Pedro Almodóvar está longe da unanimidade, ainda que o número de seguidores e o culto à sua imagem sejam proporcionais ao talento demonstrado no decorrer dos anos. A recepção polarizada de Os Amantes Passageiros (2013), mais recente filme do espanhol, exemplifica bem a controvérsia. Por sua vez, Kika (1993) é um dos longas mais lembrados do cineasta, situando-se entre a fase anárquica (predominantemente cômica) e a dramática. O enredo acompanha a maquiadora que dá nome ao filme, otimista e positiva em contraponto ao marido obcecado pela morte da mãe. Como de costume, Almodóvar circunda a protagonista, interpretada por Verónica Forqué, de outros tipos espalhafatosos, como a apresentadora Andrea Caracortada (Victoria Abril), a empregada apaixonada pela patroa e o ex-ator pornô foragido da prisão. É sobre esse universo tão bizarro quanto colorido que o Papo de Cinema apresenta o Confronto da semana. Renato Cabral defende, lançando luz sobre qualidades, enquanto Willian Silveira vai à direção contrária, ou seja, mostrando fragilidades dessa polêmica obra com a assinatura inconfundível de Pedro Almodóvar. Confira!
A FAVOR :: “Kika é delicioso pelo seu elenco de figuras marcantes”, por Renato Cabral
Se Os Amantes Passageiros (2013) foi uma das piores, se não a pior comédia da carreira de Pedro Almodóvar, aqui em Kika, o diretor tem uma de suas mais interessantes e femininas comédias. Longe de ser uma obra-prima de Almodóvar, como seus dramas, o filme estrelado por Verónica Forqué, apesar de vendido com imagens de Victoria Abril como a sensacional Andrea Caracortada, é delicioso pelo seu elenco de figuras marcantes – Abril, como já comentado e ainda, Rossy DePalma. Mas é claro, também tem lá seu o enredo maluco e surreal, além de todas as características já conhecidas do cinema do espanhol: direção de arte com cores berrantes e muito, mas muito kitsch. Ponto ainda para a participação da mãe de Almodóvar como apresentadora de um programa de entrevistas no comecinho do filme que trata da história estrelada pela personagem-título, uma maquiadora que é chamada na mansão de um escritor americano para maquiar seu recém-falecido enteado, Ramon. Porém Ramon não está morto. Os dois acabam se apaixonando e vão morar juntos e é a partir daí que uma trama de traições, mistérios e muitas risadas se desenrola. Relembrando um pouco, mesmo que sem todo aquele brilho, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), do próprio Almodóvar, a produção é só mais uma de um vasto currículo que só confirma o realizador, ao lado de nomes como George Cukor, como um dos cineastas mais femininos da história.
CONTRA :: “Tentativa infeliz de um cinema extremamente inventivo e talentoso”, por Wilian Silveira
Desde Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), Pedro Almodóvar apresenta uma proposta estética fundada na paródia da dramaturgia, em uma realidade burlesca, atravessada por cores e trejeitos específicos. Tamanha originalidade fez do diretor sinônimo do cinema espanhol, mais por representar a síntese de uma cultura, do que por participar de um projeto comum de cinema. Kika (1993) é um exemplo modelar – ainda que longe de ser o melhor – deste estilo. A protagonista (Verónica Forqué) é a maquiadora contratada pelo escritor Nichoilas (Peter Coyote), a fim de aprontar o enteado morto para o velório. Em uma trama rocambolesca, em que nada é algo por completo, Almodóvar se acomoda diante do sucesso da própria fórmula. Como um Da Vinci que, confiante após a repercussão do sorriso de sua Gioconda, procura reproduzi-lo indiscriminadamente em todas as suas obras, o diretor vai à forma seguro de que esta bastará. O subterfúgio é claro: o amparo de um realismo remodelado, flertando com o surreal, garantiria a autossuficiência do filme. Como sabemos bem pelo Teatro do Absurdo, o estranhamento não é nada sem o que o justifique, sem o fio que o liga ao íntimo do propósito. Desbaratado, o filme é uma tentativa infeliz de um cinema extremamente inventivo e talentoso. Assim como estão os esboços para a pintura, está Kika para a filmografia de Almodóvar.
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