A Mostra Brasil do 17º Curta Taquary apresenta um panorama interessante e vasto com algumas questões a serem pensadas, entre elas as relações de trabalho. Há curtas que tocam diretamente nas feridas ocasionadas pela exploração dos mais pobres pelos mais ricos e há também os que valorizam as atividades braçais de homens e mulheres utilizadas para conseguir o sustento. Outo ponto em comum a certos filmes dessa forte seleção é a hereditariedade, a transmissão de ensinamentos, noções e culturas às novas gerações. Especialmente num país que passou recentemente pelas mãos governantes de gente sem compromisso com a memória, é fundamental certas coisas serem constantemente elaboradas e valorizadas. Voltar à terra natal, expressar a saudade de quem se foi, lutar com unhas e dentes contra a gentrificação, saber olhar para a frente sem negar as valiosas lições deixadas pelo passado. Encontramos tudo isso nos 10 filmes selecionados à Mostra Brasil do 17º Curta Taquary. Confira o nosso artigo sobre a seleção.
Força de trabalho
Vencedor de diversos prêmios no Cine Ceará 2023, o curta-metragem paraibano Pulmão de Pedra, de Torquato Joel, mostra um sujeito minerando cavernas enquanto divaga a respeito da própria miséria. Um homem que trabalha sozinho, tendo apenas a si próprio como falante e ouvinte. Em chave poética, o realizador constrói a ideia do círculo vicioso que faz esse protagonista morrer um pouco a cada dia por conta do garimpo de preciosidades para poder sobreviver. Um paradoxo que conquistou plateias de outros festivais engrandece a seleção do Curta Taquary. No que diz respeito à mensagem, temos na tela o proletário condenado a definhar conta da infestação gradativa dos pulmões pelos resquícios da atividade que garante o dinheiro utilizado para…sobreviver. Quanto à linguagem, sobressaem as imagens duras, mas bonitas, da caverna esburacada equivalente simbolicamente ao interior de um pulmão cheio de alvéolos e brônquios devassados pela poeira resultante da lida diária. Um dos principais filmes da seleção.
Mistura de ficção e documentário, o paulistano Arrimo tem como protagonista Sassá Carvalho, homem humilde que começa contando a história de como conseguiu comprar a tão sonhada casa a despeito de suas dificuldades financeiras. A maior ênfase é na continuidade de uma precariedade econômica, vide a negociação obstinada com a ajudante contratada para o serviço de revestir o interior da casa, a ligação do irmão pedindo dinheiro para pagar aluguel e a disposição de se levantar da cama para trabalhar mesmo com costas arruinadas, afinal de contas, “quem pagará as contas?”. Rogério Borges explora parcialmente o personagem reconhecido também pelo amor ao cinema. No entanto, essa informação a respeito dele é quase irrelevante, pouco utilizada, servindo somente como sustentação para a metalinguagem que encerra tudo.
Já o paranaense Pequenas Insurreições, de William de Oliveira, exibido anteriormente no Festival do Rio 2023, fala sobre a exploração nossa de cada dia. Embalada pelo som de um violino propositalmente enervante, temos relatos de mulheres precarizadas nos seus trabalhos de babá. A contratante deseja contratar uma folguista. A espera para a entrevista é marcada por conversas que expõem o comportamento classista de uma burguesia sem compromisso com a dignidade alheia. O resultado desse panorama é um retrato um tanto quadrado, mas ainda assim forte, das relações de trabalho, principalmente da exploração da mão de obra necessitada e suas engrenagens, como a chantagem de uma classe abastada que lucra pelo desespero econômico dessas mulheres tantas vezes levadas a jornadas e rotinas insalubres para sustentar suas casas.
Hereditariedade
A animação pernambucana Ciranda Feiticeira tem como protagonista uma menina que expressa a sua liberdade desde quando acorda. Depois de fazer a reza para os santos de sua devoção, corre atrás da cachorra de estimação diante do mar que provê o sustento dela e da mãe jangadeira. Os diretores Lula Gonzaga e Tiago Delácio enfatizam a infância brincante, mas também a atividade laboral da mãe pescadora que tece a rede com a qual entrará mais tarde na água em busca do sustento. Geralmente a profissão de jangadeiro/pescador é representada nos cinemas por homens, então é mais do que bem-vinda a diversificação por meio da figura feminina perpetuando os ritos da atividade laboral que também pode ser considerada um bem imaterial de algumas regiões do Brasil. No fim das contas, mesmo com a tragédia, a atividade é passada de mãe para filha, num ciclo de preservação dessa cultura dos pescadores de Itamaracá.
