O Curta Taquary 2025 é dividido em recortes temáticos. Na Mostra Brasil, o que primeiro sobressai é a diversidade de histórias e perspectivas a respeito de questões ambientais, sociais e pessoais. Com filmes vindos de seis estados da federação, essa seção da 18ª edição do evento pernambucano evidencia a preocupação da curadoria com certa conexão entre as obras. A dificuldade de encontrar trabalho numa lógica capitalista; a necessidade de preservar os bens imateriais e os biomas brasileiros; histórias íntimas de superação; a capacidade curativa de uma festa como o Carnaval. São alguns temas que vêm à tona na Mostra Brasil. Confira o nosso artigo.
O HUMANO E SEU MEIO
O mineiro Envelhecer com as Árvores, de Loic Ronsse e Bárbara Lissa, associa o ciclo da vida de um homem ao seu meio ambiente, mais especificamente ao pedacinho de chão que ele adquiriu há muitos anos. Os cineastas mostram como as transformações do lugar constituem etapas interligadas ao envelhecimento desse sujeito que fala mansamente sobre a necessidade de incentivar a natureza a continuar existindo. Nesse processo de identificação entre o indivíduo e seu meio, o documentário sobrepõe imagens do passado e do presente para mostrar evolução, a fim de destacar a intromissão positiva do ser humano na natureza. Especialmente quando traz à discussão o fato de a propriedade fazer divisa com um espaço de mineração, os diretores estão reforçando o compromisso com o discurso ambiental que tem como fundamento a preservação.
Ele forma uma sessão dupla boa com Hélio Melo, de Leticia Rheingantz, documentário carioca com doses de ficção sobre o artista Hélio Melo. O protagonista foi seringueiro e retratou imagens do cotidiano em desenho e versos. Com a voz de Chico Diaz, o filme narra a odisseia de destruição e exploração no Acre, a começar pela expulsão dos povos originários das terras, passando pelo martírio dos Soldados da Borracha, chegando até a luta dos ativistas como Chico Mendes para manter a floresta de pé, mesmo contrariando os interesses dos pecuaristas. Letícia consegue valorizar a obra de Hélio e, ao mesmo tempo, reforçar o alerta sobre os conhecidos desmandos aos quais os povos nativos desse Brasil profundo são sistematicamente submetidos.

Já A Chuva do Caju, de Alan Schvarsberg, fala sobre o dia a dia de um quilombo Kalunga no cerrado brasileiro. Quando o assunto é preservação do meio ambiente, automaticamente somos remetidos à Amazônia, mas é preciso discutir a devastação (principalmente pelo agronegócio) de outros biomas tão importantes para o nosso meio ambiente. E esse filme do Distrito Federal aborda, com um viés etnográfico, as práticas diárias dos descendentes de escravizados cuja subsistência depende bastante da safra do caju. Moradores relembram muitos causos daquele lugar e se recordam de quando os rios não tinham problema de seca e as frutas amadureciam no tempo ideal. Trata-se de um exercício de empatia diante da realidade e das histórias do outro.
Mar De Dentro é um curta-metragem pernambucano dirigido e performado por Lia Letícia. Nele vemos uma mulher transitando pelas ruínas do que antigamente era uma prisão onde foi injustamente preso o protagonista invisível chamado Preto Sérgio. Invisível porque ele nunca aparece em cena, a não ser em fotografias apresentadas rapidamente. No entanto, ainda que em pouco menos de 10 minutos, a sua história de bravura é contada enquanto a personagem perambula por ruínas do que antes foi um lugar de clausura e encarceramento. Acusado de crimes que não cometeu, Preto Sérgio fez uma travessia oceânica improvável, mordendo uma camiseta para evitar a fome porque desejava finalmente retomar a sua liberdade. A utilização do split screen (tela dividida) é um recurso interessante, embora muitas vezes seja mais plástico.

