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Você já ouvir falar de Design de Audiência, esse termo cada vez mais presente (e valorizado) no nosso atual cenário audiovisual? Segundo a definição encontrada no site do Projeto Paradiso, entidade de formação parceira do BrLab, trata-se de “um conjunto de ferramentas para explorar possíveis conexões entre filmes e audiências (…) o mercado tem passado por transformações e a pergunta agora é: como o Design de Audiência deve acompanhar essa evolução?”. Portanto, é a soma de práticas que visam situar as obras em perspectivas de acordo os seus públicos. Essa ponderação sobre os vários tipos de audiências precisa acompanhar os projetos desde os seus momentos mais embrionários de desenvolvimento. “Não se trata de dizer o que o projeto deve ser para alcançar o público, pelo contrário, o intuito é encontrar os públicos a partir do que o projeto já é. A ideia não é ficar fazendo mudanças de roteiro, nem alterações artísticas para o projeto ser o que não é. Por mais de nicho que sejam, projetos têm públicos e estes precisam ser encontrados, trabalhados. Precisamos articular modos de comunicar com esses públicos”, diz Rafael Sampaio, diretor do BrLab, instituição pioneira na discussão do Design de Audiência no Brasil, e que realiza atividades nesse sentido desde 2017 em parceria com o Projeto Paradiso.

Rafael Sampaio. Foto/ Gustavo Miranda/O Globo
Rafael Sampaio. Foto/ Gustavo Miranda/O Globo

Tradicionalmente, o mercado brasileiro não prevê tantos escrutínios sobre públicos, sobretudo nas etapas iniciais dos projetos audiovisuais. Dentro da perspectiva do Design de Audiência, conceito importado por Rafael Sampaio, primeiro brasileiro a ser tutor dessa área no Torino Film Lab (um dos principais laboratórios de desenvolvimento da Europa), é fundamental que a escritura do roteiro possa, de certa forma, dialogar com a distribuição, não como forma de se adequar ao mercado (no sentido de fazer concessões), mas para ter uma clareza sobre os públicos e a quem esse esforço de escrita se destinará depois, enquanto produto audiovisual. E, antes mesmo que o primeiro espectador entre na sala de cinema, as produções precisam levar em consideração outros públicos: “Falamos muito de públicos iniciais, às vezes mais restritos à própria indústria, distribuidores, agentes de vendas, possíveis coprodutores, pessoas que estão lendo projetos para definir financiamento, festivais, mercados e fóruns. Há uma demanda e existem públicos diferentes que acompanham os projetos em suas diversas etapas”, de Rafael Sampaio. O resultado mais imediato desse tipo de mentalidade é a capacidade de encontrar soluções e caminhos, tendo em vista a escuta dessas audiências, procurando sempre manter as pessoas no centro de um processo que tem muito de criativo e estratégico. O desenho das audiências será muito mais eficaz e certeiro se acompanhar o projeto desde essas etapas iniciais.

“O quanto antes a distribuição entrar no circuito, melhor. Muitas vezes entramos no projeto antes do roteiro, o que vem sendo uma prática usual de mercado. Não somos de interferir, mas oferecemos caminhos pensando nas estratégias de comercialização do filme (…) a distribuidora não atua somente para levar os filmes aos cinemas, pois trabalhamos com todas as telas. E essa atuação é cada vez mais estratégica. Não pegamos um filme apenas visando a sala de cinema, isso não é mais financeiramente viável”, completou Felipe Lopes, sócio da Vitrine Filmes num workshop online promovido pela Boulevart Filmes em 2022 e que contou com o apoio do BrLab – cujo dossiê completo você pode baixar gratuitamente clicando aqui. No mesmo evento, Rafael Sampaio falou um pouco mais sobre a importância desses públicos iniciais para o Design de Audiência: “Os espaços de mercado deveriam ser compreendidos como as nossas primeiras audiências. Do ponto de vista artístico, é a primeira vez que alguém de fora vai ler e dizer como se sentiu. E isso muitas vezes é valioso no processo criativo. Do ponto de vista da produção, são os contatos iniciais que podem ser fundamentais para montar estratégias de financiamento (…) já os laboratórios contribuem, primeiramente, à lógica dialética. No processo de encontrar gente e apresentar projetos, temos contato com várias subjetividades e é importante ter entendimento muito claro do que se deseja. O querer pode mudar ao longo do projeto, claro. Esses espaços de troca devem enriquecer o processo artístico de desenvolvimento e os processos estratégicos”.

