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A atriz Natasha Richardson faleceu por morte cerebral após bater a cabeça numa pista de esquis para principiantes

Segundo transmite a mitologia, o poeta Ésquilo, um dos grandes responsáveis pela tragédia grega, foi morto por uma tartaruga, que vindo presa às garras de uma águia, desceu vertiginosamente direto dos céus em encontro a sua cabeçatrans.

Lembro bem de frequentar, ainda quando garoto, um loja de música na qual os CDs ficavam dispostos na parede à esquerda, logo na entrada. O lugar era pequeno, mas o bom atendimento e a qualidade dos álbuns garantiam a freguesia. Durante a época que formei meu gosto musical fui bastante eclético. Diria que até demais, e no momento escutava predominantemente Blues. Pedi uma indicação ao vendedor, que apontou para um álbum que na capa tinha um homem abraçado a um cachorro. O animal, desses tipos peludos; o homem, desses tipos de chapéu que antecipam o sotaque. Ao me explicar sobre o cantor – ou seja, não era uma dupla – o vendedor contou-me uma história inusitada.

Apesar de certo sucesso, o músico era tomado por duas características que prejudicavam radicalmente sua carreira. Uma delas era algo como uma fobia social que cada vez fazia mais sentido, e a outra era o medo de viajar de avião. Havia, portanto, se resignado a permanecer em casa na companhia do cão, provavelmente uma bênção, pois se nada tinha de gente tampouco ainda de aeronave. Como que por sorriso sádico do destino, vejam só, de tanto medo de morrer em algum desastre aéreo, um avião caiu sobre sua casa e levou a vida do caubói.

Falo dessas circunstâncias da vida que diante do alto grau de improbabilidade beiram o trágico e o cômico. Há pouco tempo, após bater a cabeça numa pista de esquis para principiantes, a atriz Natasha Richardson faleceu por morte cerebral. Ao comentar o caso, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten trouxe à cena, sem referir precisamente, a seguinte citação: “Nos filmes, a gente tem de preocupar com a verossimilhança. A realidade, não. A realidade é muito mais absurda do que a mais delirante ficção que a gente criar”. Vale à pena discutir brevemente – porque renderia horas – essa questão.

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Não é raro encontrarmos as pessoas interpretando e utilizando o termo da verossimilhança como sinônimo de realidade. Contudo, o que o uso do termo nesse sentido tem de trivial também tem de normal, uma vez que a utilização indiscriminada durante tanto tempo fez com que atingisse nova forma. Um amigo pianista me divertia muitíssimo, pois ao assistir filmes nos quais se deparava com bomba-relógio ele não se continha e acompanhava o tempo correlativo no relógio de pulso, ou seja, dimensionava o tempo fílmico e o real acreditando piamente que deveriam ser um só. Era um projeto próprio de realidade, e ainda que nunca tenha chegado a lhe perguntar se em alguma oportunidade o tempo fictício coincidiu com o real, é certo que na maioria das vezes não. “Não é real”, diria ele (mas e por que deveria?).

“Não tem verossimilhança”, diriam muitos. No entanto o conceito é equivocado e a confusão se dá porque ainda que a realidade não faça a menor ideia do que é a verossimilhitude, funciona de uma maneira a criá-la e autenticá-la artificialmente. Dessa forma, o verossímil pertence a uma realidade estabelecida muito mais pelo nosso conhecimento de mundo, ou seja, aquilo que acreditamos ser possível ou não de corresponder com a realidade, que a algo necessariamente determinado. Saindo um pouco do campo das artes, a estatística e o direito também utilizam o termo e neles o emprego parece permanecer mais fiel à etimologia, respeitando um significado de provável e plausível.

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Bastidores de um filme de ação

Mas não vou me alongar nesse tema, porque a beleza da citação é irrepreensível e me leva mais a imaginação. Aliás, o encantamento está na citação subverter nossas crenças. Se estamos na expectativa de que uma peça, um filme ou uma música redesenhe a nossa gana pelo imponderável e desconhecido, nos esquecemos de que tudo ali é guiado e minuciosamente arquitetado. Esquecemos também, e aí está a chave da colocação, que nenhuma possibilidade fílmica existiria independente da realidade e, portanto, nada é mais absurdo, cômico e trágico do que ela.  Imaginar e executar essa “realidade absurda”, seguramente, é o papel dos grandes artistas.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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