Frequentemente, a imprensa, recorrendo a um já chavão da profissão, trata atos hediondos como monstruosos. Não são raras as manchetes que colam esse rótulo em homens e mulheres responsáveis por crimes bárbaros. Para além do efeito espetacular do artifício, uma vez que a palavra “monstro” é forte e tem amplo potencial para atrair leitores – função das manchetes, diga-se de passagem –, se trata de um desserviço diariamente prestado por jornais, rádios, sites e televisão, um reducionismo infantil. Condutas consideradas impróprias, essencialmente infratoras e, portanto reprováveis, estão mais atreladas à obscuridade da condição humana do que gostaríamos. É notável que no cinema, inclusive para gerar um efeito imediato e desprovido de arestas, os vilões sejam constantemente perfilados como essências maléficas sem qualquer nuance, assim como parte dos heróis não incluem em seu pacote gestos que colocam em xeque a sua retidão moral. Os arquétipos se disseminam e com eles essa distorção conveniente.
Coringa (2019), o filme-evento dirigido por Todd Phillips, estrelado brilhantemente por Joaquin Phoenix, vencedor do prestigiado Leão de Ouro no Festival de Veneza 2019, promete trazer à tona novamente uma série de discussões. Uma delas, a que diz respeito estritamente ao comportamento violento de personagens como potenciais gatilhos para atos espúrios. Esse assunto foi abordado por nosso editor Bruno Carmelo no seu artigo Personagens Violentos Encorajam Atos Violentos? (recomendamos fortemente a leitura). O Coringa de Phillips não é a sombra maldosa cobrindo Gothan City com uma caoticidade aleatória. Tampouco é entendido como um sujeito apartado dessa sociedade adoentada. Talvez seja isso que esteja incomodando tanta gente, o fato dele não ser um “monstro”, ou seja, de estar mais próximo, obviamente como um espelho (circense) distorcido e brutal, daquilo que nos compete enquanto indivíduos e coletividade. Ele se mostra como um subproduto extremo da nossa indiferença.
O roteiro de Coringa não é estruturado para adesões irrestritas às ações do protagonista. Pelo contrário. Arthur não barganha por nossa simpatia, apresenta-se desde o princípio como um homem soturno, capaz de seguir a vizinha no metrô e achar conveniente portar uma arma de fogo enquanto apresenta-se recreativamente a crianças. É bastante clara a delineação dessa personalidade fraturada por toda sorte de patologias e condições singulares. Todavia, Phillips não aparta Arthur do contexto em que ele vive, indo no sentido contrário disso, fazendo do palhaço um representante inquietante de algumas das nossas principais moléstias comuns. O protagonista é um sujeito negligenciado pela sociedade que apenas valoriza os bem-sucedidos, os adequados, à qual não importam tanto os atos, mas uma imagem de sucesso. Thomas Wayne é o contrapeso de Arthur, aquele que, independentemente de sua conduta, experimenta a impunidade dos intocáveis, pois morador de uma “torre de cristal” de paz imperturbável.
Justamente o comportamento de Arthur rechaça o maniqueísmo infantil do “ricos ruins versus pobres bons”. O futuro Coringa é um assassino desequilibrado, indivíduo colocado por suas doenças à beira de um precipício mental. Todavia, não eximindo a circunvizinhança, pelo contrário, chamando-a à responsabilidade, Phillips defende com unhas e dentes a tese de que é o menosprezo reiterado diariamente – por todos, não apenas pelos abastados, vide o ataque dos adolescentes no começo do filme – que trata de empurrar Arthur em direção ao abismo do qual sai transmutado num símbolo pervertido pelas circunstâncias. Novamente: ele não é um “monstro” insensível que deve ser combatido para o bem de todos. É alguém que, de maneira tortuosa, deformada, preconiza uma reviravolta caótica na relação antes servil entre marginalizados e o estrato privilegiado. Não se trata, no entanto, de um chamado às armas da classe trabalhadora ou de algo que o valha, mas de uma alusão às enfermidades do coletivo.
Coringa não é um “monstro”. É um humano que carrega consigo a complexidade inerente à nossa condição ontológica. É essencialmente carente de atenção, suporta, mesmo diante das adversidades, o desprezo de quem o circunda, mas é incessantemente lembrado de que não faz parte dos “escolhidos”, de que não foi convidado para a festa dos bem-aventurados. Nem por isso suas atitudes deixam de ser absolutamente reprováveis ou até mesmo revoltantes. Diante de um profundo estudo de personagem como esse, natural que alguns espectadores sejam levados puerilmente a encarar tudo de um modo binário, deslocando o propósito do filme (e talvez aquilo que ele tenha de mais pujante) para uma lógica basicamente opositiva entre bem e mal, o super-heroico (que no filme não existe) como antídoto do “monstruoso” e aniquilável. Não é disso que Coringa trata com maturidade, mas da humanidade corrompida por corpo social mesquinho, egoísta, incapaz de cultivar a empatia e de apiedar-se do outro.
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