O HUMANO E O TRABALHO
Na ficção mineira À Noite Todos os Gatos São Pardos, de Matheus Moura, temos uma família de classe média baixa formada por um jovem chegando à vida adulta, uma mãe zelosa e um pai preocupado mais em festejar os triunfos futebolísticos do Cruzeiro do que em ajudar em casa. O protagonista é esse garoto meio à deriva, símbolo de sua geração que sente sérias dificuldades na hora de amadurecer e assumir responsabilidades. Levado para trabalhar com o tio numa empresa de autopeças, ele evidentemente não está afim daquilo, mas também não tem certeza do que quer. No filme cabe até um momento onírico no qual o protagonista se depara com uma mulher estranha que o leva ao mundo dos sonhos. Já na realidade, seu pai continua a perambular um tanto sem propósito pela vida enquanto sua mãe tem seus próprios segredos para ser feliz.
O também alagoano Samuel Foi Trabalhar, de Lucas Litrento e Janderson Felipe, é um retrato bem humorado (mas não alienado) de um trabalhador submetido a um subemprego. Samuel dançava que é uma beleza na infância, sendo chamado de artista e tudo pela família. Quando adulto, é levado a utilizar essas mesmas habilidades de remelexo para ajudar nas campanhas de propaganda de uma tradicional imobiliária da cidade. Dançando sob sol escaldante enquanto está metido numa roupa de mascote que certamente agrava a temperatura, ele é como qualquer jovem em busca de diversão, mas precisa acordar cedo e ainda ouvir um monte de “groselha” da herdeira ansiosa por vê-lo agradecido somente porque teve a carteira assinada. Fica o gosto de “quero mais”, pois o filme acaba ao radicalizar a fusão entre mascote e protagonista ele acaba.

PAIS E FILHOS
Já o alagoano Guia, de Tarcísio Ferreira, apresenta uma família formada por pai e mãe cegos e a filha deles prestes a fazer uma cirurgia de correção de visão. A menina anda para cima e para baixo com uma câmera de vídeo, produzindo imagens que o cineasta utiliza como a manifestação de um olhar ao mesmo tempo infantil e excepcional naquela casa. O curta é um resumo de dia a dia com certos apontamentos mais diretos – como quando ouvimos a mãe citando a rotina de cuidados com a sua recém-nascida, a despeito da ignorância das pessoas ao redor que não compreendiam como alguém com deficiência visual poderia dar conta dessa tarefa. Mas, sobre o quê é o filme? A expectativa da intervenção cirúrgica da menina? O dia a dia de uma família peculiar, com seus desafios e singularidades? O olhar infantil retido em fitas de VHS? No fim das contas, Tarcísio não assume um ponto de vista, não define qual é o assunto principal do filme.
Por sua vez, Fenda, de Lis Paim, fala de uma relação que há muito tempo deixou de existir. Uma mulher de passagem por Fortaleza decide se reencontrar com alguém que certamente será hostil à sua presença. Há essa expectativa. A mãe arrependida pede perdão à filha indignada e cada linha do diálogo se converte numa possibilidade de sabermos os motivos da separação no passado e, ao mesmo tempo, a reconstituição da história de frustrações e distâncias. Além das ótimas interpretações de Edvana Carvalho e Noélia Montanhas, o curta-metragem cearense se destaca pela qualidade da cenografia como elemento não verbal do discurso. O interior do apartamento e os figurinos ajudam a contar essa história demarcada por ressentimentos antigos.

ENFIM, FESTA
Provavelmente, o pernambucano Hoje Eu Só Volto Amanhã, de Diego Lacerda, é o melhor dos curtas-metragens da Mostra Brasil do 18º Curta Taquary. Em um pouco menos de 10 minutos, um grupo considerável de animadores mostra diversos ângulos do Carnaval de rua da cidade de Olinda, um dos mais importantes do Brasil. Além de conseguir conciliar várias técnicas, o realizador chega a um resultado muito interessante quanto a utilizar essa variedade em prol do discurso do filme. Isso porque o Carnaval é uma das mais populares e democráticas festividades do mundo, no Brasil sendo um abre-alas obrigatório para qualquer nova temporada – não se diz que o ano somente começa de verdade depois do Carnaval? Pois ao ter múltiplas texturas, traços e perspectivas, Diego traz à tona o caráter plural e ainda representa a alegria que vem do lúdico.
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