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A pandemia da Covid-19 mudou drasticamente a dinâmica do cinema como um todo. Produções precisaram ser interrompidas, salas de exibição tiveram de fechar as portas por um tempo significativo, festivais se viram obrigados a migrar ao âmbito online em busca de sobrevivência. Todo esse movimento deixou vários profissionais financeiramente vulneráveis. Esse preâmbulo é para reafirmar a importância de iniciativas como a Lei Aldir Blanc – a Lei nº 14.017 de 29 de junho de 2020 elaborada pelo Congresso Nacional para socorrer o setor cultural. Vários filmes desta Mostra Brasil do 15º Curta Taquary foram parcial ou integralmente viabilizados com recursos desse valioso socorro emergencial. Pensar nisso passa pela compreensão da importância do Estado como fomentador/incentivador de atividades artístico-culturais, mas também pelo entendimento da urgência de enxergar artistas não como inimigos, mas como aliados. É público e notório que o governo federal encabeçado por Jair Bolsonaro não é o que se pode chamar de amigo dos artistas – ele próprio e vários asseclas tacharam membros da classe como vagabundos que estavam reclamando da federação por supostamente perderem “mamatas”. No entanto, nem as bravatas conseguem obscurecer a potência da arte feita no Brasil. O selo Aldir Blanc em várias destas produções pode ser lido como uma vitória de classe.

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Em 2022, o Curta Taquary chega à sua 15ª edição com uma programação presencial (na cidade de Taquaritinga do Norte, no estado do Pernambuco) e online (para todo o Brasil). Se trata de uma oportunidade valiosa para conferir filmes brasileiros de suma importância ao entendimento de quais são os rumos tomados pela nossa cinematografia sob ataque do próprio (des)governo. E, mais, assistir a exemplares cuidadosamente alinhados dentro de propostas e recortes curatoriais bem definidos se torna uma experiência ainda mais enriquecedora. Diante dos 13 curtas-metragens da Mostra Brasil do evento, é interessante identificar uma evidente comunicação interna. Alguns exemplares são esteticamente convergentes, enquanto outros são tematicamente confluentes. Isso é seguramente fruto de uma curadoria que pensou não somente nas individualidades, mas na construção de painéis. Abaixo, fizemos recortes temáticos com alguns assuntos que acabam interligando filmes de origens e abordagens bastante distintas. Claro que há interpenetrações, ou seja, produções que se debruçam sobre certo assunto também discutem (frontal ou obliquamente) outros tantos. A descoberta dessa comunicação é fundamental à experiência de festival.

A IMENSA FORÇA DAS MULHERES
O grande destaque entre os filmes da Mostra Brasil do Curta Taquary é Chão de Fábrica, de Nina Kopko, baseado numa cena da peça O Pão e a Pedra, da Companhia do Latão. Nele, quatro operárias conversam durante o intervalo dentro do banheiro de uma metalúrgica em São Bernardo do Campo nos agitados anos 1970. A câmera que se desloca com imensa fluidez por um espaço restrito revela os sonhos e as dificuldades de mulheres de perfis psicológicos, emocionais e fenotípicos distintos. Dentro de uma razão de aspecto 4:3 (a tela quadrada), o curta-metragem tem uma textura que remonta à época em que o líder sindical Lula (citado aqui por ser nominalmente mencionado no curta) agitava as assembleias da classe. E essas mulheres trabalhadoras conversam sobre a exclusão de gênero nas pautas grevistas, divergem/convergem a respeito de vários assuntos, isso enquanto umas se bronzeiam besuntadas de Coca Cola com o sol entrando pela única janela do espaço. Ao mesmo tempo, Nina constrói um panorama da precariedade de condições às quais a mulher é imposta dentro do operariado – vide o fato de elas comerem no mesmo cenário em que fazem as necessidades fisiológicas –, e estabelece um diálogo entre o microcosmo e o mundo exterior que está fora de quadro. Isso tudo abrilhantado pela atuação do ótimo elenco. Chão de Fábrica comporia uma bela sessão dupla com o grande Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach.

