8 ½ Festa do Cinema Italiano 2021 :: O cinema e a Itália da atualidade (Balanço)

Publicado por
Marcelo Müller

A pandemia da Covid-19 impôs condições excepcionais para a realização de boa parte dos festivais e das mostras de cinema desde o começo de 2020. Em busca de sobrevivência e/ou de manter seus conquistados espaços de relevância, muitos eventos se mudaram integralmente para o âmbito online. No ano passado, o 8 ½ Festa do Cinema Italiano fez uma espécie de retrospectiva dos seus anos de existências no Brasil, com a exibição de filmes emblemáticos das edições anteriores. Uma vez que 2021 não trouxe a tão sonhada transformação mágica de um cenário ainda restritivo por algum tempo, a programação deste ano teve um recorte exatamente com a mesma a cara do presencial, ou seja, privilegiando os destaques da cinematografia italiana da atualidade (inclusive os premiados). De 17 a 27 de julho foi possível acompanhar, online e gratuitamente, desde as tão costumeiras comédias cáusticas do país europeu, passando por superproduções épicas e chegando às que apresentaram uma Itália diferente do habitual.

 

Festival italiano em regiões que falam português
O 8 ½ Festa do Cinema Italiano acontece tradicionalmente no Brasil e em Portugal, dois países de língua portuguesa. A despeito de histórias umbilicalmente ligadas, tratam-se de nações com muitas diferenças (culturais, geográficas, sociais, políticas, econômicas, etc.). Portanto, provavelmente é um enorme desafio pensar em estratégias que funcionem para ambos os territórios. Conversamos sobre isso com o diretor artístico do evento, Stefano Savio, num podcast especial que convidamos vocês a ouvirem aqui – com apresentação do nosso editor Marcelo Müller e a participação especial da jornalista Flávia Guerra. Mas, dando uma palinha do que o gestor italiano disse para a gente, existia uma vontade prévia de fazer essa seleção adequada a diversos tipos de público. Antes de qualquer coisa, o 8 ½ Festa do Cinema Italiano visa promover uma cinematografia mundo afora (sobretudo em territórios lusófonos, visto em em 2020 também aconteceu em Cabo Verde), portanto não faria sentido um recorte excludente. A seleção 2021 contou com várias facetas. Da comédia popular ao filme com assinatura autoral, tudo esteve por ali.

No Brasil, além das exibições nos 10 dias do evento, houve programações paralelas, entre elas as Lives promovidas no perfil oficial do Papo de Cinema no Instagram. Conversamos com Stefano Savio e Flavia Guerra em dois momentos distintos e também com a produtora Ana Laura Cruz e o crítico Francisco Carbone. Os papos giraram em torno de questões como os aspectos da curadoria, a recorrência de determinadas abordagens (como a infância), a Itália contemporânea vista nos filmes selecionados, os detalhes do processo de produção de algo acontecendo remotamente e a homenagem à cineasta Alice Rohrwacher. Além disso, o 8 ½ Festa do Cinema Italiano também proporcionou ao público brasileiro uma conversa com a cineasta e dramaturga Emma Dante – que nós entrevistamos com exclusividade, papo que você confere aqui –, com o vencedor do Oscar Gabriele Salvatores – que também entrevistamos, conversa disponível aqui –, e com Alice Rohrwacher, dinâmica que encerrou oficialmente a programação 2021. Tudo devidamente traduzido simultaneamente para que as atividades fossem inclusivas.

Fábulas Sombrias

 

Cinema de Hoje. Itália de Hoje
Todo filme é um documento de sua época, pois carrega aspectos muito próprios do momento histórico em que foi produzido. A que anseios responde a sociedade que o permitiu existir? Qual a geografia ele compreende como cenário? De que forma a sociedade que ele reverbera lida com certas questões? Nesse sentido, a programação do 8 ½ Festa do Cinema Italiano serviu não apenas para um contato privilegiado com o cinema da Itália, mas a fim de entendermos um pouco melhor do que é feita a Itália de hoje. Exemplo disso é Bangla (2019), comédia que começa justamente tentando compreender a paisagem multicultural de um bairro específico. Phaim Bhuiyan, protagonista e diretor do filme, é descendente de bengalis. E a trama aborda basicamente esse cidadão europeu de raízes asiáticas. Isso, sublinhando possíveis choques culturais, tais como a tentativa de manutenção de costumes, mesmo noutro país, e como os nascidos dessa vontade/necessidade de migração se encontram entre dois mundos distintos.

