Com a espantosa participação de nove longas-metragens (mais três curtas), o cinema brasileiro viu na Berlinale deste ano um reconhecimento que a sua grande e diversificada produção já merecia há uns bons anos. Segundo os diretores que assinaram o manifesto contra o governo atual lido por Marcelo Gomes, foi precisamente há 14 anos – quando a nova política de financiamento do Ancine começou a ser implementada.
Os resultados seguiram-se logo, revelando um cinema de extrema maleabilidade, que tanto colabora com o experimental e arriscado quanto com o acessível com qualidade. Depois de destruída pelo ultraliberalismo do governo Collor e de uma travessia no deserto ao longo dos anos 1990, a sétima arte tupiniquim voltou.
E floresceu: neste início do século XXI, redescobriu a conexão com o público, ainda que muito longe do merecido, asfixiado por um sistema de distribuição pouco favorável. Ao mesmo tempo, os grandes festivais nacionais e internacionais voltaram a ser ocupados por projetos de qualidade. Neste momento, num Brasil politicamente atormentado e de futuro incerto, todas essas conquistas podem estar em risco.
Virtuosismos estéticos
O filme presente na competição principal foi Joaquim. O longa-metragem de Marcelo Gomes usa de câmera na mão e um cuidado nos figurinos e sets para mostrar um rude e sujo Brasil oitocentista. É lá que se movimenta um dos mitos duradouros da história do Brasil – o do alferes especialista em arrancar dentes, Joaquim José da Silva Xavier, que passou à história como Tiradentes e teve a sua cabeça arrancada por conspiração contra a Coroa. Um grande desempenho de Júlio Machado aprimora o retrato.
Também Vazante se debruçou sobre o Brasil colonial. Entre os dois filmes existem algumas intersecções temáticas: o poder senhorial, a escravatura, a relação social de violência. O registro estilístico, no entanto, é outro: no trabalho de Daniela Thomas, o preto-e-branco, o rigor da direção de arte e do uso dos sons servem para um comentário mais plástico da época.
Paisagens e rigor estético também estão em Rifle, o mais arthouse dos trabalhos brasileiros e único representante da seção Fórum, a mais experimental. A obra mergulha na paisagem sulista para um conto de medo e violência de uma região de fronteira.
Poesia e sensibilidade
Um dos momentos mais poéticos deu-se com No Intenso Agora, de João Moreira Salles, que partiu de memórias pessoais para propor uma complexa representação dos movimentos revolucionários (mais especificamente os de 1968) e o desvanecimento dos ímpetos renovadores no quotidiano. A narrativa utiliza-se ainda de imagens amadoras, muitas de autoria desconhecida, e poesia filosófica em voz off. Como Nossos Pais, de Laís Bodanzky, por seu lado, trouxe um drama familiar mais acessível e emocional, com uma eficiente narrativa à base de planos fechados.
Qualidade extraordinária
Já Pendular, de Júlia Murat, um drama intimista que radiografa a vida afetiva, sexual e profissional de dois artistas – enclausurados num único cenário – recebeu o prêmio da crítica oferecido pelo júri da FIPRESCI na seção Panorama – com a justificativa do filme oferecer “uma extraordinária qualidade visual e a sua força narrativa que resulta num retrato acurado de dois artistas contemporâneos. A expressão de uma moderna e arrojada coreografia das relações humanas na história se conectam à perfeição com a sua estética e com a dramática originalidade do filme”.
Amadurecimentos
A seção Generations é direcionada ao público mais jovem, o que nada tem a ver com a dieta magra de ideias e propostas direcionada a ele pelo cinema mainstream. Mulher do Pai, de Cristiane Oliveira, por exemplo, traz um filme adulto e sério – tratando de um difícil processo de amadurecimento de uma adolescente nos confins do pampa gaúcho. O tema é tratado de forma não tão tensa, mas não menos vibrante, em As Duas Irenes, de Fábio Meira, enquanto Não Devore Meu Coração, de Felipe Bittencourt, traz um comentário social de pano de fundo.
(Direto de Berlim, Alemanha)