Filmar o irrepresentável através da força da palavra. Como fazer um filme sobre a essência do nada? Eis as propostas do filósofo, escritor e polêmico cineasta francês Claude Lanzmann em Shoah. Lançado em 1985 e considerado um dos grandes filmes da história do cinema, principalmente pelas importantes contribuições prestadas ao cinema documentário, Shoah é o resultado de 12 anos de trabalho metódico e obstinado de seu diretor. Em uma sexta-feira, dia 6 de setembro de 2013, em evento promovido pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre em parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS) e o apoio da Organização B’nai B’rith/RS, João Moreira Salles, diretor de filmes como Santiago (2007) e Notícias de Uma Guerra Particular (1999), presidente do IMS e editor da Revista Piauí, esteve na capital gaúcha para uma conversa como parte das atividades de lançamento da caixa de DVDs do clássico documentário. Este artigo é uma breve descrição de questões centrais do filme abordadas neste encontro pelo documentarista.
Um ato de imaginação. Para Salles, esta é uma das principais características do filme. Nesse sentido, Shoah trata do processo histórico que só funcionou com tanta eficiência como foram as terríveis práticas adotadas nos campos de concentração e extermínio, porque foi um processo industrial e desapaixonado como todos os processos industriais o são. Uma máquina de morte. Lanzmann adota para si as características rígidas, metódicas, repetitivas e redundantes dos nazistas, com o objetivo de devolver à existência o que se passou. Somente assim essa questão seria alcançada. Desta forma, entendemos melhor as suas escolhas fílmicas, por se tratar de uma obra que começa e está no presente. Suas primeiras imagens, em uma paisagem aparentemente bucólica, retratam o sobrevivente Simon Srebnik (1930 – 2006), em Chelmno, na Polônia, pequena cidade ao norte do país, que em 1941 deu lugar ao primeiro campo de extermínio nazista. Shoah não procura explicar o Holocausto. Suas questões centrais não estão baseadas nos porquês, mas no como.
Um das cenas mais representativas a respeito da abordagem por meio do cinema no presente é a cena com o barbeiro Abraham Bomba. O personagem era responsável por cortar o cabelo dos judeus dentro da câmera de gás. Sabia que daqui a alguns minutos todos estariam mortos, mas não podia contar. Lanzmann o encontrou em Nova York no início dos anos 1970 e posteriormente em Israel, onde o convidou para dar o seu testemunho sobre o Holocausto. Em uma barbearia alugada, com atores em cena e Bomba em seu ofício, o diretor consegue reviver as sensações do personagem dentro da câmera de gás. Após longa conversa, Bomba se encontra com o indizível e não pode mais falar, porque não consegue. Lanzmann o intercepta e o invade, afirmando que a sua função é a de dar testemunho. Neste momento, considerado por Salles como um dos mais extraordinários da história do cinema, o projeto de Shoah, de abolir o passado e transformá-lo em algo vivo e encarnado no corpo, se transforma em realidade. Os mesmos gestos transmitem ao entrevistado a experiência de ter estado lá e aniquilam o tempo. Bomba está em uma câmara de gás. E assim, tudo se torna presente, real.
A força da palavra está tomada pela memória viva do presente e assim é transmitida, é pura experiência. Questão central e radical para Lanzmann, podemos encontrar esta mesma escolha outros em documentários como os de Eduardo Coutinho. Para os dois, a memória não está no passado. Coutinho, que viu Shoah em uma viagem à França nos idos de 1985, destaca a importância deste na sua escolha fílmica pela força da palavra falada. Como um exemplo disso, podemos destacar o documentário Jogo de Cena (2007), onde o que importa não é qual das atrizes fala a verdade ou não, mas sim quando o ato de encenar proporciona o irreproduzível e não há diferença entre a mentira e a verdade – quando a mentira é um pouco de verdade para aquele que a representa.
Outra questão central e importante para Lanzmann é a da não utilização de imagens de arquivo ao longo das 9 horas e meia de filme. Para ele, a utilização de arquivos dá a entender que precisamos de uma prova para o que aconteceu, quando a questão crucial é que não é necessário comprovar o Holocausto. O Holocausto é. O homem do século XX é marcado por este fato, para ele uma singularidade que prova aquilo de que somos capazes.
As matrizes de Shoah estão em três pontos. O julgamento do tenente-coronel da SS, Adolf Eischmann, em 1961, no qual pela primeira vez os sobreviventes dão o seu testemunho e o mundo toma consciência do que aconteceu. O historiador Raul Hilberg (1926 – 2007) e seu clássico livro “A destruição dos judeus europeus”, onde a lição principal, tomada como exemplo seguido por Lanzmann é o de não fazer grandes e genéricas perguntas aos entrevistados, mas sim perguntas que pudessem recriar o processo e, por fim, o filme A Dor e a Piedade (1969), de Marcel Ophüls.
O ponto de vista de Lanzmann é claro e não esconde a sua raiva moral. Suas atitudes às vezes são indelicadas, intolerantes e agressivas. Em alguns momentos, invade mais aqueles que não fizeram nada diante do que viam, como os camponeses poloneses, do que os nazistas alemães. As duas últimas horas de filme são dedicadas à resistência dos judeus, abordada através do Gueto de Varsóvia. Talvez, a maneira mais apropriada que de terminar com um recomeçar. De como viver e encontrar um novo tipo de existência, depois de um período onde a racionalidade não existiu.
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