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Quem já participou de algum festival de cinema sabe: não se trata apenas de conferir os filmes em primeira mão. Aliás, o privilégio não é exatamente (apenas) dessa ordem. O ganho maior do frequentador está diretamente ligado às trocas durante os dias da programação. Para além dos filmes, a interação, a comunicação, os diálogos, as atividades formativas, os conhecimentos adquiridos em conversas reveladoras entre as sessões. No café da manhã, no almoço, no jantar, nas festas que embalam os fins de noite, em todas as ocasiões há a celebração do cinema, dessa arte que nos unifica. Agora, pense na importância que um festival tem para uma cidade interiorana, onde é escasso o acesso aos filmes e às demais lógicas pertinentes ao cinema. Morar longe das metrópoles é ter dificuldade de assistir a determinadas produções, isso quando na cidade ainda existe alguma sala de exibição. Pensando em tudo isso, começamos a mensurar a enorme importância que o Curta Taquary tem para a charmosa Taquaritinga do Norte, mas também às outras localidades da vizinhança. Mais do que proporcionar ricos acessos, o evento tem a consciência de seu papel formativo e de como este pode auxiliar o essencial processo pedagógico de crianças e adolescentes.

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A 15ª edição do Curta Taquary teve uma novidade: foi híbrida. Desde que a pandemia da Covid-19 assolou o mundo, impondo severos protocolos de distanciamento social, o evento precisou migrar ao ambiente online – afinal de contas, era altamente recomendado não aglomerar. Passados dois anos bem-sucedidos totalmente remoto, o evento aconteceu em 2022 simultaneamente nas esferas reais e virtuais. Pelo trânsito de informações (gente compartilhando, engajamentos, discussões, etc.), pessoas do Brasil inteiro abraçaram as propostas do acontecimento pernambucano que utiliza o cinema para pensar assuntos urgentes da atualidade. Já quanto ao tão esperado retorno às atividades presenciais, o sucesso foi proporcional. Sessões lotadas. Crianças, adolescentes e demais membros das comunidades da região usufruíram o trabalho da curadoria que apontou o seu foco a questões fundamentais para pensarmos o futuro. E, de acordo com os coordenadores do evento (você pode ler aqui uma entrevista exclusiva com eles), a participação desse público que pode voltar a comungar em grupo diante de uma telona de cinema foi uma resposta à altura. Além disso, o Curta Taquary reafirmou o compromisso com a valorização das salas de cinema.

Diante da migração parcial dos festivais ao online, muitos se perguntaram: será outro indício de que o cinema como experiência coletiva está acabando? Pois, o sucesso do 15º Curta Taquary aponta caminhos para pensarmos bem melhor nessa questão. A disponibilidade de filmes e debates no âmbito online não necessariamente canibalizou a versão presencial, aliás, pelo contrário, pois potencializou algumas propostas. Além de atender a uma demanda reprimida (pessoas interessadas que não estão na região), o online também permitiu aos organizadores programar melhor as sessões em prol de recortes menores que, por sua vez, forneceram uma ênfase maior aos debates posteriores. Portanto, houve um intercâmbio entre online e presencial, algo que possibilitou ao evento reforçar o aspecto reflexivo decorrente das associações possíveis entre filmes de temáticas, estruturas e formas semelhantes. Isso garante um modelo infalível e exemplar a ser seguido por outros eventos? Talvez, mas não necessariamente. Funcionou muito bem no Curta Taquary por suas características geográficas, bem como pelas particularidades inerentes à proposta de integrar as escolas locais e transformar o cinema num meio pelo qual é possível instigar certas reflexões. De todo modo, essa confluência aponta a caminhos muito interessantes, longe das polarizações.

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Choyün, Brotes De La Tierra,

FILMES QUE CONVERSAM
Uma das principais características do 15º Curta Taquary foi a consistência da curadoria. O Papo de Cinema assistiu (e escreveu sobre) cinco mostras do evento. E o que sobressaiu nessas verdadeiras imersões que fizemos pelos programas desenhados pelos curadores foi justamente a coesão (de intenções, temáticas, etc.) mesmo entre produções de origens e com ferramentas formais bem diferentes. É o tal do “capturar o espírito do seu tempo”. Por exemplo, nos filmes da Mostra Brasil ficou bastante evidente o interesse curatorial pelo protagonismo feminino, mas também a valorização da tradição. As histórias e as narrativas dos povos originários ocuparam espaço importante nessa produção de sentidos (e de reflexões) proporcionada pelo evento. Tanto que a Mostra Internacional teve um grupo numeroso e significativo de filmes que abordaram o tópico, muitas vezes atrelando a existência dos indígenas às tantas questões de cunho ambiental. Essa relação umbilical entre os bens naturais e a existência dos povos originários também aparece de modo bastante forte na Mostra Por Um Mundo Melhor. Quem teve a oportunidade (seja online ou presencialmente) de conferir esses recortes, certamente foi levado a, ao menos, questionar-se sobre o porquê de tantos artistas estarem encarando esses assuntos ao mesmo tempo. A Mostra Universitária trouxe a possibilidade de pensarmos urbanismo e pertencimento, além de oferecer um panorama do tipo de cinema feito pelos alunos de graduação. Por fim, a Mostra Pernambucana, lançou luz sobre as mulheres que preservam a cultura e alguns retratos em tempos de pandemia. Confira abaixo os nossos artigos especiais completos sobre essas mostras.

Mulheres, família, memória e a valorização da tradição (Mostra Brasil)
A consciência ecológica e o valor das culturas (Mostra Internacional)
A água e os povos originários (Mostra Por um Mundo Melhor)
As cidades e o pertencimento (Mostra Universitária)
Guardiãs nordestinas e efeitos da pandemia (Mostra Pernambucana)

COMPROMETIMENTO COM AS CAUSAS AMBIENTAIS
Além do olhar aos filmes que tratam de questões ambientais, o 15º Curta Taquary apresentou outras formas de comprometimento com esse assunto que está tão em voga ultimamente. Num momento em que o Brasil permite o avanço dos garimpeiros sobre terras indígenas; em que o fogo consome extensas regiões amazônicas; e no qual acompanhamos o avanço agressivo das bancadas do agronegócio nas tomadas de decisão governamentais sobre demarcações, ações protetivas e comprometimento com a saúde da natureza brasileira, é se suma importância que iniciativas como a do Curta Taquary ofereçam narrativas e ações de conscientização. Houve uma itinerância pela zona rural de Taquaritinga do Norte, na qual foram ministradas oficinas de animação aos alunos das escolas da região. E esses estudantes foram incentivados a participar de outra ação fundamental: o plantio de mudas de espécies da região. O intuito foi ajudar a recuperar a flora das áreas que sofreram com a atividade humana nos últimos anos. Essas mudas foram fornecidas pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco. Para cada inscrição no festival, foi designada uma muda. E os organizadores ainda destinaram mais 521 mudas para isso, totalizando 1298 novas plantas. Ao chegar ao seu 15º ano, o Curta Taquary segue reafirmando sua vocação de fomentador de reflexões sobre assuntos fundamentais, peça essencial da comunidade e agente transformador.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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