Curiosamente, nesse processo de situar-se no presente, alguns filmes do 8 ½ Festa do Cinema Italiano olharam para o passado, buscando nele vestígios essenciais – Rômulo e Remo: O Primeiro Rei (2019), Era uma Vez a Máfia (2019); remontando à infância para discussões subjetivas – Irmãos à Italiana (2020), Fábulas Sombrias (2020); e até tentando conhecer heranças, mitos, sociedades e afins por um prisma corrosivo – Os Predadores (2020). Além disso, ao menos um desses filmes foi buscar na comédia uma forma de gerar entretenimento em torno da exasperação da mulher à beira de um ataque de nervos – Troca Tudo! (2020). Como de costume no cinema italiano desde o fim da Segunda Guerra Mundial, existiram os que observaram famílias como essenciais à constituição dos seres – As Irmãs Macaluso (2020) e Volare (2019). E esses núcleos se misturam, como numa produção focada na infância também estudando a importância da família. Ou mesmo naquela em que o objeto principal é a família, mas que demonstra uma capacidade potente de compreender o passado do país que está em constante transformação.

Bangla

 

Agora é que são elas: as Mulheres
Outra coisa importantíssima do 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2021 foi o relevo dado às mulheres. Quando falamos da instituição Cinema Italiano (assim mesmo, em negrito e com iniciais maiúsculas), grande parte dos nomes citados são de homens. Isso não significa a inexistência de mulheres aptas a sentarem à mesma mesa de Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Ettore Scola, Luchino Visconti e afins. Mas, de um indício de como sempre foi difícil às mulheres sobressaírem em áreas majoritariamente masculinas, sobretudo por conta do poder conferido a quem as ocupa. Um olhar atento à História, no entanto, nos mostra Suso Cecchi d’Amico, uma das maiores roteiristas do cinema – grande parte responsável pelo Neorrealismo Italiano – e Lina Wertmüller, primeira mulher a ser indicada ao Oscar de Melhor Direção, com Pasqualino Sete Belezas (1975). Falando ainda de Oscar, bom lembrar que em 93 anos de premiação (a maior da indústria hollywoodiana), apenas duas mulheres venceram a estatueta de Direção, ou seja, há algo de podre no reino do cinema. Mas, queremos acreditar que as coisas estão mudando.

O 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2021 teve como uma de suas atrações principais o Foco Alice Rohrwacher, desse modo celebrando uma das maiores realizadoras europeias de sua geração. Além dos longas-metragens Corpo Celeste (2011) e As Maravilhas (2014), o espectador brasileiro foi presenteado com dois curtas-metragens dela, Una Canzone (2014) e Omelia Contadina (2020). Isso, claro, além dos dedinhos de prosa com ela, online e aberto ao público – se você perdeu, pode conferir essa conversa aqui. Para completar a fatura, a abertura do evento com o lindíssimo As Irmãs Macaluso nos deu a oportunidade de assistir a um filme de rara sensibilidade e também de estabelecer contato com Emma Dante. A despeito de ter apenas dois filmes em seu currículo, ela é uma dramaturga das mais elogiadas em seu país. Da forma como geralmente enxergamos, duas das funções essenciais dos festivais de cinema são permitir descobertas e revelar trabalhos obscurecidos por lógicas de mercado. Ou seja: missão cumprida.

As Maravilhas

 

Presencial, online ou híbrido?
Como não poderia deixar de ser, um dos principais tópicos de debate durante o 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2021 foi o conjunto das percepções de público, artistas, organizadores e jornalistas sobre a natureza remota das atividades. Prós e contras colocados na balança, talvez o futuro próximo aponte ao hibridismo. Nada substituiu as trocas presenciais, a emoção da sala escura, o calor da vivência compartilhada que dá uma noção coletiva ao cinema. Mas, num mundo cada vez mais dinâmico, acelerado e exacerbado, a diminuição das distâncias e impossibilidades, não deve ser desprezada. O tempo dirá, especialmente quando estivermos relativamente mais seguros, quando a vacinação avançar no Brasil a níveis satisfatórios (de acordo com a Ciência, sempre). Fato é que a edição 2021 do 8 ½ Festa do Cinema Italiano foi boa, não apenas pela seleção dos filmes e por conta do empenho da equipe preocupada com as experiências do espectador, mas pela capacidade de tornar tudo inclusivo, de celebrar as cineastas mulheres (dando a César o que é de César) e fornecer indícios de qual Itália é esta, a atual e em mutação.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.