Outro filme que toca diretamente na questão feminina é Nunca Pare na Pista, de Thamires Vieira. A protagonista é uma jovem pobre que cultiva o sonho de ser cantora. O desejo de ascender ao estrelato entra em choque com o perigo das promessas de um homem que oferece a possibilidade de a garota finalmente se apresentar. Enquanto a mãe prega cautela, a protagonista parece disposta a romper com a prudência para tentar agarrar uma oportunidade aparentemente tentadora, mesmo que ela venha revestida de risco. Já Sideral, de Carlos Segundo, curta que será adiante enquadrado em outra categoria deste artigo, também oferece uma leitura do esgotamento de uma mulher sobrecarregada pelas demandas de sua família. Essa sensação de estafa é apresentada numa cena de rompante de irritação durante a lavagem da louça acumulada. Ela é arrematada pela informação de que a funcionária do departamento de limpeza da instalação aeroespacial brasileira embarcou de gaiata no primeiro foguete tripulado verde e amarelo que rompeu os limites da atmosfera terrestre. E é interessante perceber que essa reflexão sobre a sobrecarga física e psicológica dentro de uma constituição familiar que segue moldes tradicionalmente opressores à matriarca é feita por fundamentalmente por meio da ausência da mãe. Aliás, é essa a ausência o ponto fundamental.

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Chão de Fábrica

A MEMÓRIA QUE NOS CONTA
Pelo menos três curtas-metragens da Mostra Brasil do Curta Taquary 2022 têm a memória como norte. Em Central de Memórias, de Rayssa Coelho e Filipe Gama, tudo começa com fotografias estáticas apresentadas sucessivamente enquanto pessoas comentam o nascimento do bairro Villa Serrana II, situado na cidade de Vitória da Conquista, no estado Bahia. Aos poucos, essa operação (já muito bonita) de resgate memorialístico evoca o cinema como um dos seus principais vetores, uma vez que naquele espaço foram rodadas cenas fundamentais de Central do Brasil (1998), um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro durante a chamada era da Retomada. Os cineastas projetam virtualmente nas casas os registros audiovisuais dos bastidores da produção comandada por Walter Salles e indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1999. E é interessante estabelecer um paralelo entre Central de Memórias e A Gente foi Feliz Aqui, de Renata Baracho e Paulo Accioly, no qual vemos famílias obrigadas a desocupar gradativamente o bairro do Pinheiro, na cidade de Maceió, capital das Alagoas, em risco por causa dos tremores que danificam as fundações. Além de observar o drama dessas famílias desterradas por conta de uma soma de fenômeno geológico e descaso do Estado, os realizadores demonstram atenção a um projeto artístico que visa suscitar reflexões.

Filho de moradores da região lentamente despovoada, um artista imprime imagens dos moradores e as cola nas edificações condenadas. Portanto, se em Central de Memórias o cinema era projetado nas fachadas (em pós-produção) a fim de enfatizar um dado poético dessa memória que nos conta sobre a história daquela localidade, em A Gente foi Feliz Aqui o artista resolve grudar reproduções fotográficas das pessoas nas paredes carcomidas, de certo modo devolvendo simbolicamente o aspecto humano aos espaços abandonados que têm ameaçada a sua existência como lugares afetivos. Em ambos os filmes, a arte é uma forma de evidenciar o pertencimento. Ainda dentro desse recorte memorialístico, em Foi um Tempo de Poesia, Petrus Cariry – um dos cineastas brasileiros mais importantes de sua geração – comenta fora de quadro algumas imagens antigas do poeta Patativa do Assaré, seu padrinho. Linda homenagem em que o cinema mantém vivo quem se foi. Petrus reflete não apenas sobre o homem que o levava a parques de diversão, o compadre de seu pai que se tornou desde cedo uma figura de referência familiar, mas também a respeito da condição do gênio que se tornou um símbolo da potência do camponês humilde que ultrapassa a sua condição de miserabilidade valendo-se da arte. Aliás, o recorte da Mostra Brasil fala sobre isto: a arte como dispositivo de transcendência e/ou utilizado para desafiar as impermanências, os esquecimentos e as mortes.

