20250320 rheum papo de cinema

O fantástico é um guarda-chuva amplo. Nele cabe o horror, a ficção científica, a ação, a fantasia, enfim, todo e qualquer exemplar de gênero que, por algum motivo ou elemento, destoe da nossa realidade. Na Mostra Fantásticos do Curta Taquary 2025 se destacam filmes em busca de uma significação por meio de metáforas. Distopias, monstros, lobisomens, sonhos, a possível intervenção divina castigando agressores e histórias empoderadoras de fantasmas são alguns dos componentes destes curtas-metragens que formam, por enquanto, uma das mais coesas e interessantes mostras do evento sediado em seis localidades da região do Alto Capibaribe, no Agreste Pernambucano. Confira abaixo o nosso artigo especial sobre a ótima Mostra Fantásticos.

Curta Taquary

DISTOPIA
Reciclos, de Diego Guerra, veio do Rio de Janeiro montando em animação a distopia na qual uma bolha de consumo é a principal vilã da sociedade. Consumidores compram um refrigerante sabor cola diariamente enquanto miseráveis catadores de latinhas fazem fila num terminal de reciclagem para ganhar moedas em troca da coleta de rotina. Além da criatividade visual do curta-metragem (com um design em que personagens parecem meio bonecos, meio humanos), o discurso do filme tem alguns lances muito interessantes, como quando o protagonista emperra a máquina e é rechaçado pelo próximo da fila, situação em que os oprimidos se canibalizam enquanto o progresso é despersonalizado e tem cara de máquina trituradora de gente. Homens pobres que pegam caronas em ônibus e consumidores de classe média estão no mesmo barco.

Javyju: Bom Dia, de Kunha Rete e Carlos Eduardo Magalhães, começa como distopia e termina sendo uma utopia. No princípio temos três pessoas transitando por uma metrópole em ruínas e desabitada onde praticamente não há vida. Sobressai o figurino semelhante ao de várias ficções científicas pós-apocalípticas (máscaras de oxigênio, botas pesadas e macacões hermeticamente fechados), mas repleto de signos indígenas, o que confere a eles uma identidade muito original. Saindo desse espaço onde a morte está simbolizada pelos escombros, os três entram numa floresta verdejante que fornece um contraste com sua abundância de vida. O futuro é indígena, parece afirmar a todo momento esse filme no qual ainda temos a morte do último não indígena do planeta – alguém que foi acolhido desde criança no seio da resistente comunidade guarani. O conceito é interessantíssimo e a execução aproveita bem poucos recursos e cenários. Ótimo.

Curta Taquary: Javyju: Bom Dia
Curta Taquary: Javyju: Bom Dia

ASSOMBROS E ASSOMBRAÇÕES
Júpiter, de Carlos Segundo, vem de Minas Gerais, mas é ambientado na França e falado em francês. Nele, um brasileiro está na fazenda de um ex-militar com o intuito de aprender a fazer queijo. O proprietário que um dia foi atirador de elite do exército é o patrão do tipo intransigente. Indignado pela fuga de uma cabra, ele desconta frustrações a conta-gotas. E há algo de indicativo na raiva machista/sexista desse francês turrão que perambula com um dos braços pendurados numa tipoia improvisada. A esposa, a dona do mercadinho ao qual ele vende seus frangos e a própria cabra viram alvos desse homem que transborda suas insatisfações de maneira enfática. Está tudo nas entrelinhas, nas relações que o homem estabelece com o meio, na forma um tanto angustiada e caótica com a qual ele existe naquele lugar. Mas, será que a justiça é divina no fim?

Visagens e Visões, de Rod Rodrigues, é uma animação ambientada em Belém, Pará, cidade natal da protagonista que pega um táxi de volta para casa depois de comemorar 25 anos. O motorista lhe conta três histórias de personalidades resistentes e corajosas que a fazem enxergar a capital de modo menos superficial. O mais interessante desses causos é a capacidade de o fantástico metaforizar aspectos cotidianos. O racismo transformando um preconceituoso em lobisomem, a gentrificação esbarrando na coragem de uma mulher capaz de “amaldiçoar” a destruição em nome do progresso e a mutação do agressor de mulheres numa criatura indefinida cujos olhos vermelhos também são percebidos na sociedade que propaga os ideais machistas e transforma vítima em algoz. É o terror sendo utilizado em prol das críticas sociais.

Curta Taquary: Gabiru
Curta Taquary: Gabiru

Já o pernambucano Gabiru, de Durval Cristóvão, mistura horror e crítica social. No começo, vemos uma mulher (aparentemente membro de uma ONG ou algo semelhante) dando comida a homens famintos que se aproximam de seu carro como se fossem zumbis (e são filmados desse modo). Depois o protagonista Delírio se dá mal ao tirar sarro de um sujeito parado que anuncia (por meio de um cartaz) o jejum de 39 dias. Delírio quer deixar a vida de vendedor de brigadeiro e ser influenciador digital (e quem atualmente não quer ser, né?). Há um clima estranho de indefinição entre o concreto e uma realidade fantasiada. Menos eloquente e enfático do que parecia no primeiro momento, ele termina com a ascensão de um monstro que poder ser herói.

SURREAL
Divagar, de Lupa Silva, é um curta potiguar de viés poético que mostra um motociclista pensando sobre a vida enquanto transita pela ponte Newton Navarro, localizada na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Para compreender a sua inclusão na Mostra Curtas Fantásticos é preciso esperar um pouco, pois de cara parece que estamos diante somente de uma animação com visual rudimentar e uma narração um tanto monocórdia. Porém, com o passar do tempo, coisas extraordinárias começam a acontecer, vide a baleia levitando sobre a ponte, entre outras coisas que desafiam as leis da natureza. Na verdade, tratam-se de manifestações dos devaneios e ideias desse protagonista ao qual não temos acesso. Quem é esse homem que fantasia e reflete enquanto pilota moto e tem seu rosto escondido por um capacete? Não sabemos e isso faz falta.

Curta Taquary: Divagar
Curta Taquary: Divagar

Rheum, de Rayana França, tem somente pouco mais de um minuto. O curta-metragem baiano é basicamente a ilustração de um pesadelo infantil. Nele, um menino está caminhando enquanto mãos desenham monstros e outras criaturas aterrorizantes na folha por onde ele transita. Embora seja muito breve, o filme tem um visual bem elaborado e, além disso, se destaca por essa opção metalinguística de colocar as mãos do desenhista traçando os perigos para uma criança que acorda sobressaltada num cenário que não é muito diferente daquele dos sonhos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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