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Curta Taquary 2023 :: Riscos do futuro, pistas no passado (Mostra Primeiros Passos)

Publicado por
Marcelo Müller

A Mostra Primeiros Passos do 16º Curta Taquary cumpre uma função muito bonita: mostrar ao mundo realizações de artistas que estão começando. Trata-se de um incentivo e tanto para cineastas iniciantes essa possibilidade de contato direto com o público. Especialmente num país com sérias carências econômicas, sobretudo em áreas historicamente desassistidas pelo Estado, como evitar que talentos se percam pelo caminho? Como aproveitar o potencial, por exemplo, artístico de uma população que certamente tem muito a oferecer no campo da criatividade? Quando falamos do cinema brasileiro, nos deparamos com uma atividade historicamente resiliente, cujos obstáculos (por maiores que eles sejam) não são suficientes para soterrar a vontade de estar na telona, à disposição dos públicos ávidos por experiências que apenas esse “milagre” pode garantir. Além disso, temos de levar em conta que a seleção para um evento de cinema tem outro peso à nova geração que está crescendo na era do streaming, com o consumo de filmes cada vez mais acontecendo no âmbito doméstico: ela oferece a esses cineastas iniciantes a possibilidade de ter uma plateia fisicamente em comunhão diante de seus filmes. Não é pouca coisa. Mas, o que a Mostra Primeiros Passos do 16º Curta Taquary nos mostra? Confira.

Encontro

CULTURAS EM RISCO
Reverberando um dos principais temas observados nos filmes da Mostra Agreste do 16º Curta Taquary Encontro, curta-metragem mineiro dirigido por Rafael Brandão, aposta nos contrastes. E eles se dão entre a rotina campesina num ambiente que obedece a protocolos associados ao passado e a constituição de uma zona urbana vizinha repleta de prédios carcomidos e, em semelhante medida, edificações em construção – num reforço desse contraste que denota algo substitutivo. A pequena jornada de um homem, sobretudo o seu desfecho, aponta justamente a essa disputa entre o tempo e aquilo que nele cabe. Também nessa mesma toada de chamar atenção às culturas ameaçadas pelo “novo”, o maranhense Nossa Festa Já Vai Começar, de Cadu Marques, celebra a força cultural dos quilombolas. Por meio da atividade laboral em torno da produção da farinha, da capoeira e do exercício da fé nas divindades das religiões de matriz africana, ele desenha um panorama diverso sobre áreas que enfrentam constantemente o risco de desaparecerem em função de tentativas de desapropriação para inúmeros fins – como, por exemplo, a duplicação da rodovia. É um curta bastante íntimo, em que o diretor se coloca diante da câmera e oferece a si próprio como personagem para tecer a tapeçaria de afetos e elogios à capacidade de resistência do povo. Dois filmes que anunciam esse desejo latente de reflexão.

EXAMINANDO O PASSADO PARA COMPREENDER O PRESENTE
Outro eixo que sobressai ao conferir os filmes da Mostra Primeiros Passos do 16º Curta Taquary é o ato de remexer do passado a fim de tentar compreender o presente. Nesse sentido, o filme que mais se destaca (o melhor da mostra, aliás) é o pernambucano Lilith, de Nayane Nayse. Ele faz parte de uma vertente frequente, que tem ganhando abordagens variáveis no cinema brasileiro relativamente recente: a de cineastas que se debruçam sobre imagens familiares em busca de pistas sobre si próprios. Nayane Nayse passeia pelas filmagens com textura de vídeo que cristalizam a sua infância, com flashes do pai e flagrantes da mãe com quem atualmente tem uma relação distante. De certa forma, o filme refaz o elo entre mãe e filha ao compreender a continuidade de opressões sociais às mulheres, algo que Nayane não apenas percebe, como elabora em termos de equivalência imagética. Dentro desse processo, surgem pequenas encenações (performances) que servem para enfatizar a feminilidade, mas esse dado estava completamente posto a partir do engenhoso jogo de montagem que o filme faz. Numa chave diferente, ainda assim caracterizada pelo protagonismo da memória no entendimento do agora, o também pernambucano Santiney Cross do Capibarás, de Agda, é uma reflexão sobre a relação da cidade de Santa Cruz do Capibaribe com o cinema. Utilizando uma estrutura de cordel, ou seja, com pequenos fragmentos de sons e imagens costurados (aqui num varal imaginário), a cineasta Agda faz um curta-metragem sobre a percepção das pessoas sobre o cinema, a falta que uma sala de projeção faz na cidade e a respeito da saudade. As imagens são desconexas dos sons, porque elas tentam capturar o cinematográfico do cotidiano de uma cidade sem cinema, enquanto os depoimentos alinhavam o discurso.  Dois filmes em que imagem e som “divergem”.

HUMANISMO E EMPATIA
Há dois filmes da Mostra Primeiros Passos que sobressaem pela abordagem humanista. A singela animação alagoana dirigida por Mateus Campos, Coisas do Passado – filme mais curto da Mostra Primeiros Passos do 16º Curta Taquary –, apresenta técnica rudimentar. Por meio da licença poética, um jovem de cabelos pretos com uma mecha branca reencontra a sua angustiada versão infantil. A música lacrimosa é fundamental à instauração de uma sensação de pesar no curta-metragem. Já no paraibano Era Uma Noite de São João, de Bruna Velden, também uma animação singela e bonita, a festa de São João é o passado numa realidade em que a pandemia da Covid-19 proíbe aglomerações. De modo sintético e eficiente, a realizadora mostra uma idosa rememorando partes significativas da vida decorrida em São João, como a paixão e o casamento acontecidos há tanto tempo, tudo sem falas e com soluções visuais criativas. Os elementos de cena denotam aspectos culturais, como a religiosidade e a iconografia da região nordestina. O arremate acontece numa festa que cresce com cada um em sua casa, todos protegidos da doença, mas dispostos a evocar a cultura do São João como parte fundamental desse processo de enriquecer a alma e esquecer um pouco dos problemas diários.

Coisas do passado

Portanto, o que temos na Mostra Primeiros Passos do 16º Curta Taquary é um tatear de possibilidades cinematográficas, com linguagens e perspectivas bem distintas, mas uma evidente vontade de compreender o mundo a partir da relação que as pessoas estabelecem com o cinema, sua comunidade, os elos familiares e tantas lembranças guardadas como tesouros.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.