O caminho de Walter Salles estava completamente aberto a sua frente, não muito diferente de como são os finais de seus filmes. Nascido em 12 de abril de 1956, em família abastada, qualquer escolha feita por Salles seria uma escolha possível. Ele chegou a cursar Economia na PUC, talvez pensando na possibilidade de seguir os negócios da família – os Moreira Salles são acionistas majoritários de um dos maiores bancos do Brasil. No entanto, sua paixão por cinema gritou mais alto. Partindo para os Estados Unidos, estudou Comunicação Audiovisual na Universidade do Sul da Califórnia e, na década de 1980, dirigiu diversos documentários, grande parte para a televisão. Ao lado do irmão João Moreira Salles, fundou a Videofilmes, em 1987, produtora audiovisual que se mostrou uma das mais ativas após a retomada do cinema nacional na década da 1990. Sua estreia como diretor de filmes de ficção já chamou atenção pela ambição. Com atores estrangeiros no elenco – Peter Coyote, Tchéky Karyo e Amanda Pays – ao lado de talentos nacionais, A Grande Arte (1991) venceu alguns prêmios, mas logo foi ofuscado pelo trabalho seguinte do cineasta, o aclamado Terra Estrangeira (1995). Este foi o trampolim necessário para que Salles conduzisse Central do Brasil, produção cheia de predicados que acabou conquistando uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e uma inédita nominação para Fernanda Montenegro como Melhor Atriz. Além de filmar no Brasil, comandou Abril Despedaçado em 2001, Walter Salles passou a abranger uma área maior a partir de seu sucesso no exterior. Água Negra (2005) foi sua primeira oportunidade para filmar em Hollywood e embora o resultado tenha ficado aquém das expectativas, isso não fechou porta alguma para ele. Tanto que seguiram outras produções internacionais requintadas como Diários de Motocicleta (2004) e Na Estrada (2010) – além, é claro, de alguns esporádicos trabalhos no país, como Linha de Passe (2008). Para comemorar o aniversário de um dos mais talentosos cineastas brasileiros em atividade, a equipe do Papo de Cinema se reuniu para escolher os cinco melhores filmes do diretor – e mais um, que foge um tanto do seu trabalho vigente. Confira!
Logo quando o Brasil começou a retomar sua produção cinematográfica, praticamente extinguida quando Fernando Collor assumiu a presidência no início da década de 1990, Walter Salles não perdeu tempo e fez um filme que consegue ser crítico àquele governo ao mesmo tempo em que é instigante em sua história. Paco (Fernando Alves Pinto) é um jovem que, após perder a mãe, decide ir visitar a terra-natal dela, na Espanha. Sem dinheiro, ele tem a chance de realizar seu desejo ao aceitar contrabandear um pacote até Portugal, onde acaba conhecendo Alex (Fernanda Torres), se metendo com figuras perigosas. Salles constrói um filme que reflete o período em que se passa, mostrando sua indignação com os tempos de crise vividos pelo Brasil, fazendo isso com um roteiro muito bem amarrado. Na verdade, há inúmeros elementos admiráveis no filme, desde a excepcional fotografia em preto e branco de Walter Carvalho, passando pela montagem cadenciada de Salles e Felipe Lacerda, pelas atuações do elenco e chegando, claro, à própria condução delicada do diretor. Em Terra Estrangeira, Walter Salles ajudou a reapresentar a riqueza do nosso cinema, algo que se estabeleceu com propriedade ao longo dos anos (ainda que parte do público teime em subestimá-la). – por Thomás Boeira
Se o Brasil pudesse ser compreendido a partir de um ponto, este seria a Central do Brasil, estação de trens localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. No momento em que Walter Salles pensa a região de encontros, partidas e chegadas como consequência do país, ele torna a Central uma síntese do Brasil. Ali, Dora (Fernanda Montenegro) dá voz aos que não sabem escrever cartas, entre eles Ana, que surge com Josué (Vinícius de Oliveira) e a história de um filho que quer conhecer o pai. Ao perder a mãe atropelada, o menino passa a viver junto a Dora, que deve viajar até o Ceará caso queira que ele reencontre a família. Símbolo de um cinema brasileiro moderno e universal, o road movie dramático é um filme de rara beleza e simplicidade, que se permite apontar as fragilidades de um país em desenvolvimento sem deixar de contar uma boa história. A atuação estupenda de Fernanda Montenegro não apenas permitiu ao longa-metragem disputar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, como a levou à disputa pela estatueta de Melhor Atriz. Ainda em 1999, Central do Brasil venceu o Globo de Ouro como Melhor Filme Estrangeiro. – por Willian Silveira