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Da Boca da Noite à Barra do Dia

POVOS ORIGINÁRIOS E TRADIÇÃO
Os organizadores do Curta Taquary 2022 sempre incluem em seu discurso a ênfase à representatividade dos povos originários dentro da ideia de diversidade dos recortes curatoriais.  Em dois curtas temos esse assunto abordado frontalmente. Na animação Cem Pilum, de Thiago Morais, há a Ilustração de algumas tradições indígenas, de histórias contadas enquanto elas são visualizadas em tom poético pela técnica cujos características remetem a algo lúdico. Já Wherá Tupã e o Fogo Sagrado, de Rafael Coelho, vai se debruçar sobre a herança dos povos indígenas que moram em Santa Catarina, no sul brasileiro, recorte geográfico por si só incomum no nosso cinema. Um líder centenário fala sobre a permanência da cultura enquanto reverencia o fogo sagrado pelo qual zela como guardião. O fogo sagrado também se torna uma metáfora da cultura ameaçada pelo desinteresse dos mais jovens, ou seja, o homem idoso que cuida para que a chama de uma civilização não morra diante do deslocamento de seus sucessores dessa ideia fundamental de enraizamento. O líder experiente cura os males físicos do mundo, mas até mesmo isso está em vias de extinção. Além desses dois filmes que abordam diretamente as questões indígenas, Da Boca da Noite à Barra do Dia, de Tiago Delácio, toca também no assunto da tradição (igualmente mantida por um homem idoso). O curta fala do Cavalo Marinho, um folguedo folclórico tradicional da zona da mata de Pernambuco, variação do Bumba Meu Boi com características próprias. Documentário representado que transita entre sonho e realidade.

FAMÍLIAS FELIZES SE PARECEM…
Há também na Mostra Brasil do Curta Taquary 2022 um olhar especial dedicado à família. Adão, Eva e o Fruto Proibido, de R. B. Lima, repete uma abordagem frequente no audiovisual dos últimos anos: a maternidade/paternidade de uma mulher trans em processo de reconexão com um filho distante. Lembra em vários sentidos a série Manhãs de Setembro (2021), estrelada por Liniker, embora o foco do curta esteja na reaproximação entre a mulher trans e um adolescente. Pena que a alteração de estatuto desse vínculo se dê rápido demais (com as elipses abreviando a lentidão da mudança).  No entanto, é importante que tenhamos cada vez mais representadas nas telonas os múltiplos tipos de constituição familiar, não apenas a tradicional (pai, mãe, filhos). E a família também é um núcleo importante do já citado Sideral, de Carlos Segundo, afinal de contas a história de uma mulher que se esconde no primeiro foguete tripulado brasileiro a ir ao espaço é também uma reflexão sobre a sobrecarga feminina numa família de contornos habituais, ou seja, constituída em torno de um patriarca centralizador. O filme nos dá indícios suficientes de que essa oprimida tomou uma atitude extremada por estar cansada da sobrecarrega e das traições – e Carlos Segundo sinaliza o adultério (tratado como usual) numa cena exemplar de síntese narrativa.

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Depois Quando

O PRESENTE E O SENSORIAL
Desde que a pandemia da Covid-19 passou a assolar o mundo e a fazer milhares de vítimas diariamente, temos no cinema os chamados “filmes de pandemia”, como foram apelidadas aquelas produções que acontecem em meio à necessidade de isolamento social. Na Mostra Brasil do Curta Taquary 2022, alguns curtas-metragens trazem pessoas utilizando máscaras protetivas, mas geralmente como pano de fundo. O único filme que propõe uma reflexão direta desse presente pandêmico é Mensagem de Uma Noite Sem Fim, de Tiago Minamisawa. A animação traz a voz de um homem mandando uma mensagem para alguém querido. Já as imagens funcionam como moldura/ilustração. O resultado é um filme de pandemia que pode ser compreendido também como processo de autoanálise. Também há filmes mais comprometidos com os aspectos formais e/ou sensoriais. Depois Quando, de Johnny Massaro, por exemplo, aborda a miserabilidade de um jovem negro que vende doces para sobreviver no Rio de Janeiro. No entanto, o mais relevante é o instigante jogo estabelecido entre a montagem e a ótima construção sonora, resultando numa estratégia em que os temas estão subordinados à maneira como eles são representados cinematograficamente. Por fim, em Animais na Pista, de Otto Cabral, inspirado num conto de Rubem Fonseca, a câmera cria a tensão enquanto apresenta as peças de um quebra-cabeça. Aos poucos, o espectador passa a ter o panorama completo de uma situação que parece extraordinária numa estrada escura e iluminada apenas pelos faróis dos carros estacionados nas proximidades. Nele, o banal se transforma em cinematográfico pelo modo como as coisas são vistas e emolduradas pela música. Tudo se dá em torno do atropelamento de uma vaca e da morte de algumas pessoas.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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