Marília Pêra não era apenas mais uma atriz. Ela era A atriz. Artista múltipla, atuava nas mais diversas frentes: como intérprete, diretora, cantora, bailarina, coreógrafa, escritora. No decorrer de sua trajetória por mais de setenta anos de vida – afirmava ter estreado nos palcos com apenas 19 dias, ao surgir ainda bebê em cena durante uma apresentação de uma peça estrelada pelos pais – deu vida à personagens marcantes nas telas, como Manoela (Beto Rockfeller, 1968), Shirley Sexy (O Cafona, 1971), Noeli (Bandeira 2, 1971), Pupe (O Rei da Noite, 1975), Rafaela (Brega & Chique, 1987), Juliana (O Primo Basílio, 1988), Genu (Lua Cheia de Amor, 1990), Irene (Central do Brasil, 1998), Ana Lara (O Viajante, 1999), Maria Monforte (Os Maias, 2001), Amélia (Amélia, 2001), Sara Kubitschek (JK, 2006) e as irmãs Magda e Magali (Polaroides Urbanas, 2008), entre tantas outras – e sem falar de nomes como Coco Chanel, Maria Callas, Dolly e Geni, vividas nos palcos. Ainda assim, a equipe do Papo de Cinema foi capaz de se reunir e escolher outras seis inesquecíveis criações suas, imortalizadas na telona. Marília Pêra pode ter nos deixado no dia 05 de dezembro de 2015, mas seu talento será eterno, e aqui deixamos nossa pequena homenagem reconhecendo cinco trabalhos exuberantes – e mais um, é claro, que não pode ser esquecido. Confira!
O filme de Hector Babenco é, apesar de ter sido batizado com o nome de apenas uma criança, sobre toda uma geração desmamada pela pátria que deveria acolhê-la. Um alerta ainda relevante sobre a marginalização de menores desfavorecidos, principalmente em tempos que estamos baixando a maioridade penal e há pessoas inclusive pedindo a volta da Ditadura Militar, Pixote: A Lei do Mais Fraco traz a nossa homenageada como a prostituta Sueli, que a princípio rejeita o carinho do menino protagonista, enojada com o seu apego, só para mais tarde ser a pessoa que vai recebê-lo literalmente em seu seio. Sueli é não só a mãe que Pixote e todas aquelas crianças relegadas ao abandono na época do regime não tiveram, como alguém que vende o próprio corpo e através dele se torna a figura do povo, encontrando, através dos meios que tem, maneiras de sobreviver. Amarga e, paralelamente, carente, Sueli faz jus a metáfora que vive e deixa mais um personagem de Marília Pêra eternizado na história do cinema brasileiro. – por Yuri Correa
Marília Pêra não era atriz de papeis coadjuvantes. Mesmo quando seu tempo de exposição em cena não era dos maiores, sua presença costumava chamar tanta atenção que ela dificilmente passava ignorada. Felizmente, não foi preciso nenhum tipo de esforço para notarem sua atuação esfuziante e envolvente nesta comédia dramática escrita e dirigida pelo amigo Hugo Carvana. Como Ana, uma atriz envolvida com um escritor em crise, ela surge primeiro quase como um adendo do protagonista – interpretado pelo diretor, um agravante que evidencia onde deveria estar o foco da ação – mas aos poucos vai se agigantando perante os demais em cena, a ponto de que a necessidade que ele – e os demais – sentem por ela termina por se transferir para a audiência. Todos nós, em ambos os lados da tela, entendemos a importância daquela mulher para o artista, como uma verdadeira musa inspiradora surgida da noite carioca. Uma atuação retumbante, que conquistou seu primeiro kikito como Melhor Atriz no Festival de Gramado, além de ter levado também o prestigioso prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. Reconhecimentos, obviamente, mais do que merecidos. – por Robledo Milani
A grandeza de Marília Pêra fazia-se notar não apenas em papéis principais, mas também em pequenas, porém marcantes, participações nas quais era capaz de roubar a cena. Um belo exemplo desta capacidade da atriz encontra-se neste cultuado longa, o único dirigido por Wilson Barros, cuja história apresenta diversas figuras peculiares que se cruzam durante a noite paulistana, como o artista transexual Lola/Mauro (Chiquinho Brandão), a estudante de sociologia Cissa (Be Valério) e o garoto de programa Teddy (Guilherme Leme). Realizando um jogo metalinguístico extremamente hábil, Barros constrói um retrato ácido da vida noturna das grandes metrópoles, tratando de temas como solidão e incomunicabilidade. Neste vasto coral de personagens, que ainda inclui nomes como Antônio Fagundes, Marco Nanini, Zezé Motta e Cláudio Mamberti, Marília Pêra surge como Marta Brum, uma atriz decadente que mantém sua pose de diva. Empregando um tom propositalmente teatral, Pêra é responsável por excelentes tiradas cômicas e se torna uma espécie de musa para o personagem de Leme, além de protagonizar uma sequência de dança ao lado do ator, inspirada no clássico musical A Roda da Fortuna (1953), de Vincent Minelli. Um momento de grande beleza, que oferece ao público mais uma amostra do talento multifacetado da atriz. – por Leonardo Ribeiro
