A Estranha Comédia da Vida (2022) chegou recentemente aos cinemas pela Risi Film Brasil apresentando um enredo inusitado e instigante: Luigi Pirandello (Toni Servillo), um dos maiores dramaturgos do século 20, está passando por uma crise criativa quando recebe a notícia da morte de um ente querido na região italiana da Sicília. Em meio aos trâmites de sepultamento e às trapalhadas burocráticas da região provinciana, ele acaba conhecendo dois agentes funerários apaixonados por teatro que estão prestes a estrear a sua nova montagem. Abordando a crise do autor, tema recorrente nas artes e cristalizada no cinema por obras-primas como 8 ½ (1963), de Federico Fellini, o longa-metragem dirigido por Roberto Andó aborda com tintas tragicômicas as circunstâncias que marcaram (ou teriam marcado) a criação da peça Seis Personagens à Procura de um Autor, escrita em 1921 e que revolucionou o teatro ocidental – que, como quase todas as obras de vanguarda, foi mal-recebida inicialmente, bem como mal interpretada. Ao longo de sua existência, o cinema bebeu muito na fonte pirandelliana para contar histórias propícias para o espectador se enxergar refletido num espelho capaz de desgastar as hipocrisias, as convenções sociais e outros artifícios que encobrem a verdade. Confira alguns (de tantos) exemplos de filmes inspirados em obras de Luigi Pirandello e que, assim, se juntam a A Estranha Comédia da Vida.
IRMÃOS TAVIANI
Os irmãos Paolo e Vittorio Taviani foram dois dos mais empenhados cultores de Luigi Pirandello no cinema. Há quem defenda que O Outro Filho, peça de ato único do escritor siciliano, perpassa vários longas-metragens desses aclamados realizadores italianos. Porém, algumas produções deles são efetivamente baseadas na vasta obra no dramaturgo. Kaos (1984), adapta às telonas cinco histórias curtas de Pirandello com uma forte carga poética sobre a vida siciliana. Mais tarde, em 1998, eles lançaram A Gargalhada, também inspirado na série de contos curtos retiradas da famosa coletânea Notícias por um Ano. Nele, dois episódios: no primeiro, uma cantora famosa é obrigada a deixar a exitosa carreira de lado por conta de uma doença grave; no segundo, uma criança é sequestrada para dissuadir o seu pai mafioso da ideia de colaborar com a justiça. E, ainda recentemente, Paolo Taviani, depois da morte de Vittorio, lançou Leonora, Adeus (2022), que mostra diversos acontecimentos surreais durante a transferência das cinzas de Pirandello à sua aldeia natal (e que reproduzem trechos da obra pirandelliana). O filme também foi lançado há pouco pela Risi Film. Aliás, fica a dica de uma sessão dupla com A Estranha Comédia da Vida.
MARCO BELLOCCHIO
Outro realizador italiano famoso que recorreu a Luigi Pirandello como inspiração foi Marco Bellocchio. Neste artigo destacamos duas dessas produções. Para começo de conversa, temos Henrique IV (1984), estrelando Claudia Cardinale e Marcello Mastroianni, que conta a história de um aristocrata moderno. Ele acredita ser Henrique IV depois de uma queda do cavalo. Durante anos, todos ao seu redor têm de se adaptar a fantasia de que esse homem é, ne verdade, o sumo comandante do imponente Império Romano. A produção foi exibida no Festival de Cannes de 1984. Mais de 10 anos depois, Bellocchio voltaria a Pirandello para fazer Intrusa (1999), no qual um famoso psiquiatra contrata uma babá para auxiliar a sua esposa que sofre de depressão pós-parto. A escolhida, Annetta, vem do interior, deixa o próprio filho para trás a fim de cuidar do menino e sofre a resistência da esposa depressiva enquanto aprende seu trabalho.
OUTROS GIGANTES REVERENCIAM PIRANDELLO
A quantidade de grandes cineastas que dirigiram filmes baseados na obra de Luigi Pirandello dá uma boa ideia do seu prestígio. Outro conterrâneo que se inspirou na obra pirandelliaana foi Mario Monicelli para realizar As Duas Vidas de Mattia Pascal (1985). O filme que conta com Marcello Mastroiani no elenco (ator à vontade interpretando personagens de Pirandello) mostra o enredo inusitado de um homem que, depois de ser dado erroneamente como morto, decide sustentar essa farsa e assumir outra identidade para (re)começar uma nova vida. Viagem Proibida (1976), de Vittorio De Sica, com Sophia Loren e Richard Burton no elenco, desenvolve uma história de amor ambientada na Sicília, no início do século 20, quando era comum os jovens se unirem por determinação familiar. Quando dois irmãos se apaixonam pela mesma mulher, tem início um inusitado e inflamável triângulo amoroso. Mas, nem apenas de cineastas italianos vive a relação de Pirandello com a Sétima Arte. O norte-americano Nunca Deixei de Te amar (1956), dirigido por Douglas Sirk (um mestre do melodrama cinematográfico), foi baseado na peça Come Prima Meglio Di Prima e conta uma trama situada na Alemanha de 1945, quando um médico do exército dos Estados Unidos se casa com uma famosa pianista, é separado dela logo depois e vai reencontrá-la apenas anos mais tarde. Ótima pedida esse Pirandello melodramático.
ABORDAGENS RECENTES
Livremente inspirada na peça A Vida que Te Dei, de Luigi Pirandello A Espera (2015) tem como protagonista Anna (Juliette Binoche). Num momento de profunda dor e luto, ela é surpreendida pela visita da namorada francesa do filho, Jeanne, por ele convidada para os festejos de Páscoa. Isoladas num casarão na Sicília, na Itália, as mulheres escondem segredos enquanto aguardam ansiosamente o reaparecimento do rapaz. Mais recentemente, Six Characters (2022), produção tailandesa dirigida por M.L. Pundhevanop Dhewaku, baseada em Seis Personagens à Procura de um Autor (peça cuja gênese encontramos em A Estranha Comédia da Vida, mostra um cineasta tentando rodar um filme de terror num set repleto de tensão. É quando aparecem, de repente, seis estranhos contando as suas histórias – eles são os personagens egressos de um roteiro deixado como herança por um cineasta morto. Também ainda inédito no Brasil, Une Femme Respectable (2023), longa-metragem canadense dirigido por Bernard Émond, adaptado de Pena di Vivere Cosi, mostra uma mulher abrigando o ex-marido e os filhos que ele teve com outra pessoa, logo se apegando às crianças. O filme se passa em Trois-Rivières, no sul de Quebec, 1930.
A obra de Luigi Pirandello, vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 1934, que separa o cômico do humorístico (nesse processo renunciando ao distanciamento e à superioridade), cabe muito bem ao cinema. A estreia de A Estranha Comédia da Vida renova o nosso interesse por ele nas telonas, além de contribuir para instigar o espectador a procurar os filmes citados e outros tantos que extraem sua inspiração da praticamente inesgotável fonte pirandelliana de boas histórias a respeito das dores e das delícias da humanidade. Dica: confira abaixo o episódio especial do podcast Papo de Cinema sobre a A Estranha Comédia da Vida com convidados especialíssimos.
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