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Cinema e perigo :: Uma outra história

Publicado por
Bruno Carmelo

Com a pandemia de coronavírus, os cinéfilos brasileiros se encontram diante da situação inédita em que a maioria dos cinemas do país se encontra fechada. Nenhuma estreia chegou às salas na última quinta-feira, dia 19. O problema vai muito além das salas de cinema, é claro: teatros, museus, escolas e comércios fecharam as portas. Funcionários obrigados a se deslocarem até o trabalho se preocupam com os riscos de contaminação no transporte público, enquanto aqueles de laços trabalhistas mais flexíveis temem a demissão como forma de compensar a perda de lucros dos empresários. Devido à concentração de pessoas, o cinema seria um local de fácil contaminação, sofrendo fechamentos no mundo inteiro. No Brasil, mercados e farmácias permanecem abertos, enquanto os serviços considerados não essenciais sofrem interdição por lei. A exceção provém dos templos religiosos, que conseguiram liminar para funcionarem normalmente, apesar de representarem uma aglomeração semelhante àquela de um cinema. Mas essa é outra história.

Este momento nos lembra que, desde o seu nascimento, o cinema foi associado muitas vezes ao perigo. No surgimento das primeiras salas de cinema, por volta das décadas de 1900 e 1910, o cinema era considerado um lugar indecente, um antro de depravação. Onde já se viu, passar mais de uma hora sentado numa sala escura ao lado de vários anônimos? Imagina o que poderia acontecer ali dentro? Vale lembrar que, na época, as luzes sequer se apagavam por completo, e o som era muito mais baixo, ou seja, eventuais ruídos eram percebidos com mais facilidade do que numa sala contemporânea. Os primeiros críticos de cinema escreviam sob pseudônimo, porque o cinema não era considerado uma atividade digna de ter seu nome associado. Muitos deles eram críticos de teatro renomados, tentando ganhar um dinheiro extra ao falar da nova diversão que aparecia na virada do século. Criticar um filme, nos primeiros anos do cinema, equivaleria hoje de propor a análise aprofundada de um vídeo de reação aos trailers no YouTube, ou criticar o vídeo de unpacking de algum blogueiro – desculpa, influenciador – quando recebe brindes em casa. Mas essa é outra história, claro.

 

Uma sala de cinema mudo

 

Os perigos do cinema podiam ser, portanto, físicos e morais. Uma donzela corria o risco de ataques pelo homem da poltrona ao lado, mas também poderia ser corrompida pelos beijos e carícias – na sala e na tela. O cinema como espaço de namoro provém da configuração da sala escura onde às vezes o filme constitui o elemento de menor interesse. Privilegia-se, neste caso, a possibilidade de ter a pessoa desejada ao seu lado, no escurinho, durante cerca de duas horas. No imaginário da masculinidade padrão, ir ao cinema sozinho seria coisa de gay, de pessoa pouco sociável ou sensível demais, expondo-se a outras pessoas sozinhas que frequentam cinema apenas para ver o filme. Gente estranha. Os cinemas pornôs do centro das cidades, com suas fachadas meio disfarçadas, sugerindo alguma forma de prazer ambíguo, adicionaram tempero ao imaginário da sala escura enquanto mistura de inferninho, balada secreta e espaço de encontro casual com anônimos. Talvez o leitor conheça a noção LGBT dos banheirões e sua associação às salas de cinema. Não, não vamos discorrer sobre essa definição aqui. Maiores de idade podem dar um Google no tema, talvez sem familiares por perto, o que causaria certo constrangimento – e que também constitui outra história, sem dúvida.

Pesquisadores em psicologia do cinema, e em cinema de terror, estabeleceram conexões muito frutíferas a respeito das funções cognitivas do horror nas telas de cinema. Talvez o nosso prazer em assistir a psicopatas mutilando corpos nos filmes provenha de uma pulsão presente em cada um de nós, porém proibida socialmente. Na impossibilidade de matar pessoas reais, experimentamos o prazer simbólico de matá-las na ficção – ou de ser mortos por elas. Por isso, a questão do ponto de vista do assassino durante as mortes (ou durante as cenas sexuais) seria tão importante à identificação no cinema. Teríamos a experiência fictícia de matar dentro da sala de cinema para não matar, de fato, fora dela. A imersão na fantasia daria vazão a pulsões secretas, ainda que democraticamente distribuídas pela sociedade. A conotação fúnebre dos slashers, gênero onde armas afiadas penetram o corpo de belas meninas, possui óbvia conotação sádica, voyeurista e sexual, o que talvez ajude a compreender a fascinação juvenil pelo terror. Afinal, a adolescência corresponde tanto a uma fase hormonal quanto à época de formação do indivíduo enquanto adulto – no entanto, esta seria outra história que não cabe desenvolver aqui.