O povo “menor”, aquele de raiz, que preenche qualquer nação tanto pelo número de integrantes, quanto pela simplicidade que os permite serem os condutores dos valores básicos da cultura local, parece ser um objeto que, propositalmente ou não, acaba caindo nos estudos promovidos pela filmografia de Walter Salles. São elementos recorrentes em Terra Estrangeira, Central do Brasil e Na Estrada (2010) – e talvez por isso mesmo o cineasta tenha sido uma escolha tão lúcida para adaptar a obra imortal de Jack Kerouac. Abril Despedaçado não é diferente, e mergulha profundamente não só no território brasileiro, ambientando-se em um cenário isolado e primitivo, como também nas características culturais que essas condições refletem naquele povo. A história se passa entre duas fazendas comandadas por famílias inimigas. Quando o sangue da última vítima dessa guerra fica amarelo nos farrapos das suas roupas, todos sabem que é hora da revanche. É assim que acontece há tempos, mas Tonho (Rodrigo Santoro) não acha que isso precise continuar. Salles vai muito além da tensão superficial gerada pelo conflito, e explora as convenções mais primitivas que o geraram, comandando uma espécie de western brasileiro – com direito a uma longa introdução que deixaria Sergio Leone orgulhoso. – por Yuri Corrêa
Afinal, quem foi Ernesto Che Guevara antes de líder político revolucionário e símbolo de boa parte de esquerdistas latino-americanos? Muito mais interessado no lado humano do ícone, Walter Salles foca sua história na jornada que Che e seu amigo Granado fazem da Argentina até a Venezuela nos idos de 1952. Ou seja, um road movie, cinema que se tornou a marca do diretor brasileiro. É neste longo trajeto realizado à beira da estrada que vemos o tímido e retraído médico descobrir o mundo de outra forma, de dentro para fora, se distanciando cada vez mais não apenas fisicamente, mas também ideologicamente do que poderia se esperar. Os questionamentos já estavam na persona, mas Ernesto (ou Che?) conhece a realidade dos pobres, dos índios, e suas mudanças não vão ser apenas internas, mas também físicas. Salles conta com um elenco excepcional capitaneado por Gael García Bernal e Rodrigo De la Serna para registrar como uma longa viagem pode transformar qualquer um. E o cineasta faz isso da mais bela forma, com imagens que brilham aos olhos, mesclando sensibilidade e realidade na mesma medida, podendo até mudar a forma do próprio espectador enxergar o mundo. – por Matheus Bonez
Indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2008, a produção acompanha a trajetória de cinco personagens: a empregada doméstica Cleuza (Sandra Corveloni) e seus quatro filhos – Dênis (João Baldasserini), Dario (Vinícius de Oliveira), Dinho (José Geraldo Rodrigues) e Reginaldo (Kaique de Jesus Santos) – que vivem na periferia paulistana. A emocionante narrativa é digna de aplausos e todos os personagens são bem trabalhados e desenvolvidos. As críticas sociais são bem trabalhadas e Walter Salles realiza um suspense diferente. Não o dos filmes de ação, mas o suspense e a ansiedade angustiantes da maior parte da população brasileira, que vive o medo de não saber se voltará para a casa no fim do dia, se dará certo na vida, se conseguirá sobreviver ou realizar seus sonhos. As atuações também são pontos altos do filme. Corveloni faz um trabalho absurdo, digno do prêmio de Melhor Atriz do Festival de Cannes. Vinícius de Oliveira tem bela performance e Kaique de Jesus Santos é uma agradável revelação. Ao lado de Daniela Thomas, Salles faz uma direção impecável e precisa em todos os quesitos. O resultado é um filme de alto nível, dos melhores do talentoso diretor e do cinema brasileiro como um todo. – por Gabriel Pazini
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Neste documentário, Walter Salles é diretor e cinéfilo. Sua visão acerca do colega Jia Zhang-ke é inequivocamente provida de admiração, porém centrada o suficiente para não passar uma sensação exagerada de reverência. Salles acompanha Zhang-ke de volta à Fenyang, cidade natal onde o chinês se depara com fragmentos de sua memória afetiva, sobretudo no contato com as testemunhas de seu crescimento ou com os lugares frequentados da infância à juventude. O processo criativo de Zhang-ke é entrelaçado com a esfera privada, o que denota a pessoalidade de sua obra. Walter Salles faz-se praticamente invisível, não buscando os holofotes para si, privilegiando esse desnudamento que não se propõe a esgotar o protagonista, mas a entendê-lo por diversos vieses. O brasileiro, por exemplo, consegue demonstrar a importância que Zhang-ke confere aos espaços e como isso influencia diretamente seus filmes no âmbito imagético e, de maneira semelhante, no concernente ao comportamento dos personagens diante do mundo. Para além daquilo que tange à ordem das competências, este filme se destaca na filmografia sólida de Salles por ser um documento íntimo sobre um artista que faz do cinema a via pela qual reflete a respeito das mudanças sociais vistas nas últimas décadas no território chinês. – por Marcelo Müller