Um dos principais méritos de uma curadoria de festival de cinema é conseguir entrelaçar filmes a partir de pontos em comum que possam gerar a ideia de conjunto, de sincronia. Nesse sentido, o primeiro dia de exibições das produções selecionadas à Mostra Competitiva de Curtas-metragens Latino-americanos do Cine Jardim 2024 reuniu quatro obras com linguagens diversas, mas que têm em comum o olhar à hereditariedade e, indo mais a fundo, à ancestralidade. São tramas de homens e mulheres deixando/perpetuando legados, de jovens remexendo o baú da História em busca de itens que signifiquem os seus pertencimentos e revelem algo entranhado.
Em Fossilização (2023), uma avó e uma neta estão numa praia deserta. Enquanto a mulher mais velha tenta puxar assunto, a mais nova está empenhada em cavar buracos na areia em busca de fósseis de dinossauro. Os diálogos corriqueiros são adicionados de melancolia pela trilha sonora e pela paisagem litorânea nublada com o céu cheio de nuvens carregadas. Tratam-se de escolhas estéticas e narrativas que anunciam algo de tristonho naquele programa. O diretor João Folharini faz um filme muito singelo sobre morte, luto e aquilo que permanece. Destaque principal para as linhas de diálogo em que, ao citar a fossilização dos animais extintos da Terra, a menina cria uma relação simbólica com a partida da própria mãe. Tudo é arrematado com a inocência da curiosidade infantil gerando emoção na avó. As lágrimas estão carregadas de toda uma gama de sentidos: o luto pela perda da filha e a responsabilidade da avó na criação da pequena. O que o filme tem de mais bonito é essa capacidade sugestiva que está além dos que as palavras contam.
Único curta-metragem não brasileiro da Mostra Competitiva, Trinidad (2024) também coloca no centro de sua ação poética uma relação estreita entre avós e netos. Neste caso, utilizando um roteiro não linear para consolidar a sensação de que passado e presente estão sempre se comunicando, os cineastas Jos Azuela e José Manuel A. Espinosa mostram três netos roubando as cinzas do avô para o ter por perto. O filme desenvolve mais a conexão simbólica de uma menina com esse homem que morreu por força do machado do inimigo numa terra em que a vingança e a morte são figurinhas fáceis no horizonte. Sem falas, o que facilita a sua aceitação internacional, o curta tem imagens belíssimas que funcionam como pequenas epifanias encarregadas de elaborar a aura poética que vai dominando a narrativa. O resultado é um filme bonito sobre saudade, reparação e costume com a ideia de que a única certeza é a morte. Se as cinzas de quem se foi puderem fertilizar a terra e gerar novas vidas, o ciclo estará cumprido.
A Menina e o Pote (2024), de Valentina Homem e Tati Bond, também fala sobre ancestralidade, mas paradoxalmente olhando para o futuro. Num mundo peculiar, uma menina quebra o pote de cerâmica que guarda segredos. Podemos imaginar essa ação como uma metáfora para o crescimento, a saída da inocência da infância e a entrada na vida adulta – algo corroborado pela passagem em que a menina é vista menstruando. Enquanto uma aparente divindade portadora de características masculinas e femininas parece fecundar uma nova realidade, essa garota vai transitando por cenários em constante movimento, os conhecendo e os desdobrando. A narração indagativa na língua dos povos indígenas Baniwa pode parecer um eco do passado, mas na verdade é a linguagem para, como diz no próprio filme, “sonhar um mundo novo”. Então, a memória ancestral indígena aqui mitificada se transforma na base fundadora do que virá, de uma realidade construída a partir de uma técnica que animação baseada na pintura sobre vidro.
Por fim, em Dona Beatriz Nsimba Vita (2023) a animação está a serviço de uma trama surrealista protagonizada por uma mulher inspirada na personagem histórica Kimpa Vita, heroína congolesa do século 17. No filme, ela está tentando criar um povo novo à sua imagem e semelhança. Novamente, como nos filmes anteriores desse programa no Cine Jardim 2024, a ideia da herança, da continuidade. O diretor Catapreta cria um filme com visual marcante no qual a protagonista prepara fórmulas para se clonar em ciclo perpétuo – quando a matriz morre, as filiais que não cedem ao impulso da destruição recebem como tarefa a sequência dessa produção baseada na mistura de membros mutilados, ovo e azeite de dendê. Aqui o mais impressionante é o visual, sobretudo o contraste obtido pelo choque entre as linhas tênues, a delicadeza dos cenários e da constituição da protagonista, com a brutalidade que adquire status de método de perpetuação.
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