 

Pânico (1996)

 

Muitos assassinos em série executaram seus crimes dentro de salas de cinema. Em 2012, James Holmes entrou num cinema de Colorado e disparou a esmo contra a plateia, matando 12 pessoas e deixando 70 feridos. Ele foi sentenciado à prisão perpétua. O filme exibido, na época, era Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), que passou a ser associado à matança. Muitas pessoas deixaram de ver o filme nas salas, como se os crimes tivessem ocorrido por causa do Batman, e não apesar dele. Vozes conservadoras se levantaram contra o caráter supostamente violento do cinema, do rock, do videogame e do comunismo – os cavaleiros do apocalipse do imaginário coletivo. Em 2015, uma sessão da comédia Descompensada (2015) foi alvo de um atirador na Louisiana. John Houser deixou dois mortos e nove feridos durante o tiroteio. Muitos cinemas retiraram o filme em cartaz, e a comediante Amy Schumer demonstrou arrependimento pela produção. É curioso que se culpe o filme pelos massacres, e não a estrutura familiar desequilibrada destas pessoas, a precariedade econômica, a cultura belicosa norte-americana, a facilidade do acesso às armas. Mas essa é outra história.

Em 2002, após um vendaval, um cinema de Ponta Grossa desabou, deixando um morto e oito feridos. A sala passava por reformas para a readequação de sua estrutura. Em 2007, fortes chuvas levaram à queda de partes do teto do Shopping Pier 21, em Brasília, felizmente sem provocar mortes. Em 2019, um antigo cinema em vias de demolição em Bauru levou ao falecimento de uma mulher idosa quando uma das paredes despencou. No mesmo ano, o teto de uma sala no Shopping Aricanduva, em São Paulo, caiu durante a exibição de Capitã Marvel (2019). Não houve feridos. Obviamente, cinemas não são os únicos a sofrerem problemas estruturais e catástrofes do gênero. Em 2018, um templo da Igreja Universal desabou, deixando 26 mortos em Osasco. A cidade de São Bernardo do Campo sofreu com o desabamento de lajes em 2012, matando uma criança. Um hotel utilizado para a quarentena de pessoas com coronavírus, na China, desabou este ano. Estas são outras histórias, que nos trazem de volta à história principal.

 

 

O cinema, durante a pandemia de coronavírus, constitui um perigo como qualquer outra forma de aglomeração. Não se sabe o que acontecerá quando as salas forem reabertas. As pessoas correrão para reencontrar seus filmes preferidos na tela grande, com os amigos ou namorados, comendo pipoca, bebendo refrigerante? A depravação, os namoricos, os tiroteios e desabamentos nunca impediram a arte de atrair seu público, uma vez que o cinema era cenário destes lugares, não o responsável pelos mesmos. Às vezes é preciso reafirmar o óbvio. Um local não pode ser condenado pelo mau uso efetuado a partir dele, assim como não se culpa o inventor da faca pelos esfaqueamentos mundo afora. O maior perigo, para as salas de cinema e para os filmes se encontra no desprezo desses locais enquanto templo de uma experiência artística e centro de reunião social. Se há algo que todas essas histórias comprovam é a importância que o cinema vem ocupando há cerca de 120 anos enquanto ponte entre o filme e o público, entre a arte e a diversão, entre o prazer individual e o prazer coletivo. Consumir filmes no celular ou em casa jamais reproduziu a experiência da tela grande. Para cada tragédia, outros episódios de amor e amizade poderiam ser lembrados. Quantas pessoas encontraram seus amados numa sala de cinema, tiveram os melhores momentos com os amigos durante um filme, viram o melhor drama/comédia/suspense/terror de suas vidas naquela sala linda, que já fechou as portas, perdeu subsídio e apoio, e hoje se transformou em shopping center, academia ou igreja? Mas esta é outra história.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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