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5+1 :: Leonardo Machado

Publicado por
Robledo Milani

Nascido no dia 06 de julho de 1976 na longínqua Bagé, quase na fronteira do Brasil com o Uruguai, Leonardo Machado foi um dos grandes do cinema feito no Rio Grande do Sul por exatamente duas décadas. Ao completar vinte anos de atividades – seu primeiro trabalho foi o curta O Bar (1998) – veio a falecer, vítima de um câncer de fígado, doença contra a qual lutava ao menos desde 2016. Durante todos estes anos de atividades apareceu em 36 curtas, 23 longas e 14 peças de teatro, além de três minisséries, quatro novelas e outros tantos especiais de televisão. Dois destes trabalhos permanecem inéditos – A Cabeça de Gumercindo Saraiva, de Tabajara Ruas, e Legalidade, de Zeca Brito – e devem ser lançados em breve. No entanto, entre todas as performances que teve ao longo de sua carreira, quais foram as mais marcantes? Pensando nisso, e em prestar uma homenagem a esse grande e querido artista que partiu em 28 de setembro de 2018, selecionamos aqui suas cinco atuações mais marcantes, além de mais uma obra da sua filmografia que merece ser lembrada por motivos muito especiais. Confira, e celebre, a arte de Leonardo Machado, que segue mais viva do que nunca. Obrigado, Leo.


Em Teu Nome 
(2009)
Após seis curtas e uma novela, Leonardo Machado estreou no formato longa com a cinebiografia Lara (2002), que narrava a trajetória de vida da grande Odete Lara. Foram precisos mais sete anos, no entanto, para ele ganhar seu primeiro protagonista na tela grande. E o Boni, de Em Teu Nome, veio após dois filmes com Carlos Gerbase (Sal de Prata, 2005, e 3 Efes, 2007), um com Otto Guerra (Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, 2006), um com Fábio Barreto (Nossa Senhora de Caravaggio, 2006) e um com Beto Souza (Dias e Noites, 2008). Ah, e teve um também com Paulo Nascimento (Valsa para Bruno Stein, 2007), que se revelaria seu grande parceiro artístico nos anos seguintes. O jovem revolucionário Boni de Em Teu Nome, filme baseado em histórias reais de rebeldes que lutaram contra a ditadura pela América Latina durante os anos 1970, transformou a vida de Machado. Premiado como Melhor Ator por este desempenho no Festival de Gramado – o filme ganhou ainda os kikitos de Melhor Direção, Trilha Sonora e o Prêmio Especial do Júri – Leo foi alçado a uma fama que desconhecia, aproveitando a oportunidade para se tornar nacionalmente reconhecido – sem nunca, no entanto, esquecer as raízes gaúchas. Foi um momento particularmente feliz – e muito merecido.

 

Contos Gauchescos (2011)
O diretor Henrique de Freitas Lima tinha o projeto de fazer uma série de televisão inspirada na obra de João Simões Lopes Neto, um dos grandes escritores do regionalismo gaúcho. Alguns problemas de produção, no entanto, terminaram por aumentar o desafio, e assim nasceu esse filme. O livro, um verdadeiro clássico da literatura brasileira, é narrado por uma figura inesquecível: Blau Nunes, o típico gaudério de bombacha e chimarrão sempre nas mãos, pronto para contar histórias das quais ninguém acredita, mas tão bem entoadas que é quase impossível duvidar que tenha, de fato, ocorrido. E quem foi escolhido para viver o personagem na tela grande? Leonardo Machado, ele mesmo. Os relatos do protagonista integram a região pampiana à cultura dos vizinhos uruguaios e argentinos. Narrados em linguagem ordinária, cheia de maneirismos e revelando costumes próprios da lida diária, os causos que inventa – ou lembra – fazem parte do ideário do gaúcho que existe até hoje. Machado é um dos destaques do elenco, que conta com vários nomes conhecidos do grande público. Um projeto que talvez pudesse ter rendido outros desdobramentos, mas que aqui serve como porta de entrada para uma cultura e tradição que reflete a identidade do sul do Brasil.

 

Os Senhores da Guerra (2012)
Em seu primeiro trabalho sob o comando do escritor e diretor Tabajara Ruas, Leonardo Machado aparece como o Major Ramón Diaz, o primeiro oficial do General Zeca Netto (Danny Gris), um uruguaio que está lutando no Rio Grande do Sul. Ele era um estancieiro que abraçou a causa por acreditar nesse confronto com as elites pré-estabelecidas e para fazer algo a favor dos fazendeiros que estavam sendo prejudicados. Um dos grandes prazeres confessos dele nesse personagem era a oportunidade de falar portunhol (mistura de português com espanhol) e buscar essa diferença vinda do sotaque do sul do Brasil, mostrando o quão próximas e similares são as culturas desses países vizinhos. Outro fato importante é que era uma figura de vanguarda, sempre à frente da batalha, alguém que cria, e não apenas segue as ordens dos outros. No meio da luta entre dois irmãos, que representam os inimigos históricos chimangos e maragatos, ele aparece como uma das figuras de maior carisma de todo o elenco. Concebido inicialmente como dois longas – uma sequência, provisoriamente batizada como Passo da Cruz, nunca chegou a ser finalizada – Os Senhores da Guerra também passou pelo Festival de Gramado, de onde saiu com dois kikitos: Melhor Atriz Coadjuvante, para Andrea Buzato, e com o Prêmio Especial do Júri. Um épico de resultado irregular, cuja uma das poucas certezas que apresenta é a performance segura de Leonardo Machado.

