Tradicionalmente, a Mostra Pernambucana no Curta Taquary é uma das mais interessantes desse evento. Encarregada de dar visibilidade aos filmes feitos em seu estado, o festival que está na 18ª edição conta dessa vez com 10 curtas-metragens, o que nos ajuda a perceber como anda aquecido o mercado audiovisual do Pernambuco. No entanto, o recorte não evidencia apenas quantidade, mas também a qualidade. Curtas que abordam de maneira criativa ancestralidade, a solidão da mulher contemporânea, os passos de uma juventude nem sempre compreendida como merece e, além de tudo isso, sendo cinematograficamente relevantes. Confira logo abaixo o nosso artigo sobre todos os filmes da Mostra Pernambucana do instigante Curta Taquary 2025.
TRADIÇÕES E ESPAÇOS
Mergulhão, de Rogi Silva e Juliana Soares, representa de maneira alegórica algo muito presente no cinema pernambucano contemporâneo: a preocupação com a transformação radical que as cidades vêm apresentando. Por exemplo, o cineasta Kleber Mendonça Filho se dedica justamente a, por meio do cinema, discutir tais mudanças desenfreadas ocasionadas pela voracidade de um mercado imobiliário desalmado. Nessa animação selecionado ao Curta Taquary 2025, temos uma protagonista que mergulha reavendo itens de memória, isso enquanto um monstro de duas cabeças espreita o lugar desejando o desapropriar para construir no local um daqueles espigões encarados pelo mercado imobiliário como o sonho de consumo de uma classe média emergente.
Sustenta A Pisada!, de Jéssika Betânia, é uma homenagem ao Samba de Coco de Arcoverde, ao tamanco e passos do trupe. Trata-se de uma espécie de filme-poesia no qual os pés são transformados em protagonistas de uma tentativa de valorizar a cultura local e os bens do tesouro imaterial do Pernambuco. O elemento criativo do filme é a sincronia entre trilha sonora e imagem, ou seja, os pés do personagem se movimentando de acordo com a canção tradicional que serve para embalar imagens de gestos repetitivos. Cinema é movimento e nesse sentido o curta invoca a essência da Sétima Arte. Mas, não vai muito além de mostrar a beleza dos passos.
Noé da Ciranda, de João Marcelo, é o tipo de filme fundamental para um evento como o Curta Taquary. Tendo em vista que o festival conta com numeroso público local, é essencial haver essas produções focadas na preservação dos bens imateriais da cultura regional. Em pouco mais de 10 minutos vemos causos da vida e um par de pequenas perambulações do protagonista que dá nome ao filme, um dos maiores nomes pernambucanos da Ciranda – união entre música e poesia que embala danças de roda. O cineasta aproveita o pouco tempo para fazer um resumo que inclui a admiração pelo pai centenário, a conexão com a comunidade e ainda a visão do futuro.
Já Cavalo Marinho, de Leo Tabosa, é uma reflexão muito bonita a respeito da família – este conceito constantemente sequestrado como se fosse propriedade dos conservadores. Na trama, um filho volta para comemorar com a mãe os festejos de São João, exatamente como eles faziam quando o patriarca do clã estava vivo. No entanto, há segredos não revelados a respeito dessas figuras e vínculos que vêm à tona de maneira sensível e bonita. Há o momento da explicação, quando os pingos são devidamente colocados nos is, mas o verdadeiramente belo nesse curta-metragem é a forma como Leo reafirma a sua enorme capacidade de filmar gente de verdade.
JUVENTUDE EM MOVIMENTO
Emocionado, de Pedro Melo, é um retrato bem humorado e inteligente de um garoto gamer tendo dificuldades para lidar com o “perdido” que aparentemente levou do rapaz com quem ficou numa noite. Invertendo um pouco a lógica tradicional das comédias românticas, o protagonista é o menino gay apaixonado e a sua melhor amiga, a coadjuvante imediata, é uma espécie de voz da consciência. A quantos filmes você viu desse gênero que o melhor amigo gay é apenas um amparo emocional à mocinha apaixonada? No entanto, o que o filme tem de melhor é a estética gamer, as intromissões visuais de ícones dos jogos e a trilha sonora que aproveita acordes facilmente identificáveis como naturais dos jogos eletrônicos. Muito divertido.
Coincidentemente temos outro filme na Mostra Pernambucana protagonizado por um jovem negro homossexual chamado Samuel. Mas, se em Emocionado o tom é leve, os problemas são cotidianos e praticamente universais, em Queimando por Dentro, de Enock Carvalho e Matheus Farias, um drama pesado pede passagem. A grande questão envolvendo o personagem principal é a dificuldade de diálogo com o pai evangélico, além das próprias amarras de uma comunidade que pressupõe falar em nome de um deus que consideraria o amor e a satisfação como pecados mortais. Acompanhamos o garoto esbarrando no autoritarismo do pai enquanto entra em sofrimento. Será que algum dia ele poderá ser exatamente quem é, sem precisar encobrir nada?
Ainda sobre uma juventude, mas a partir de uma abordagem muito diferente, temos Festa Infinita, de Ander Beça. Nele um coletivo de artistas tenta encontrar uma forma, melhor dizendo, algumas formas de se expressar e sobreviver. Com uma pretensão menos concreta, o cineasta transita por corpos diversos que estão no meio de um processo. No entanto, ele não resolve bem a cisão que acontece quando parte do grupo pondera a respeito da possibilidade de transformar busca em espetáculo e com isso ganhar algum dinheiro, enquanto a outra parte defende a continuidade da procura sem anseios capitalistas. O questionamento vem, a ruptura se anuncia, mas é logo abandonada em função da continuidade de um olhar meio indeterminado sobre eles.
A SOLIDÃO DO CORPO FEMININO
Chão, de Philippe Wollney, mostra uma mulher personificando os negros escravizados na zona canavieira do Pernambuco. Trata-se de um vídeo-poesia, de uma tentativa um tanto cansativa de associar as imagens desse fantasma que reverencia antepassados diante de um altar de heróis e heroínas negros enquanto a fala demonstra indignação por conta de uma história de submissão e morte. A grande armadilha desse tipo de filme é a enorme probabilidade de ele arremessar o espectador numa espécie de redemoinho em que os significados vão se perdendo em meio às repetições e à natureza livre da poesia. De toda maneira, é um gesto eloquente e interessante.
Aguda, de Mayara Millane, é outro filme tratado como experimental em virtude da apropriação incomum da poesia numa narrativa não linear e divagante tendo como protagonista um corpo feminino solitário e ecoante. Diferentemente de Chão, que aposta na ancestralidade como fantasmagoria que motiva os gestos da personagem, aqui vemos esse corpo-mulher sofrendo em meio à desolação que não se agarra a base nenhuma. A personagem principal é vista em estado de aflição, numa agonia que parece existencial e também fruto das tensões de gênero. Durante pouco mais de 10 minutos, testemunhamos a dor de alguém que não sente outra coisa.
Embora seja mais convencional do que Chão e Aguda, Carol, de Bruna Tavares, também fala do isolamento de uma mulher. A protagonista é mãe solo e, embora tenha certa rede de apoio, ela não é suficiente para a deixar confortável para trabalhar, se divertir, entre outras coisas. Trata-se de um filme simples sobre um membro da classe trabalhadora que enfrenta desafios diários para pagar suas contas em dia. No entanto, essa situação complexa é agravada pelo fardo que recaio sobre seus ombros por ser mulher – tanto que o pai de seus filhos é somente uma voz distante que denota a ausência paterna. O encerramento é meio abrupto, mas a mensagem é bem dada.