Parceria entre Projeto Paradiso e BrLab
“Quando criamos o Projeto Paradiso, há cerca de cinco anos, baseamos o nosso planejamento estratégico em entrevistas feitas com profissionais do setor. Uma coisa que ouvimos muito sobre as lacunas nesse mercado é a falta de investimento em desenvolvimento (…) roteiros filmados na primeira versão, pouco investimento público. Ao procurar parceiros, tudo apontava para o BrLab, o laboratório que mais se destacava então no Brasil e que tinha olhares regionais e internacionais”, disse com exclusividade à reportagem do Papo de Cinema a diretora executiva do Projeto Paradiso, Joséphine Bourgois. Ela trabalha há mais de 18 anos no Terceiro Setor e na área cultural no Brasil. Foi diretora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), fundou a Fabriqueta de Histórias e teve passagem pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo. “Sabíamos desde o início do Projeto Paradiso que precisávamos incluir em nossos esforços algo sobre Design de Audiência (…) sempre entendemos o Design de Audiência como parte do desenvolvimento dos projetos. Muita gente se preocupa com isso apenas no fim do processo, quando se preocupa (…) é preciso incluir esse pensamento no desenvolvimento para aproveitar certas oportunidades”, continuou a executiva que externou o quão importante é a parceria já longeva com o BrLab, personificado por Rafael Sampaio, para tornar essa realidade visível.

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Josephine Bourgois. Foto/divulgação

O Design de Audiência como uma ferramenta para todos os filmes
Se formos reexaminar a história do cinema no Brasil (um percurso atravessado por diversas crises que colocaram em xeque a nossa capacidade de produzir em larga escala para atender as demandas de um território de dimensões continentais, surge no horizonte uma dicotomia: arte vs indústria. Evidentemente, essa oposição cartesiana e redutora não é exclusividade nossa, mas no Brasil muitas vezes os produtores/diretores de obras independentes têm até certa dificuldade diante da palavra “mercado”, pois acreditam que toda e qualquer percepção estratégica tende a limitar a criatividade e pulverizar o controle criativo, às vezes até ele escorrer por entre os dedos de sua mão. Porém, na verdade, todo e qualquer filme, por mais nichado e complexo que seja, tem públicos diversos (intermediários e finais). Portanto, o Design de Audiência surge como um conjunto de ponderações que pode, inclusive, permitir, até mesmo às obras com mais dificuldade mercadológica, encontrarem alternativas para chegar aos seus públicos-alvo. “Muitas vezes ´processo criativo é solitário e não permite que as pessoas pensem audiência (…) quando ponderamos desde cedo a audiência não se trata de interferir na narrativa, mas pelo contrário, de tentar entender o público de cada projeto (…) os fundos de investimento pedem a quais públicos os projetos se destinam (…) existe uma ingenuidade ou, melhor dizendo, uma dissociação dos processos criativo e comercial. O Design de Audiência vem juntar um pouco mais as pontas, estimular o pensamento dos criativos sobre públicos em diferentes estágios (…) o sentido de Design de Audiência para projetos em desenvolvimento é pensar desde o começo como se comunicar com o público, por mais nichado e específico que ele seja”, disse Rafael.

