A Mostra Internacional do 16ª Curta Taquary, cuja curadoria é da chilena Caroline Pavez, é uma oportunidade valiosa aos moradores de Taquaritinga do Norte e região terem contato com produções de várias partes do mundo. Neste ano tivemos uma predominância latino-americana entre os filmes selecionados, mas também um exemplar francês e um iraniano, sinal de que o evento está se tornando cada vez mais uma vitrine reconhecida por sua importância. Sem muita demora, vamos conferir do que tratam esses curtas-metragens e de que maneiras eles nos propõem reflexões acerca: da atualidade, da ação predatória do homem na natureza, do machismo que diariamente vitima as mulheres mundo afora e das mazelas sociais que dificultam convivências, diálogos e tudo o que nos eleva.
O MUNDO ANIMADO
Um dos destaques da Mostra Internacional do 16º Curta Taquary é o quarteto de animações. E a multiplicidade de técnicas, abordagens e alvos garantem a diversidade desse recorte. O melhor exemplar da leva é o francês Vent d’hiver, de Alicia Massez, Jeremy Andriambolisoa, Théo Duhautois, Thomas Dell’Isola, William Ghyselen, Quentin Wittevrongel. Uma fábula expressionista sobre o vento que está dizimando coelhos e os esforços do rei coelho para lutar contra essa força da natureza a fim de que seus súditos não sejam transformados em esqueletos voadores. O sabor de cinema antigo vem da filiação estética ao Expressionismo Alemão, vide os contrastes entre luz e sombra, os ângulos enviesados e as linhas em desarmonia. O preto e branco e o acompanhamento musical do piano também favorecem o clima a serviço desse conto que tem uma “moral da história”: a união é o melhor remédio contra qualquer intempérie. Assim como no argentino Con Un Ovillo De Lana, aqui a natureza é uma entidade cuja força e inclemência inspira cuidados. As demais animações da seção são todas argentinas. A.G.Ua (Abnegados/Guerreros/Urbanos), de Patricia Noemi Menghi, traz um elemento lúdico para mostrar a perspectiva de um menino das enchentes que assolavam a sua vizinhança. Enquanto os adultos se preocupavam com o nível das águas subindo na rua, com casas sendo invadidas por águas indesejadas, o jovem imaginava que estava navegando pelas proximidades de uma ilha com o seu barquinho de papel, às voltas com uma sereia que vinha a seu encontro para brincar. As enchentes que anunciam esse descolamento da realidade são motivadas por vários fatores, entre eles as mudanças climáticas e as edificações urbanas que muitas vezes não levam (ou não têm condições de levar) em consideração uma convivência harmônica com a natureza.
Já Ailin En La Luna, de Claudia Ruiz, tem como tema principal a exaustão feminina. Ailin é uma menina alegre e sua mãe é excessivamente ocupada, tanto que a cineasta representa o acúmulo de tarefas domésticas por meio da multiplicação dos braços da mulher que precisa se desdobrar. Elas moram numa região humilde e esse cansaço determina a irritabilidade da adulta, bem como uma possível frustração infantil. Isso até que uma cantiga as una novamente. A diretora Claudia Ruiz utiliza as possibilidades animação em stop-motion para ressaltar a natureza lírica dessa história, com licenças poéticas visuais e metáforas ganhando forma, vide a mãe que cresce para além do mundo a fim de resgatar a filha de castigo numa lua mecânica. Por fim, Con Un Ovillo De Lana, de Belén Ricardes, é um videoclipe o em stop-motion no qual os personagens são feitos não de massinha ou algo que o valha, mas de lã – algo que faz todo o sentido, afinal de contas a música fala de uma mulher que faz artefatos de lã. No filme, ela cobre seus amiguinhos animais e vai interagindo com o meio ambiente, numa realidade muito distante da urbana e mais próxima da cultura campesina dos povos latino-americanos. A técnica é muito bem executada e o design dos personagens é um dos principais atrativos desse curta que faz uma singela e bonita homenagem às possibilidades afetivas de convivência do ser humano com a natureza à sua volta.
