Cine Jardim 2024 :: Passado, presente e futuro entre quatro paredes (Dia 02)

Publicado por
Marcelo Müller

O segundo dia de exibições dos curtas-metragens latinos em competição no Cine Jardim 2024 é marcado por histórias de gente interagindo entre quatro paredes. Nos três filmes selecionados pela curadoria, homens e mulheres discutem passado, presente e futuro enquanto se relacionam com os espaços. No primeiro, a casa abriga um curto-circuito entre mãe e filha que praticamente são estranhas uma a outra; no segundo, namorados vivem no seu lar os últimos momentos da relação que será afetada pelo retorno de alguém indesejado; no terceiro, duas pessoas que tiveram um elo afetivo lutam no imóvel condenado contra a pressa do agora enquanto o amanhã é faminto. Mais uma vez, a curadoria faz um trabalho excelente de colocar no mesmo programa produções com similaridades, mas que são ao mesmo tempo singulares.

Em Fenda (2024) tudo começa com uma mulher idosa excitada pela iminência de um encontro. Soteropolitana de passagem por Fortaleza, essa mãe interpretada por Noélia Montanhas começa a conversar animadamente com a sua anfitriã contrariada (vivida por Edvana Carvalho). A dona do apartamento repleto de plantas claramente está pouco à vontade com a visitante que fala sem parar tentando reestabelecer um vínculo emocional. Nesse filme dirigido por Lis Paim, cada linha do texto é uma possibilidade de compreender a origem da tensão que há nessa relação. Aliás, o que motiva a resistência da mais nova é justamente o passado de abandono que, hora ou outra, vai aparecer por meio das palavras duras, confirmadoras das suspeitas de que estamos diante de mãe e filha há muito separadas. Para além da qualidade dos diálogos e das ótimas interpretações, chama a atenção a utilização da cenografia para dar um peso simbólico à trama. A começar pela decoração do apartamento, uma cuidadosa disposição de plantas que cria um contraste entre a frieza das paredes e o calor da natureza. Depois, o presente que a mãe angustiada traz para a filha magoada: o ovo de tartaruga que não vingou. Tudo bonito e terno, num equilíbrio interessante entre palavras explicativas e sugestões visuais desse ressentimento.

Assim como o filme anterior, Deixa (2023), de Mariana Jaspe, se concentra basicamente nas conversas e interações entre duas pessoas no interior de um apartamento. Carmen (Zezé Motta) recebe o telefonema do marido prestes a sair da cadeia e seu semblante tenso anuncia sofrimento. Atualmente ela namora Pedro (Dan Ferreira), com quem parece ter uma vida muito amorosa e tranquila. Mariana cria um conflito entre o homem encarcerado e o livre, também a partir de uma perspectiva geracional. O apenado fala ao telefone com a sua esposa como se ela fosse obrigada a servi-lo, menciona que tipo de comida gosta, a forma como aprecia ter a roupa passada, enfim, age como se a mulher fosse obrigada a trata-lo como um bibelô. Já Pedro é carinhoso e prestativo, não deixa a namorada se encarregar de tudo em casa, tendo a consciência de que as tarefas domésticas são responsabilidade de ambos. Mariana filma essa tensão estabelecida entre o retorno de um e a necessidade da partida do outro também a partir das palavras e modos atribulados de Carmen, mulher que também atua de acordo com as agendas de sua concepção geracional. Nada impede que ela mande o marido às favas e siga a vida com o namorado. Nada, a não ser toda a carga social que a formula. E como é linda a cena, que serve como despedida, do sexo entre uma mulher mais velha e o jovem por quem ela é apaixonada.

Fenda

Já em Sem Fantasia (2024) também há a interação entre duas pessoas remoendo o passado. Eduardo Moscovis interpreta um sujeito bem de vida, a julgar por seu automóvel e suas roupas. Ele chega ao centro de uma metrópole prestes a ser completamente destruído em prol de um processo de modernização – algo típico da atualidade, o desaparecimento das estruturas em função de um progresso alheio às memórias. Esse homem vai tentar convencer a prostituta vivida por Marly Monteiro Klien a deixar aquele lugar decadente e condenado, abraçando uma nova vida, na qual terá casa limpa, plano de saúde pago e até mesmo um cachorro. Os diálogos evidenciam o quão a mulher foi importante para o homem no quesito educação sentimental. Portanto, os dois personagens discutem no presente sobre o passado, mas divergem a respeito do futuro. Ele planeja uma mudança de vida supostamente benéfica. Já ela prefere desaparecer num espaço insalubre, mas que segue contendo parte da essência de quem ela é. Ainda que especialmente algumas linhas do diálogo da personagem de Marly sejam ditas como frases quase prontas esperando deixas, o filme tem a capacidade de atrelar à discussão aparentemente banal uma gama de elementos que fazem a comunicação ser sugestiva de algo ainda mais amplo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.