Petrus Cariry é um autor de assinaturas muito reconhecíveis. Nos seus filmes, (quase) sempre podemos contar com um rigor fotográfico impressionante, com a utilização de mitos e ícones para falar de questões/dilemas comuns, com a obsolescência, além do amplo protagonismo da família. Filho do grande cineasta Rosemberg Cariry, ele tem no pai uma inspiração, além de colaborador frequente. Mas, para falar do cinema de Petrus não é preciso compará-lo à obra de Rosemberg, uma vez que ela possui vida própria. Sempre muito gentil e entusiasmado, Petrus é o tipo de realizador com quem se pode ficar horas conversando sobre cinema e inspirações, das mais eruditas aos sucessos populares que igualmente povoam o seu imaginário cinéfilo. Se ele estivesse dentro do eixo Rio-São Paulo, talvez já teria alcançado o reconhecimento merecido como um dos grandes cineastas de sua geração. Essa suposição nos faz pensar que ainda há muito a trilhar para uma efetiva descentralização da nossa produção audiovisual, mesmo com os estados do Nordeste sendo há anos os responsáveis pelos nossos melhores filmes. Bom, conjecturas à parte, resolvemos fazer um levantamento dos cinco filmes mais importantes de Petrus Cariry até aqui e ainda sinalizar um que merece (re)descoberta. Queremos saber de você: qual dos longas-metragens abaixo é seu favorito? Confira a participe.
Uma cidade fantasma. Duas mulheres chorando suas tragédias, mergulhadas numa noção muitas vezes mitificada de hereditariedade. Neste filme, considerado o segundo da Trilogia da Morte – iniciada com O Grão (2007) e terminada com Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015) -, Petrus dá uma amostra bastante contundente de seu estilo. Construindo uma atmosfera densa em que as personagens se desdobram para além de uma realidade palpável, ele mistura verdade e fabulação em meio a ritos como o da filha pedindo a benção à mãe para enterrar o seu filho natimorto. Juliana Carvalho interpreta a jovem que volta para a terra morta de onde saiu a fim de conseguir da mãe o consentimento que a permitirá realizar o ritual fúnebre e, com isso, seguir adiante. Zezita Matos vive a mulher distante da realidade, resistente à teimosia da obsolescência e da morte, que pretende se enterrada no solo ultrapassado, mas ao qual se sente pertencente. Mãe e Filha é um parente das tragédias gregas ambientado no interior do Ceará, no qual cabe até a releitura da iconografia cristã com a aparição dos cavaleiros do Apocalipse trajados de sertanejos. Um filme em que cada gesto importa ao desenho desse clima que fica num limiar entre o pesadelo e o sonho, no qual a família é o acalento e também o terror. No 18º Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, a grande premiação da crítica de cinema do Brasil, foi indicado a Melhor Direção, Atriz (Juliana Carvalho), Atriz Coadjuvante (Zezita Matos), Roteiro Original, Montagem e Som.
O cinema de Petrus parece ideal para o gênero horror, especialmente por conta da maneira como ele elabora as suas atmosferas carregadas de significados, às quais o rigor das imagens e a construção sonora são de extrema importância. Em Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, o encerramento da Trilogia da Morte, Clarisse (Sabrina Greve) é uma jovem de semblante petrificado que sofre pelos tormentos da história familiar. Já o patriarca representado por Everaldo Pontes é um representante dessa herança pesada que Clarisse carrega atrelada ao sobrenome. O homem simboliza uma noção prestes a morrer, mas ainda forte o suficiente para assombrar aqueles que vêm na sequência. A mulher assume o papel da descendente que luta contra os efeitos nocivos dessa bagagem que o cineasta evoca por meio de um cenário decadente e da ênfase no corpo decrépito do sujeito arrogante a quem são atribuídas as ruínas familiares. Neste longa-metragem indicado ao 23º Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro (na categoria Melhores Efeitos Especiais), Petrus avança sobre o terror e dele se apropria para continuar falando de família e finitude. E uma cena particularmente poderosa se encarrega de sintetizar os sentimentos conflitantes num cenário ao mesmo tempo familiar e indicativo do fim: a da implosão de uma imponente pedreira em virtude da intervenção humana.
Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro Adaptado e indicado ainda a Melhor Ator (Rômulo Braga), Direção de Arte, Fotografia, Figurino, Maquiagem e Som no Prêmio Guarani 2021, O Barco é um filme no qual é praticamente palpável a presença de um tempo implacável. Tempo que renova as coisas, mas que também as torna obsoletas. É preciso algo morrer para surgir o novo. Mesmo que não faça parte da chamada Trilogia da Morte, este longa-metragem igualmente pode ser encarado como uma reflexão acerca da finitude, não à toa, também ambientado num cenário entre mundos realistas e simbólicos com a família no olho do furação. Nele, Esmerina (Veronica Cavalcanti) tem 26 filhos, um para cada letra do alfabeto. O primogênito, A (Rômulo Braga), é inconformado com o lugar paradisíaco regido pelas ofertas da parte rasa do mar. Sem a embarcação adequada para poder desbravar as águas revoltosas da natureza dadivosa e furiosa em semelhante medida, ele se pega num embate geracional com sua mãe. E o barco encalhado à beira-mar é uma imagem de morte que, ao mesmo tempo, se apresenta como possibilidade de vida. O jovem A deseja ser como Simbad, o aventurado pelos sete mares, farto das paisagens repetidas, das palavras que se reiteram diariamente. Ana (Samya De Lavor) é sua Xerazade, pois, ao passo em que atiça a curiosidade pelos cenários exteriores, diariamente o entretém com enredos que o prendem ao sentimento de mais querê-los. Mais uma vez, Petrus recorre aos mitos para ir além-mar.
