Uma das funções mais importantes de um festival de cinema é dar visibilidade às produções de sua própria região. Todo evento cinematográfico que se preze cumpre esse objetivo de, além de proporcionar aos seus conterrâneos acesso a importantes obras de fora, também se transformar em palco privilegiado para celebrar os seus santos de casa. E no 17ª Curta Taquary a Mostra Pernambucana, mais uma vez, apresenta uma série de curtas-metragens superinteressantes, diversos em forma e conteúdo, mas que demonstram preocupações em comum com assuntos urgentes pela maneira como afetam diariamente as populações. No recorte que a curadoria fez neste ano, temos filmes-denúncia, algumas tentativas de valorização das tradições locais – um bem em perigo por conta do avanço desenfreado do discurso do progresso a qualquer custo –, e ainda exemplares que trazem algo muito subjetivo. Nós assistimos aos filmes e os analisamos para você neste artigo a respeito da instigante Mostra Pernambucana no 17º Curta Taquary.
Denúncia
Das Águas, de Adalberto Oliveira e Tiago Martins Rêgo, é um filme-denúncia que aproveita muito bem os seus cerca de 17 minutos para sintetizar a reivindicação das comunidades pesqueiras do Recife por melhores condições de vida. Não se atendo apenas ao levante, fazendo dele o clímax, os realizadores mostram antes a precariedade das condições de vida de homens e mulheres ribeirinhos que lutam diariamente contra os efeitos nocivos da especulação imobiliária – monstro que avança sobre o território do rio e, por vários motivos, torna a pesca quase insalubre. Além de construírem um painel sobre a situação, Adalberto e Tiago mostram as formas de revide da comunidade, como a rádio local que fala diretamente ao pessoas sobre os problemas que as afetam diariamente e as sugestões das vítimas das políticas públicas para melhorar as coisas. Já O Grande Irmão, de Vito Quintans, é uma animação de três minutos pensada para ser o clipe da música homônima da banda Sargaço Nightclub. No centro da ação um personagem se deparando rapidamente com várias situações que parecem ter saído diretamente do livro 1984, de George Orwell. Como se trata de uma peça audiovisual não imaginada como cinema, mas como suporte audiovisual da divulgação de uma faixa musical, a narrativa tem uma natureza bem mais ilustrativa do que propositiva. Destaca-se a qualidade da animação, a representação visual das opressões às quais o personagem é submetido, mas nada que vá tão além da força das palavras.
Abodô, de Bruna Leite e Cecília da Fonte, toca no sempre controverso tema do aborto. Num país em que a religião muitas vezes interfere na construção de saúdes públicas, é reiterado o sofrimento prolongado da protagonista que pretende interromper uma gravidez indesejada, mas que com isso corre risco de ser tida como criminosa ou morrer. O curta é ambientado durante a pandemia da COVID-19. E isso adiciona complicações à situação de um casal de baixa renda que não pretende levar a gravidez a cabo. O mais interessante (s sintomático) como denúncia é o machismo do médico que percebe a utilização do abortivo e ainda faz força para frustrar os planos da mulher. De resto, uma repetição de procedimentos conhecidos desse tipo de narrativa.
Valorização da natureza e da tradição
Jurema: A Peleja do Carcará e a Suçuarana, de Bako Machado, é uma animação com pouco mais de dois minutos de duração. Trata-se de uma sucessão de figuras da natureza e tradicionais, num movimento contínuo que atende à ideia de celebração. Como não tem uma trama propriamente dita, o filme vale o quanto pesa essa beleza vistosa que leva a uma exultação visual. Dirigido conjuntamente pelos membros do Coletivo Cinema no Interior, Memória de um Quilombo mostra um avô levando a sua neta à escola. O percurso é marcado pelas lembranças de um tempo em que as meninas comumente eram privadas da possibilidade de estudar e até mesmo de se divertir. Numa associação desse passado com o presente (a neta indo à escola) fica a sensação de que os tempos mudaram e as coisas melhoraram bastante. Ao largo disso, os realizadores documentam elementos importantes do quilombo, principalmente os cantos de trabalho, ou seja, as músicas que as mulheres entoam enquanto labutam na roça e na manufatura da mandioca. O filme não tem um foco definido, mas tem ímpeto de preservação. São diversas as histórias em Peixe de Casa, de Tágory Nascimento, documentário que faz uma espécie de inventário do bairro recifense de Peixinhos. Os mais velhos contam histórias do matadouro, da exploração de fosfato, das atividades econômicas que ajudaram a desenvolver a localidade – mas cuja decadência também representou a falência do lugar. Assumindo a sua inclinação jornalística, o filme conta com um apresentador que acrescenta histórias sem um verniz tão subjetivo quanto o do relato dos personagens que viveram o auge desse lugar. No fim das contas, o resultado é um apanhado geral, competente, mas que acaba não enfatizando nada muito particularmente, ou seja, é um sobrevoo pela história de um lugar específico da capital.
Dentro da preocupação de inclusão socioeducativa do 17º Curta Taquary, O Som da Pele, de Marcos Santos, se encaixa como um exemplo de inteligência inclusiva. O músico Mestre Batman começa contando da sua conexão com mundo da música, incluindo aí a compreensão religiosa dos tambores que fazem o Carnaval e auxiliam na comunicação com os orixás. Logo depois ele fala do trabalho que foi montar um grupo de percussionistas surdos, da criação da linguagem inclusiva para contemplar jovens automaticamente colocados à margem por sua condição. O filme é uma grande homenagem a essa liderança proativa que pensa música e socialidade juntas. Já Dente, de Rita Luna, é um curta ficcional sobre uma família negra de classe média que está passando por dificuldades financeiras. No fim das contas, o assunto principal é a abnegação da matriarca que sacrifica o próprio bem-estar (ela está esperando ter dinheiro para restaurar um dente quebrado) em prol do filho prestes a estudar biomedicina na faculdade. Rita desenha bem esse cenário, propõe situações indicativas da falta de dinheiro para uma vida sem tantos percalços, insere a maternidade solo como subtema, mas acaba não indo muito além de mostrar a resiliência de uma mulher que conta os seus trocados para dar condições melhores aos filhos.
Subjetividades
Em Náufrago, de Vitória Vasconcellos, não há um tema propriamente dito, mas a busca de uma sensação. Duas amigas se reencontram para algo doloroso, a despedida de alguém que se foi. Para além dos rituais fúnebres, que aqui adquirem um tom bonito com o espalhamento das cinzas num cenário paradisíaco, sobressai essa tentativa de capturar uma melancolia residual, uma tristeza que sobra latejando em quem ficou. Vitória faz um filme propositalmente lacônico, mas acaba sendo vaga e pouco precisa justamente quando precisa evocar sentimentos resultantes de uma perda. O resultado é um curta que nos instiga a estar ao lado da protagonista, a compreender um pouco do que ela está sentindo, mas sem ferramentas para isso acontecer. Rei da Ciranda Pesada, de Cíntia Lima, poderia estar na seção de valorização da tradição neste artigo, pois ao dar voz e valor a João Limoeiro automaticamente também chama atenção à ciranda, uma das manifestações populares mais importantes do Pernambuco. João é encarado como uma espécie de rei dessa forma de expressão que combina dança, música e canto, de acordo com alguns inspirada originalmente nos movimentos das águas do mar. No entanto, em um pouco mais de 10 minutos, Cintia acaba não se aprofundando nem na homenagem à ciranda e tampouco investigando mais a fundo o personagem. É uma introdução a esses dois universos.
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