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“Filme brasileiro é só putaria e palavrão”. “Os nossos filmes são ruins tecnicamente”. Esses dois chavões, repetidos Ad eternum por algumas pessoas, como se fossem verdades incontestes e inconvenientes, condensam boa parte dos preconceitos espalhados acerca do cinema brasileiro. Sabem aquela história de “santo de casa não faz milagre”? Pois é, porém, o furo aqui é bem mais embaixo. O cenário atual de polarização não tem ajudado a dissipar essas noções reducionistas e absolutamente equivocadas, pelo contrário. Numa batalha em que temos coxinhas versus mortadelas, atmosfera agravada pelos constantes ataques do presidente Jair Bolsonaro à nossa cultura, pipocam sentenças apontando a uma desinformação gritante. Mas de quem é a culpa por uma parcela significativa do nosso público não ter conexões com o cinema feito internamente? Essa é uma pergunta difícil de responder, até porque suas implicações surgem de várias ordens, mas espero contribuir para minimizar o obscurantismo disseminado.

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Cena de “Madame Satã”

O que poucos percebem, até por conta da falta de incentivos para esmiuçar academicamente a historiografia do cinema brasileiro, é que a nossa produção, desde os idos de 1896 – quando o a Sétima Arte chega ao Brasil –, vive constantes mortes e ressurreições. Não foi a famigerada canetada de Fernando Collor de Mello, no começo dos anos 90, que “inventou” a interrupção das atividades cinematográficas nessa nação de território continental. Muito antes dela, uma série de turbulências ameaçou a realização de filmes brasileiros. Quando estoura a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, a dificuldade de importação de material impõe restrições à atividade e, ao mesmo tempo, propicia maior ocupação do nosso parque exibidor por exemplares estrangeiros. E aí já viu, né? Ao longo da nossa História, recheada de contratempos socioeconômicos, as dificuldades se repetem ciclicamente. Então, o Cinema Brasileiro é, antes de tudo, um bravo sobrevivente, inclusive às trocas de humores e simpatias governamentais.

As dificuldades de distribuição também podem ser apontadas como enormes culpadas por essa ignorância quase generalizada a respeito do Cinema Brasileiro. O funcionamento do mercado, geralmente estrangulado impunemente por produções estrangeiras, não oferece ao público a possibilidade de contato com a multiplicidade das nossas realizações. Afora aos moradores de bairros nobres de capitais, pode ser complexa a tarefa de assistir aos filmes brasileiros que fujam ao modelo televisivo das comédias recheadas de nomes conhecidos. É claro que isso não dá salvo conduto para que alguém fale de Cinema Brasileiro num sentido pretensamente totalizante, ou seja, partindo de meia dúzia de obras de teor parecido. Pare para pensar: num universo com cerca de 200 estreias anuais (fora os curtas-metragens), quantos filmes seria preciso conferir para verdadeiramente traçar um painel acurado desse cinema? Não menos que 40%, talvez? Portanto, certos espectadores, por N razões, não são culpados, mas cúmplices.

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Cena de “A Sombra do Pai”

Sempre que publicamos alguma coisa relacionada à política cultural (mais especificamente à falta de uma) proposta por Jair Bolsonaro, pipocam comentários do tipo “podem fazer filmes, mas não com dinheiro público” – não levando em consideração que até mesmo Hollywood, ciente do poder cultural e financeiro da cadeia audiovisual, e tida por muitos “entendidos” como parâmetro, trabalha com incentivos estatais de várias ordens. Do ponto de vista econômico, estamos nos referindo a uma indústria internamente mais lucrativa do que a farmacêutica. Ela gera, além de impostos e outras movimentações numa economia de nicho, diversos postos de trabalho diretos e indiretos. E isso que nem estamos mencionando o valor artístico dos produtos à diversidade de perspectivas observadas pelo audiovisual. As contendas políticas, no entanto, apenas trouxeram novamente à tona essa ignorância que não é nova e sequer possui traços frescos. Há quanto tempo você, leitor mais atento, ouve comparações estapafúrdias entre o nosso cinema e os demais (hegemônicos) oriundas de espectadores que, não raro, desconhecem o cenário local? Vivemos realmente a Era da Desinformação, da mera opinião sobrepujando tanto os fatos quanto os estudos.

O presente artigo é bem mais um desabafo, uma proposição abertamente reflexiva, do que necessariamente uma definição. O Papo de Cinema é um site que, desde sua gênese, sempre esteve atento ao Cinema Brasileiro como um todo. Se trata de um de nossos ideais. Temos o privilégio de circular pelos principais festivais do país e conferir obras que dificilmente chegarão a uma parcela satisfatória da população. De qualquer forma, nos parece impensável aquiescer diante de manifestações inconsistentes, inclusive de alguns pseudoespecialistas, orientadas por preconceitos e abarrotadas de dados pouco embasados. Como o ato de divergir sem discutir acaloradamente está difícil no Brasil contemporâneo, propomos ao leitor que, diante de alguém que vocifera contra o nosso cinema, seja a partir de que perspectiva for, ofereça calmamente a pergunta: dos cerca de 200 filmes brasileiros que estrearam em 2019, quantos você viu? Se a resposta for menos que 50, vá lá, questione a autoridade. Qualquer que seja a fonte.

Ninguém é obrigado a estudar o nosso cinema, a não ser os que reivindicam para si o direito de discursar em nome dele ou emitir um diagnóstico supostamente consistente. Para falar de Cinema Brasileiro é preciso conhecer o Cinema Brasileiro. Deveria ser o óbvio ululante, mas diante da contestação da esfericidade da Terra (?) nada parece ser automaticamente óbvio atualmente, né? As engrenagens viciadas do mercado entravam o contato com nossas produções? Demais. Esses filmes deveriam circular melhor? Sem dúvida. Mas, se alguém, mesmo sem amostragem suficiente, se arvora a atacar o nosso cinema, acaba se configurando num cúmplice da desinformação, ou seja, emissário da mentira que fomenta percepções erradas, nutriente de graves deturpações. O Cinema Brasileiro é forte, tecnicamente equiparado aos mais bem-sucedidos do mundo, e tem diversidade ímpar. Falta, claro, ao espectador ter acesso digno a isso tudo e, ao opinante, o discernimento para contextualizar seu entendimento do mesmo.

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Cena de “Minha Mãe é uma Peça 3”

Nossa proposição para 2020 é: nos apropriemos do Cinema Brasileiro. Uma vez donos desse conhecimento, podermos divergir sobre tudo, tranquilamente. Antes disso, fica complicado. Por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro, que recentemente lançou esta: “há quanto tempo o cinema brasileiro não faz o filme bom?”, deveria evitar o tom retórico da pergunta, pois, aposto, não deve ter visto mais do que 1% do que fazemos nessa terra bonita por natureza. Ignorância é uma coisa. Todos a temos. Normal. Burrice com ares de empáfia é algo bem diferente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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