Exibido no 31º Cine Ceará, do qual saiu premiado na mostra competitiva de longas ibero-americanos como Melhor Fotografia, Direção de Arte e Prêmio da Crítica (Troféu Abraccine), o ainda inédito no circuito comercial, A Praia do Fim do Mundo reforça o interesse de Petrus pelos lugares prestes a desaparecerem e pelas pessoas que resistem até o fim por saberem que desistir do território é aceitar de bom grado a morte. Na trama, a jovem Alice (Fátima Muniz) vive com a mãe Helena (Marcélia Cartaxo) em Ciarema, numa casa em frente ao mar. A residência sofre com o avanço das águas que destroem a propriedade e já motivaram a partida de outras famílias. A filha, uma ambientalista, pretende se mudar para outro lugar, mas a mãe quer permanecer na cidade. Elas precisam encontrar juntas uma solução. Reforçando as assinaturas autorais do realizador cearense, temos novamente um cenário desolado (méritos, inclusive, da fotografia em preto e branco não menos que brilhante de Petrus), uma idosa que pretende resistir até o último momento contra os avanços da natureza, uma jovem herdeira que não compreende perfeitamente a resiliência da mãe, além da morte à espreita. O filme retoma esse olhar de Petrus Cariry para um território físico que espelha geografias imaginárias. A paisagem metafórica resulta do choque entre as memórias e a angústia por não saber o que esperar do amanhã, levando em consideração que haja possibilidade de futuro para essas personagens ancoradas ao passado.
Na maior parte dos filmes de Petrus, personagens se debatem por conta de um cenário e/ou histórico familiar. Desse modo, a família é encarada como algo ambivalente, pois ao mesmo tempo em que oferece a proteção de um ninho seguro, também se transforma rapidamente numa panela de pressão de expectativas e frustrações. Em Mais Pesado é o Céu o cineasta faz um caminho inverso nesse sentido, ao apresentar personagens absolutamente solitários que, a fim de almejar algum futuro, precisam construir uma família. Antonio (Matheus Nachtergaele) está em busca de uma cidade que não existe mais. Teresa (Ana Luiza) encontra um bebê abandonado nesse cenário inóspito, decide a dividir com ele a sua miséria, o acolhendo como se fosse filho. Contando com a ajuda de estranhos pelo caminho, como a mulher que os acolhe e direciona em meio à perdição de uma paisagem interiorana, o caminhoneiro que conduz Antonio e a atendente do posto de gasolina que desempenha um papel semelhante de orientadora a Teresa, esse casal sobrevive e mantém acesa a esperança. Novamente, Petrus sugere paralelos com a iconografia religiosa, especialmente se pensarmos em Antonio e Teresa como personificações simbólicas de José e Maria pelo deserto garantindo a salvaguarda do menino Jesus. Aliás, o bebê resgatado da morte certa representa esse fio de esperança que ajuda a iluminar as áreas mais obscuras dos dramas humanos e existenciais.
Petrus Cariry se juntou a Firmino Holanda, seu colaborador de longa data, para dirigir um documentário bastante interessante sobre a passagem de Orson Welles pelo Brasil como parte da política da boa vizinhança estadunidense que visava afastar o país então governado por Getúlio Vargas do bloco fascista liderado pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Ao se referir a Hitler, a dupla de cineastas não se limita a mostrar o Führer esbravejando em praça pública, mas recorre aos monstros do Expressionismo Alemão, tais como o Cesare de O Gabinete do Dr. Caligari (1920) ou mesmo o vampiro de Nosferatu (1922). Assim, eles pedem licença ao cinema para invocar determinadas coisas. É a forma de Petrus e Firmino se apropriarem novamente de uma mitologia, mas dessa vez a do cinema, recorrendo aos monstros expressionistas para simbolizar o mal que o movimento de renovação do cinema alemão pós-Primeira Guerra Mundial de certa forma prenunciava. O filme tem a capacidade de combinar os contornos legendários dos pescadores e os do filme inacabado, pois Orson Welles se rebelou contra a ordem de registrar a “beleza” do Carnaval. Trata-se de um tributo da dupla de cineastas a um dos mais inventivos e rebeldes criadores norte-americanos, à capacidade transcendente do cinema e aos jangadeiros que enfrentaram, como os heróis mitológicos, os desafios do mar.