O curta-metragem carioca Fossilização, de João Folharini, também tem como protagonistas duas mulheres, uma adulta e uma menina, à beira-mar, numa história que fala de hereditariedades. Ju Colombo e Alanne Figueiredo interpretam, respectivamente, avó e neta passando um tempo na praia. A garota está tentando encontrar fósseis de dinossauros enquanto a mais velha fita o horizonte nublado e cuida dessa pequena curiosa. As conversas sobre a Era dos dinossauros vão evoluindo aos poucos para um diálogo cheio de subentendidos e entrelinhas a respeito do luto, da saudade de alguém querido que morreu. Falar sobre um tempo longínquo e fazer alusão à permanência de vestígios da existência de seres extintos é uma forma bonita de elaborar os sentimentos em torno da falta que ambas sentem desse ente que se foi. Há diversos modos de se falar de algo, uns mais e outros menos diretos. Aqui a opção é pela poesia de uma sugestão.
No cinema, quando um personagem volta à sua cidade natal no interior, das duas uma: saudade ou problema. No curta cearense Do Tanto De Telha No Mundo, Leo (Mariano Nobre) retorna à sua terra de nascimento para visitar a mãe, Cleide (Ana Marlene). Ainda que as perambulações pelas ruas conhecidas da infância e os encontros com antigos amigos não sejam tão valorizados nesse percurso de reentrada, o filme se achega ao filão que mostra regressos tentando alguma coisa no processo de reconexão com suas raízes. O diretor Bruno Brasileiro dispõe bem as pistas ligeiramente falsas sobre um possível problema financeiro motivando a volta, mas na verdade está contando a história de alguém que precisa se distanciar ainda mais do ninho para tentar encontrar o seu caminho. O grande destaque é a atuação de Ana Marlene, ótima interpretando essa mãe saudosa do filho, cujo passado vem à tona nas conversas sobre um marido beberrão.
O mineiro Diamantes de Acayaca, de Fernanda Roque e Francisco Franco, trabalha com as lendas por meio de relatos verbais de mulheres contando versões diferentes do mesmo causo. Com um visual muito bonito e de modo suscinto, essa história retrabalhada pelo feminino traz desde as práticas mais espúrias do colonizador, como o estupro às nativas, até a versão em que uma princesa chamada Acayaca teria construído um reinado subterrâneo. Valorizando a oralidade e as vozes diversas, da indígena à portuguesa, o curta apenas não é melhor porque acontece tão rápido que nem dá tempo para enfatizar melhor a sadia e bem-vinda disputa de vozes e versões.
Gentrificação e o lúdico
O mineiro Jardim Tropical toca no sempre importante tema da gentrificação, ou seja, no processo de transformação das áreas urbanas que encarece o custo de vida e escancara/aprofunda a segregação social das grandes cidades. No filme, uma jovem mestranda está realizando sua pesquisa acadêmica num bairro pobre quando se depara com o enviado de uma construtora, o encarregado de convencer a população de que um shopping será a solução dos problemas locais. Os diretores Luiza Garcia e Breno Alvarenga colocam boa parte do antagonismo na boca dos personagens, sintetizando prós e contras em discursos meio esquemáticos. E, no fim das contas, é um tanto acrítica a observação de que numa localidade majoritariamente negra sejam dois personagens brancos e exteriores à comunidade que tenham o poder da palavra no debate. A jovem que está do lado certo da disputa parece mais interessada em vencer do que em resistir.
O norte-rio-grandense Navio, de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real, também parte de uma comunidade pobre, mas em outra chave narrativa. Nele, uma mulher perambula por um bairro de classe baixa coletando água e materiais passíveis de venda. Um menino que parece carregar a ampulheta com as areias do tempo a segue de perto e, mais adiante, a leva numa viagem que passa pelo mar e chega a um terreno de valorização cultural da ancestralidade. Semelhante a um clipe musical, o curta-metragem tem como grande atributo o excelente trabalho de fotografia assinado por Sylara Silverio, sem o qual certamente perderia muito de sua força. Os tons terrosos são ressaltados na imagem e a câmera é fundamental para a construção de uma atmosfera que fica entre o sonho e a conexão com algo transcendente, vide as cenas caleidoscópicas ou ainda as nas quais os personagens são encarados como se fosse divindades.
Por fim, o alagoano Diafragma, de Robson Cavalcante, anteriormente exibido no Cine Ceará 2023, é uma animação sobre um menino sempre muito estimulado pela visão, mas que, após se descobrir portador de um tipo agressivo de diabetes, tem de se preparar para viver num mundo às escuras. O garoto compara seus olhos a uma câmera, a esse dispositivo que tudo vê e registra. Da infância lúdica à convivência com os colírios e óculos, o personagem reflete acerca da trajetória que adquire por vezes tons visualmente surrealistas – como quando as gotas de colírio se transformam em ainda mais embalagens de colírio. Depois, a adaptação à ausência de visão na juventude, tema também abordado no longa ainda inédito em circuito comercial brasileiro, mas elogiado em festivais nacionais e internacionais, Saudade fez Morada aqui Dentro (2023).
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