O último programa da Mostra Competitiva de Curtas-metragens Latino-americanos do Cine Jardim 2024 é feito inteiramente de filmes dirigidos por homens. Curiosamente, três deles abordam questões relativas ao machismo, de modos singulares e com propostas estético-narrativas distintas, enquanto o quarto mostra um homem fragilizado pelo luto e pela condição de artista tentando subsistir na sociedade. Muito vem se discutindo as tensões de gênero nos últimos anos, com obras colocando o dedo na ferida do sistema patriarcal que oprime as mulheres e não faz bem aos homens. Os filmes do quarto dia da competição do Cine Jardim 2024 não são daqueles que oferecem respostas, mas levantam questionamentos pertinentes e atuais.
Em Morro do Cemitério (2023), o diretor Rodrigo R. Meireles tem um protagonista de luto e com uma série de outras preocupações de ordem prática martelando na sua rotina. Depois da visita a alguém no cemitério da sua cidade (aliás, onde a trama começa e termina), o homem desabafa na internet sobre o momento triste que vem passando e protagoniza momentos comuns. Ele é visto na limpeza do quintal para tentar sair da fossa, na negociação com uma empresa que liga cobrando uma dívida com juros exorbitantes e nas andanças com semblante melancólico. Esse sujeito é um rapper, ou seja, utiliza a arte para se comunicar. E é justamente nas letras em que ele tenta expurgar o sofrimento e a indignação. O que o filme tem de mais interessante nessa construção do pesar do personagem é a capacidade de mostrar que o luto é uma força implacável, ainda mais para um membro do proletariado que não tem como o elaborar sem continuar lutando contra todas as demais forças que teimam em lembra-lo das barreiras cotidianas. Se nos faroestes os personagens tampouco têm tempo de lidar com a perda, pois é preciso continuar para cumprir certas missões, aqui é a condição social que obriga o movimento.
Carlos Segundo é, provavelmente, o grande nome brasileiro da cena do curta-metragem. Seus filmes são sofisticados, possuem mensagens pertinentes e uma forma de contar histórias que vai do realismo mais cru à alegoria como forma de engrandecer a narrativa. Com Júpiter (2024) ele faz um filme ambientado na França, falado inteiramente em francês, que de brasileiro tem apenas parte da produção e o personagem recém-chegado à propriedade rural de um ex-militar interpretado por Patrick D’assumçao a fim de aprender a arte de fazer queijo. O homem que um dia foi atirador de elite do exército é um patrão do tipo intransigente. Indignado pelo escape de uma das cabras, ele vai descontando aos poucos a sua frustração. E há algo de muito particular na irascibilidade desse francês turrão que perambula com um dos braços pendurados numa tipoia improvisada: suas manifestações de machismo e sexismo. Isso atinge a esposa, a dona do mercadinho ao qual ele vende seus frangos e à própria cabra, animal que vira uma espécie de bode expiatório (perdoem o trocadilho infame) desse patriarca que desconta as suas frustrações de maneira trovejante. Está tudo nas entrelinhas, nas relações que esse homem estabelece com o meio, na forma desdenhosa com a qual existe no lugar. No fim das contas, a justiça é divina?
Em Circuito (2023), o assunto também é o machismo, mas a partir de outra perspectiva. Enquanto Carlos Segundo fala do assunto de um modo mais implícito em Júpiter, os diretores Leão Neto e Alan Sousa criam uma trama com ares policiais para abordar essa verdadeira doença que corrói o tecido da sociedade. Jana (Ana Luiza Rios) acabou de perder o marido e está em busca de justiça enquanto tenta lidar com as demandas da filha pequena recém-órfã. Vivendo numa cidade pequena, ela se depara com um sistema completamente viciado pelas conexões intestinas entre os poderes públicos agindo de maneira coronelista. A viúva encontra apenas na escrivã Niara (Marta Aurélia) um porto seguro, o ombro amigo no qual recostar o seu corpo cansado pela maternidade solitária e pela sede de justiça. Gradativamente, Niara ganha o protagonismo com a sua queda em si sobre a corruptibilidade do sistema do qual faz parte, isso enquanto enxerga na vulnerável mãe reclamante a possibilidade de preencher a lacuna pela ausência da filha com quem não tem uma boa relação. As mensagens são claras, às vezes até demais, como na cena das duas mulheres nuas com o bebê enquanto a câmera percebe uma engrenagem em primeiro plano. O encerramento não é feliz, mas aponta a uma possibilidade.
As primeiras linhas do texto de Capturar o Fantasma (2024) falam de “um fantasma que só as mulheres da família conseguem ver”, assim mencionando uma entidade amedrontadora que os homens desconhecem. Na sequência, uma mulher lê uma carta e um homem relata um medo inominável, questionando se é possível se lembrar de quando se estava na barriga da mãe. A depender da interpretação, podemos encaixar esse curta-metragem na tendência geral desse programa do Cine Jardim 2024 que é escancarar machismos e opressões às mulheres. Mas, Davi Mello faz isso de um jeito bastante alegórico e até cifrado, evitando as manifestações mais diretas de Circuito, sendo mais obscuro do que Júpiter e se distanciando ainda mais da lógica confessional realista de Morro do Cemitério – este filme que destoa tematicamente dos outros. Capturar o Fantasma vale mais pela força das interpretações e por suas incertezas instigantes.
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