 

O Tempo e o Vento (2013)
Já adaptado para a televisão nos anos 1980 e com diversas produções cinematográficas que narravam partes da sua história – como O Sobrado (1956), Ana Terra (1971) e Um Certo Capitão Rodrigo (1971) – o clássico de Erico Verissimo ganhou sua versão definitiva na tela grande somente em 2013, e pelas mãos de Jayme Monjardim. Ao transformar mais de mil e duzentas páginas em um longa de cerca de duas horas de duração, obviamente muita coisa precisou ser cortada – a versão televisiva, lançada meses após sua passagem pelos cinemas, como uma minissérie com vários capítulos, é mais fiel – mas ainda assim cumpre com efeito a responsabilidade de narrar e apresentar este épico a toda uma nova geração. Leonardo Machado aparece como Marciano Bezerra, o mercador que leva Ana Terra (Cleo Pires) e seu filho, Pedro Terra (Eduardo Correa), para Santa Fé, onde irão começar uma nova vida. É um homem de finos tratos, mas acostumado com a dura vida na estrada. Ainda que não seja um dos protagonistas, é um personagem interessante, que acompanha a trama dos 40 aos 104 anos, sempre presente nos momentos históricos desse período. O primeiro parto que Ana Terra faz, por exemplo, é justamente o do filho dele. À época das filmagens, Leo chegou a declarar: “estou me preparando a vida inteira para isso. Gosto muito da nossa cultura e pesquiso bastante sobre ela. As filmagens são em Bagé, então estarei em casa. Estou habituado com a questão do campo, do regionalismo, pois tento manter isto para entender quem sou e nunca perder essa raiz, este pé na terra”.

 

A Superfície da Sombra (2017)
Adaptado do livro homônimo de Tailor Diniz, Tony foi o último protagonista de Leonardo Machado na tela grande. Depois desse trabalho, voltou a atuar sob a direção de Paulo Nascimento no drama Teu Mundo Não Cabe nos meus Olhos (2018) – ao todo foram seis longas, uma série de televisão e outros tantos projetos juntos – e na cinebiografia Yonlu (2017), de Hique Montanari, como o pai do personagem-título. Em A Superfície da Sombra, aparece como esse homem solitário que viaja até o extremo sul do Brasil para rever uma amiga à beira da morte. Ao chegar lá, descobre que ela já faleceu, mas acaba se envolvendo com uma mulher misteriosa e com outras figuras estranhas do lugar. É um filme bastante pessoal, que se aventura pelo exercício de gênero, navegando pelas águas do suspense de tintas fantásticas. Tony é um tipo cuja introspecção se percebe em seu jeito calado e direto, assim como certo desprendimento, até mesmo um ar de indiferença. Não se sabe ao certo qual era a relação dele com a falecida, e a possibilidade de um envolvimento amoroso, seja com ela ou a filha que o recebe, está sempre latente. Talvez uma das figuras mais complexas que já interpretou na tela grande, passou praticamente batido pelos cinemas, mas oferece um belo testemunho do artista que Leonardo Machado sempre foi, inquieto, determinado e ciente das suas responsabilidades.

 

+

 

A Oeste do Fim do Mundo (2013)
Leonardo Machado não atua em A Oeste do Fim do Mundo. Então, por que este filme aparece nessa lista? Pois se trata do primeiro longa dele como produtor, um passo adiante que deu na sua parceria com o diretor Paulo Nascimento – ele tinha a intenção, também, de estrear como realizador num futuro próximo. Filmado inteiramente na Argentina, tem como protagonistas César Troncoso, Fernanda Moro e Nelson Diniz – todos velhos colegas de Machado e Nascimento – e conta uma história de solidão e perda, conexões e novas possibilidades de união. Dono de imagens belíssimas, foi recebido com entusiasmo no Festival de Gramado – onde participou na seleção de longas estrangeiros, uma vez que é praticamente todo falado em espanhol – tendo recebido os kikitos de Melhor Filme Latino pelo Júri Popular, Melhor Ator Latino (Troncoso) e o Prêmio Especial do Júri. Selecionado também para festivais internacionais, como os de Chicago, nos Estados Unidos, e de Toronto, no Canadá, circulou o mundo mostrando que Machado, mais do que um artista competente, era também um criador, alguém que pensava o cinema do início ao fim, e cujas ambições iam além de apenas entregar performances singulares.

(Com as colaborações de Willian Silveira, Rodrigo de Oliveira e Leonardo Ribeiro)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.