de 1956, nesta semana comemora mais um aniversário. Para homenageá-lo, a equipe do Papo de Cinema selecionou seus cinco melhores filmes e, como não poderia deixar de ser, mais um que merece ser (re)descoberto.
Uma Alemanha arrasada e ocupada pelos Aliados em 1945, de joelhos perante os Estados Unidos, é o cenário conflitante do drama vivido por Leopold Kessler (Jean-Marc Barr), um norte-americano de descendência germânica que consegue emprego como assessor de vagões do Zentropa, a principal companhia da rede ferroviária do país. Ingênuo, Leopold deixa-se envolver por Katharina Hartmann (Barbara Sukowa), ativista política subversiva e filha do industrial Max, dono do império dos transportes que agora é tanto investigado pelo governo dos EUA por supostas ligações com nazistas quanto ameaçado pelo grupo pró-fascismo, Werewolf. O protagonista também se vê dividido entre os interesses americanos na Alemanha e com as desimportantes regras de trabalho no trem. Pressionado por todos os lados, Leopold entra em crise, provocando um trágico desfecho. Nesta obra seminal, que alterna imagens em preto e branco, sépia e em cores, Lars von Trier analisa os absurdos políticos, econômicos e sociais do pós-Guerra e dá sinais estéticos que viriam a ser tornar algumas de suas marcas após a fase do Dogma 95: uma espécie de naturalismo às avessas, erguido sobre técnicas cênicas mambembes e postiças, com cenários internos, sets externos montados em estúdio, projeções para compor cenas e sobreposições de imagem.
Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000), por Conrado Heoli
Lars von Trier é um dos cineastas mais ousados e inventivos de sua geração. No universo da música, Björk também. A cantora islandesa é reconhecida por sua criatividade sem limites e excentricidade ímpar. O cineasta dinamarquês idem. Responsáveis por movimentos que transformaram a primeira e a sétima das artes, Björk e Lars von Trier conjugam talentos no singular Dançando no Escuro e dividem os méritos pela obra que, passivelmente, pode ser considerada a maior de suas carreiras. A opaca vida de Selma, imigrante tcheca que vive com o pequeno filho nos Estados Unidos, ganha contornos melancólicos com sua cegueira iminente. Ela se apoia na relação de amizade que mantém com Kathy e se distrai em esporádicas sessões de cinema, que a transportam para longe de sua sôfrega rotina. A sonoridade de Dançando no Escuro, pontuada no timbre depressivo de sua intérprete e protagonista, constitui um dos retratos ficcionais mais tristes do cinema. Lars von Trier, especialista em atingir o âmago de seus personagens a partir de uma exposição muito íntima, retira de Björk um desempenho digno do prêmio de interpretação que ela venceu em Cannes – mesmo festival que concedeu a Palma de Ouro ao diretor. Uma obra-prima inquietante.
Lançado no Festival de Cannes em 2003, época em que Lars von Trier não era persona non grata no festival, Dogville foi um estouro. Mas, apesar de favorito à Palma, saiu sem levar nada. Acabou virando um filme cultuado. Fazendo parte de uma trilogia inacabada do diretor sobre os Estados Unidos e a falsa liberdade que o país vende, em 2005 foi apresentada sua sequência, Manderlay. A terceira parte, Wasington, continua sem previsão, já que o diretor estacionou a produção para realizar a sua trilogia da Depressão (Anticristo, de 2009, Melancolia, de 2011 e Ninfomaníaca, lançado em 2013). Dogville conta com um excelente elenco e provavelmente o melhor time de atores que Lars von Trier já mostrou nas telas. Com nomes como Nicole Kidman, Lauren Bacall, James Caan, John Hurt, Chloë Sevigny, Patricia Clarkson e Paul Bettany apresentando, em quase três horas de filme, atuações dedicadas. Apesar de exageradamente longo, o cineasta acaba justificando essa escolha em uma construção crescente e excepcional, mesmo que em alguns momentos presunçosa. Com sua crítica aos Estados Unidos (lembre-se que estávamos na Era Bush) o diretor faz de Dogville um dos seus melhores filmes já realizados. Complementando a produção está o documentário Dogville Confessions, que trata dos bastidores conturbados da produção.
Anticristo (Antichrist, 2009), por Marcelo Müller
Este é um dos mais controversos filmes de Lars von Trier, artista marcado pela polêmica. Concebido durante severa crise depressiva do cineasta, começa numa belíssima sequência de sexo, fotografada em preto e branco, com direito a penetração explícita. O que poderia ser sinal de vida (concepção) acaba em morte, pois o filho cai da janela durante o coito dos pais. Dentro da esfera racional, o marido terapeuta leva a mulher extremamente abalada para retiro na floresta, a fim de fazê-la confrontar o trauma em busca de alívio. Contudo, aos poucos, surgem signos (sobretudo religiosos) que evidenciam a figura feminina como veículo demoníaco. Acusado por isso de misógino, parece, sim, refletir sobre uma ideia histórica oriunda do pecado original, da mulher fraca e por isso indutora do homem ao erro. Lars von Trier carrega na atmosfera, constrói um pesadelo psicológico quase insuportável para alguns, ambientado na casa e no bosque que abrigam essas duas pessoas enlutadas. No jardim do Éden idealizado pelo gênio desbragado do cineasta, Adão e Eva transam sob a árvore do conhecimento, retornando à raiz em busca de prazer.
Está tudo pronto para o casamento de Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgard) quando desponta no céu uma bola vermelha – um novo planeta. Símbolo maior dos pactos de comprometimento e amor eterno, o evento disputa atenção com a aproximação do astro desconhecido. A colisão é improvável, dizem, mas nunca impossível. Afigura-se, pois, o medo, motor mais íntimo dos seres humanos. Não o medo oculto e suprimido, mas o evidente, real e visível. O que significa permanecer quando tudo está prestes a se esvair? Felicidade, amor, segurança, família. Amparados em bens construídos para servirem como cavernas mágicas de certezas, escudos contra nós mesmos, contra a condição de ser quem somos. Vazio. Vácuo.
+1
O Grande Chefe (Direktøren for det hele, 2006), por Dimas Tadeu
Estando à frente de um filme, poucos diretores optariam por não dirigir, perdendo o controle da obra. Pois é o que Lars von Trier faz aqui. Usando o Automavision, um sistema que dá a um computador autonomia para escolher o que filmar e o que ouvir, ele deixou seus atores à mercê de uma “decupagem surpresa” que dá ao filme um incômodo e surpreendente ar real. O roteiro, ainda por cima, rodeia questões de metalinguagem enquanto faz piada com o mundo corporativo, tornando aquele que abdicou do controle de tudo o grande chefe deste filmaço.