O APOCALIPSE? O FIM?
Sintomaticamente, os dois curtas-metragens chilenos da Mostra Internacional falam de lugares praticamente transformados (ou em vias de se transformarem) em sítios inabitáveis pela ação humana. Ambos carregam uma visão bastante apocalíptica da ação da nossa espécie na natureza. Em Estrellas Del Desierto, de Katherina Harder Sacre, os personagens moram numa região desértica, onde a água começa a se tornar artigo de luxo. A cineasta opta por abordar essa realidade pelo viés das crianças, daquelas que sequer têm ferramentas para compreender a totalidade de seus problemas. Os pequenos formam um time de futebol (símbolo dessa fraternidade infantil) e vão perdendo jogadores à medida que os adultos se cansam de uma rotina insalubre, logo decidindo buscar novas perspectivas longe dali. Em meio a essa história de amizades interrompidas, Katherina Harder Sacre demonstra concretamente as ações da degradação do solo (arenoso e infértil), os efeitos nocivos das secas prolongadas, a obsolescência de uma geografia na qual a presença de seres vivos está gradativamente inviabilizada, assim trazendo a discussão ecológica ao campo dos afetos. Por sua vez, em Fantasmagoria, Juan Francisco Gonzáles, também se passa numa área “morta”. Às imagens do passado extrativista seguem-se outras do presente em que o espólio da atividade econômica é uma terra seca repleta de esqueletos mecânicos e ferrosos. A voz do narrador resume a ação nefasta daquilo para homens e mulheres ao longo das décadas, sinalizando o depósito perigoso de silício nos pulmões e uma desolação diante da paisagem. A trilha sonora, combinada a essa voz pesarosa, confere peso às imagens de uma localidade semelhante ao cenário de um filme distópico, com mais morte do que vida no horizonte. Contundente retrato dos “novos tempos”.
Único representante do Oriente Médio na Mostra Internacional, o iraniano Exam tem como protagonista uma estudante prestes a fazer um teste na escola. Incumbida pelo pai de entregar de algo que não enxergamos, ela protesta veementemente porque essa operação pode fazê-la se atrasar. Desde o começo, a cineasta Sonia K. Hadad opta por uma câmera colada na sua personagem principal, ao ponto de nunca termos ao menos o rosto dela enquadrado completamente. É como se o dispositivo fragmentasse a jovem e com isso representasse as opressões que a atingem diariamente. O pai está mais preocupado em completar a sua tarefa do que garantir à filha a oportunidade de estudar; a escola é mais punitiva do que educativa (pelo pouco que vemos). O suspense se instaura quando a diretora resolve fazer uma inspeção surpresa na mochila das aulas. O pouco campo de visão aumenta a angústia, afinal de contas não sabemos o que a protagonista carrega, e delega ao extracampo, ou seja, àquilo que não vemos, um espaço importante, construído no nosso imaginário por meio de falas e sons. Por fim, o peruano Los Huecos De La Luna, de Paula D´Angelo Schmid, tem como tema central o machismo. A protagonista é uma motorista de táxi que não socorre uma jovem esfaqueada pelo próprio namorado e ainda fica contando vantagem sobre a nobreza de tê-la ajudado. A mentira engatilha a necessidade de uma redenção, mas as coisas são mais cinzentas do que isso, uma vez que essa motorista também sofre com os efeitos do machismo – por exemplo, ao ser apalpada por um passageiro. Se num primeiro momento ela não tem forças para revidar, essa remissão de sua falha traz à tona uma disposição quase catártica para se vingar dos opressores.
A Mostra Internacional do 16º Curta Taquary trouxe uma diversidade de propostas e abordagens, estabelecendo uma ponte para os moradores de Taquaritinga do Norte e região compreenderem assuntos importantes da nossa atualidade a partir da perspectiva de outros povos e suas respectivas culturas. Desse modo, o cinema cumpre a função de janela ao mundo.
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