Mais recente realização do cineasta gaúcho Jorge Furtado, O Mercado de Notícias (2014) é um documentário proposto a pensar o jornalismo, esta função em constante transformação por conta da acelerada sucessão dos meios, e dotada de inúmeros outros dilemas. Furtado intercala entrevistas com grandes jornalistas, tais como Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, Maurício Dias, Paulo Moreira Leite, Renata Lo Prete, Bob Fernandes, Mino Carta, entre outros, com a encenação de uma peça teatral que fala justamente sobre um literal comércio de notícias. Dada a complexidade do tema, o Confronto desta semana é excepcional, mais extenso que de costume, concessão feita aos críticos Danilo Fantinel (contra) e Rodrigo de Oliveira (a favor) para que eles pudessem expressar mais detalhadamente suas impressões acerca de O Mercado de Notícias. Confira e não deixe de opinar.
A FAVOR :: “Inteligência em elevada potência”, por Rodrigo de Oliveira
Jorge Furtado é um dos cineastas mais inteligentes do Brasil. Desde os curtas-metragens do começo da carreira, passando pela escrita de roteiros filmados por colegas, chegando aos filmes próprios, todos mostram histórias bem elaboradas e espertas. E O Mercado de Notícias, primeira incursão de Furtado no documentário de longa-metragem, mostra esta mencionada inteligência em elevada potência. Entrevistando jornalistas considerados por ele como excepcionais profissionais e costurando estas falas com uma encenação da peça The Staple of News, de Ben Johnson (dramaturgo britânico contemporâneo de William Shakespeare), Furtado faz um filme que, ao mesmo tempo, consegue ser divertido e instrutivo.
Para quem é jornalista, algumas das discussões ali colocadas não chegam a ser novidade, mas para o público em geral, noções de imparcialidade, noticiabilidade e furos jornalísticos podem não ser tão presentes. Furtado pega casos interessantíssimos para discutir – a notícia errônea da Folha de São Paulo a respeito de um quadro de Pablo Picasso renderia um filme por si só – buscando casos em que jornalistas não fizeram seu trabalho devidamente. Se as entrevistas com os profissionais da área são destaques, o mesmo pode ser dito da encenação proposta por Furtado, que aparece nos bastidores dirigindo seus atores. Este misto de ensaio e peça de teatro filmado dá um belo colorido ao documentário, ilustrando de forma lúdica as discussões propostas pelos jornalistas. Outro destaque deste projeto é o fato de Jorge Furtado ter liberado, posteriormente e na íntegra, as entrevistas realizadas. Para quem deseja se aprofundar nos assuntos tratados, é um verdadeiro prato cheio.
CONTRA :: “Filmar teatro se coloca como uma opção indesejável “, por Danilo Fantinel
Fundamentado em três pilares, O Mercado de Notícias critica o jornalismo nacional a partir de pontos de vista contemporâneos, de investigação documental e de uma perspectiva histórica proporcionada pela peça The Staple of News, do britânico Ben Johnson. Por um lado, Jorge Furtado alinha depoimentos afiados de profissionais brasileiros sobre as práticas e os vícios da área, destacando os conflitos entre ética e negócio – um constante desequilíbrio entre a importância de se noticiar fatos relevantes e a necessidade de se alavancar a audiência com futilidades para manter as relações corporativas de empresas com o capital publicitário público e privado. Por outro, dedica-se a uma deliciosa investigação de casos emblemáticos da irresponsabilidade jornalística verde-amarela, como o escândalo da Escola Base, a “agressão” a um político com uma bolinha de papel e a comédia republicana do “Picasso do INSS” – postura que os próprios veículos de comunicação não tiveram no passado. Porém, o ponto de partida do documentário, a peça de Johnson que dá nome ao filme, escrita em 1625, no despertar do jornalismo como conduta e como negócio, é o alicerce mais fraco do tripé. Não por ser um texto ruim (o autor é o dramaturgo inglês mais importante após Shakespeare, e a tradução manteve o tom irônico do original), mas por se teatro filmado. E essa dificilmente poderia ser encarada como uma boa escolha.
Ao que parece, Furtado optou por esta tática para manter a aura teatral da peça, remetendo-nos ao teor satírico, farsesco e ácido de The Staple of News, aproximando o máximo possível texto e espectador do que devem ter sido as encenações de séculos atrás. Porém, o cinema exige modelos de representação adequados a sua forma. Filmar teatro em palco italiano engessa planos, limita enquadramentos, desmerece locações mais adequadas e prejudica não apenas a captação de luz e som como também a interpretação de atores que, em última análise, serão apreciados em formato filme, e não no palco. Filmar uma peça, dentro de um teatro, significa abdicar de recursos cinematográficos mais adequados no momento da filmagem que poderiam valorizar tanto as atuações quanto a representação do texto. A própria montagem fílmica relativa à obra de Johnson sofre com tantas barreiras técnicas. A solução apresentada se torna postiça, artificial, pois não engendra uma mise en scène audiovisual adequada para o texto do britânico, apesar deste pontificar com exatidão o discurso proposto pela narrativa documental de Furtado. Na visão tripartite d’O Mercado de Notícias, entretanto, filmar teatro se coloca como uma opção indesejável.
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