O terceiro dia de exibições de curtas-metragens da Mostra Competitiva Latino-americana do Cine Jardim 2024 conta com filmes que têm como intenção a crítica social. De maneiras muito peculiares, eles questionam o mundo e suas engrenagens, às vezes recorrendo à poesia como forma de construir os seus cenários indicativos, noutras escancarando os absurdos das nossas contradições a fim de chegar aos diagnósticos de determinados panoramas. As três produções formam um painel interessante dessa tendência interessada em revelar estruturas capazes de criar tensões e violências entre pessoas de realidades e tipos diferentes. Vamos aos filmes?
A sátira é um grande caminho para as críticas sociais. Estica-se a corda rumo ao absurdo para o exagero dar conta daquilo que vira o estapafúrdio assimilado como normal cotidianamente. Em Dependências (2023), Luisa Arraes cria uma situação que toca em vários pontos. Nela, uma família de classe média está recebendo os colegas de trabalho da mãe prestes a ser promovida. Em meio à chegada dos convidados, à falsidade da gentileza protocolar, a anfitriã percebe que a sua empregada doméstica, Dada, ainda não chegou. A ausência da mulher serviçal causa um processo de demolição na estrutura em tudo dependente da subserviência para existir. Luisa se vale do excesso para pontuar o ridículo em situações tragicômicas, como na incapacidade da dondoca e dos filhos fazerem um simples chá ou abrirem uma garrafa de vinho. A escalada de disparates vai sendo demarcada nas roupas sujas, nos penteados bagunçados e no desespero desses patrões que sequer sabem o nome da operária encarregada de os servir há anos. Todos os personagens seguem essa lógica caricatural, do chefe que fica salivando de expectativa para comer um bolo específico aos puxa-sacos que vão perdendo qualquer traço de solidariedade. No fim das contas, quem depende de quem? Pena que o filme seja contido antes da barbárie, pois a cineasta escolhe um ponto ao qual chegar antes de tudo se transformar em escatologia.
Leonardo Martinelli vem se consolidando como um dos destaques da nova geração de cineastas brasileiros. Dono de uma carreira repleta de curtas premiados, ele também vem demonstrando um interesse pelo gênero musical. Em Pássaro Memória (2023) a premissa é simples: uma mulher trans, Lua (Ayla Gabriela), está em busca do pássaro que se esqueceu de voltar para casa. Chamado de Memória, o bichinho é o de menos, pois o mais importante é a jornada decorrente de sua ausência. Lua trabalha de garçonete e se relaciona com a cidade de maneira diversa. Impedida de colocar cartazes aos pés das estátuas de heróis de uma história contada para construir imaginários, ela defende a estética dos filmes musicais pela sua capacidade de extrapolar a realidade. Tudo é figurado no curta em que Martinelli evolui em outra das características de seu cinema: a capacidade de registrar a cidade de pontos específicos, o que resulta em imagens significativas. O cineasta tem uma habilidade evidente de encontrar lugares nos quais colocar a câmera a fim de que, por exemplo, uma esquina seja mais do que o encontro físico entre dois caminhos, pois ganha uma aura simbólica. Nesse sentido, a dança e a música são como resultados dessa busca por aquilo que não está oferecido no dia a dia, mas o permeia subterraneamente. É o clímax da busca por algo a mais, na qual o passarinho integra a alegoria.
Em Galega (2023), os diretores Anna Lu Machado e Noan Arouche contam a história de uma forasteira se sentindo constantemente em perigo. Carioca de passagem por uma praia no interior do nordeste brasileiro, a protagonista estremece diante de cada olhar de curiosidade que algum homem lança sobre ela. Não é preciso saber exatamente o que está fazendo essa visitante, o que ela deseja, quais são as suas motivações ou algo que o valha. O mais relevante no curta-metragem é essa coleção de momentos desconfortáveis que a mulher vai angariando na medida em que se relaciona com o dono da pousada, com o rapaz que ela conhece fortuitamente na praia, com o sedutor que a enxerga como uma possibilidade de sexo, com o companheiro de viagem numa van transitando por uma região inóspita. E nisso há duas coisas: 1) a vulnerabilidade do corpo feminino diante dos olhares e de atitudes masculinas, a mulher sempre à mercê da possível violência; 2) os preconceitos enraizados nessa menina branca que, não gratuitamente, tem receio nas interações com os homens negros. O filme não chega a mergulhar tão profundamente nesse contraste entre a atitude dela como possível vítima (do machismo) e a similar como reprodutora de violência (o racismo). Mas tudo está ali para ser lido e refletido.
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