Joséphine pegou o gancho e foi na mesma toada: “Talvez haja uma crise maior. Há um mercado de cinema independente no Brasil muito autoral, centrado na imagem da direção. É como se existisse uma dicotomia entre autoral e comercial (…) em algumas esferas existe uma recusa da ideia de mercado e acho isso super complexo (…) mais do que qualquer outro ambiente de cultura, o cinema é um encontro entre arte e indústria (…) parece que a Terra é plana e acaba quando o DCP está entregue, mas na verdade existe um mundo inteiro depois disso (…) o Design de Audiência existe porque todo filme precisa encontrar seu público. Se você incluir essa noção no desenvolvimento é provável que o alcance seja muito potencializado”. Numa realidade dinâmica, em que mercados se adequam às novidades com velocidade difícil de ser acompanhada, parcerias estratégicas, como as entre BrLab e Projeto Paradiso, são fundamentais, pois oferecem, além da expertise e da conexão com as últimas tendências internacionais, o discernimento fundamental sobre a necessidade de adequar certas coisas ao panorama local. “Desde o início achamos importante trazer uma metodologia internacional consolidada, mas a conectar aos conhecimentos do mercado local (…) o Design de Audiência contempla o público final, mas também intermediários, como produtores, fundos de financiamento, etc. Ouvimos muito dos fundos e dos laboratórios que, via de regra, boa parte dos diretores não sabe vender bem seus filmes (…) é preciso qualificar sua maneira de defender seu projeto para os públicos intermediários nesse universo competitivo”, afirmou Joséphine.

“É preciso muita conversa, articulação e questionamentos constantes. Num cenário dinâmico, acredito que precisamos estar em constante diálogo, em autoquestionamento (…) nos workshops, por exemplo, é essencial entender as demandas e tentar contemplá-las (…) pensar a adaptação às lógicas brasileiras vem do conhecimento do mercado local. Nesses últimos anos, aprimoramos o workshop de Design de Audiência ao articular com as questões da indústria e do mercado brasileiros (…) creditando a Marina Tarabay, tutora do workshop comigo, ela trouxe experiências como ex-gerente de marketing de distribuidoras importantes, coordenando lançamentos importantes. A Marina entende muito de público final e dos hábitos de consumo do brasileiro (…) outra coisa essencial: é preciso pensar os filmes em diferentes territórios”, afirmou Rafael, destacando ainda, além do pioneirismo do BrLab na abordagem desse conjunto de ferramentas tão importantes para aproximar os projetos de seus públicos (em diversas etapas, da gênese ao pós-lançamento), a busca por constante aprimoramento. Sobre isso, também conseguimos uma palavrinha da citada Marina Tarabay: “Em relação ao workshop Design de Audiência deste ano foi muito interessante. Me alegra muito pensar em todo o processo que, na minha vida pessoal e profissional, tenho com o BrLab nessa área de Design de Audiência. Frequento o BrLab desde 2016. Estar atualmente como alguém que contribui com essa iniciativa, promovendo o workshop, pensando esse trabalho com os projetos, é algo que me deixa muito feliz. A cada ano trazemos coisas novas, agregamos ferramentas e conceitos de acordo com mudanças de mercado. Por exemplo, trazer atividades on-line e depois as combinar com exercícios presenciais, combinar a perspectiva do cinema com olhares internacionais é muito bom. Acima de tudo é um trabalho prazeroso, do qual tenho muito orgulho de fazer parte”.

Conclusão: Design de Audiência para quem?
Para todo e qualquer projeto audiovisual. Muito se fala que o grande gargalo da cadeia produtiva brasileira é a distribuição, que não temos condições de brigar em pé de mínima igualdade com o poderio econômico e a capacidade de fazer lobby das grandes empresas estrangeiras de mercados globalmente hegemônicos. E isso é verdade, o que torna ainda mais urgentes marcos regulatórios que instaurem certas proteções no nosso mercado. No entanto, é preciso não mais cair nessas oposições simplificadoras que dissociam a arte de sua possibilidade industrial – seja ela em qual escala for. Por isso a existência do BrLab, bem como a parceria institucional com o Projeto Paradiso, é algo a ser comemorado. É preciso investir nessa formação teórico-prática para que produtores tenham ferramentas capazes de maximizar resultados, para que os filmes encontrem as suas respectivas plateias (das massivas às mais restritas). Afinal de contas, os filmes existem apenas no momento em que entram em contato com os olhares, a partir do instante em que deixam de ser apenas uma ilusão de movimento projetada numa tela branca para se tornar uma forma de entretenimento, reflexão, escapismo ou ainda mergulho profundo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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