Maryalva tem um sonho com todo o jeito de ser impossível. Dubladora de uma série norte-americana, devaneia sobre o dia em que será uma estrela internacional. Mas o que faz para realizar este desejo? Não muita coisa, com sua vida empacada no relacionamento com um homem casado, suas lembranças do primeiro amor que se foi precocemente e seu emprego apaixonante, mas sem grandes possibilidades de lhe abrir portas. Carlos Diegues entrega aqui um de seus filmes mais criativos, e apagando as linhas entre realidade e devaneio, comanda Marília Pêra em uma de suas personagens mais divertidas. A sonhadora – autobatizada posteriormente como Mary Mattos – é praticamente um amálgama da mulher do terceiro mundo no final do século XX. Tudo parece inalcançável, mas nem por isso se deve deixar os objetivos de lado. É verdade que os caminhos que ela toma não são necessariamente os mais corretos, o que só deixa mais interessante a jornada desta mulher brasileira. Com elenco de pesos pesados com José Wilker, Paulo José, Zezé Motta e Rita Lee, o longa é a prova de que Diegues vivia uma fase encantada. E que Marília Pêra deixará muitas saudades. – por Rodrigo de Oliveira
“Quando o choro é verdadeiro, as pessoas sempre tentam esconder (…) o ator, principalmente o ator hoje, tenta mostrar”. Analisando o processo de exposição das lágrimas como possibilidade de distinguir realidade e encenação, sobretudo no âmbito da ficção televisiva, Marília Pêra expõe seu processo de interpretação de um drama real, neste grande filme de Eduardo Coutinho. Atriz de incontáveis serviços prestados à TV e ao teatro, de muitos papéis marcantes no cinema, embora a telona não a tenha abrigado com a frequência que deveria, Marília propõe um diálogo conceitual que enriquece ainda mais a proposta de Coutinho, possível justamente em virtude da experiência acumulada. Ela busca emular as emoções da mulher com problemas de relacionamento, que lembra saudosa da figura paterna. Coutinho alterna a interpretação de Marília e o depoimento dela, o que nos dá a dimensão exata da precisão do trabalho da atriz, que entra em contato com uma história de vida alheia, encarnando com propriedade a personagem, por abarcar o quanto possível sua complexidade. Não fosse tão conhecida, Marília Pêra facilmente passaria pela até então anônima que desnudou sua vida frente às câmeras. Mistura de técnica e intuição, é um esforço notável, inclusive de reflexão cênica. – por Marcelo Müller
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Marília Pêra foi uma atriz que sempre se gabou do seu status de estrela. Porém, mesmo quando coadjuvante, a excelência na composição nos personagens que criava era tão forte que muitas vezes chegava a roubar a atenção dos espectadores. Foi assim na televisão, ao dar vida à Juliana de O Primo Basílio (1988) – obrigando Gloria Pires a suar ao enfrentar o mesmo desafio na tela grande – e também no cinema, como a Perpétua desta adaptação do romance de Jorge Amado. Se o filme foi pensado para ser um veículo para o sucesso de Sônia Braga como a protagonista, é Marília, no entanto, como a irmã invejosa, avarenta e em eterno luto, que rouba a cena a cada aparição, entregando uma atuação tão emblemática que não fica em nada a dever àquela que Joana Fomm consagrou na telinha. Um trabalho fenomenal em oferecer carisma a um tipo amargo e digno de pena, elaborado com tanta precisão que os reconhecimentos obtidos no Festival de Havana, na Associação Paulista de Críticos de Arte e no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro foram não apenas justos, mas também compulsórios. A consagração, como ela mesmo sabia, não precisava vir necessariamente dos maiores papéis, mas, sim, dos melhores. – por Robledo Milani