Na virada dos anos 50 para os 60, a crítica cinematográfica da França (particularmente aqueles ligados ao Cahiers du Cinéma) lançou as bases teóricas que resultaram no movimento da Nouvelle Vague francesa. Um dos mais importantes conceitos da época era o chamado “cinema de autor”. Ao discutirem a autoria nos filmes, os franceses pregavam que o cinema era de fato uma arte, cujo produto final é fruto da criação de um autor, no caso o diretor. Apesar de ser uma arte resultante do trabalho coletivo de vários colaboradores, os filmes em alguma medida são, sim, uma representação da visão do diretor (ou pelo menos deveria ser assim).
Se ficarmos restritos à conceituação francesa, poucos realizadores de fato deixam sua marca em cada filme que realizam. Particularmente no cinema contemporâneo, formatado mais para atender demandas monetárias do que alguma aspiração artística. Hoje o autor é o produtor, ou, em escala superior, os próprios estúdios.
Na atual ordem do cinema mundial é extremamente complicado um realizador ter a supremacia na concepção de uma obra cinematográfica. Conta-se nos dedos aqueles que chegaram a este patamar: Woody Allen, Federico Fellini, Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino, Alfred Hitchcock, Akira Kurosawa, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman, Martin Scorsese, Jean-Luc Godard e outros poucos. O estilo único e identificável de cada um deles transforma em adjetivo o nome destes diretores.
Neste time de realizadores diferenciados um nome se impõe: David Lynch. Curiosamente, o cinema entrou na vida de Lynch por casualidade, quase uma consequência de seu trabalho como artista plástico. Suas experiências estéticas em três dimensões começaram a ser exploradas pelo jovem artista na bidimensionalidade do cinema. Os primeiros curtas eram experimentais como linguagem estética e narrativa, e o cinema para ele representava apenas mais uma forma de expressão. No entanto, logo Lynch descobriu o fascínio das imagens em movimento e sacou que seus experimentalismos conceituais casavam muito bem com a tela grande. Sonhos e bizarrices se materializavam com mais força pela gramática cinematográfica. Luzes, sombras e efeitos eram as ferramentas adequadas para Lynch exibir suas perturbadoras imagens. Tudo isto já estava lá, no seu primeiro longa-metragem: Eraserhead (1977). Na época incompreendido, depois elevado a condição de cult, o filme atraiu a atenção de Mel Brooks, então um ativo produtor. Impressionado com o que viu, Brooks convidou David Lynch para assumir a direção de O Homem Elefante (1980). O longa foi um sucesso, recebeu oito indicações ao Oscar e lançou o nome de Lynch para o cenário mundial. Ousado e firme em suas convicções, o realizador optou por filmar em preto e branco, uma decisão mercadológica arriscada. O estúdio topou a parada, e o resto é história. Raramente se viu na tela uma Era Vitoriana, em plena Era Industrial, tão exuberantemente fotografada. A explicação do êxito de O Homem Elefante não estava apenas em suas qualidades estéticas. Lynch não explorou gratuitamente o horror gráfico, que a história facilmente poderia levar. Ele optou por mergulhar na mente dos protagonistas: médico e paciente. E deste mergulho resultou um filme comovente e inspirador.
David Lynch é um artista, antes de ser um cineasta. Sempre atento e aberto a novidades, Lynch não vacilou no início dos anos 90 quando surgiu a oportunidade de criar uma série de TV. Naquela época a televisão não havia ainda conquistado prestígio com filmes e séries (o que hoje é uma realidade). Mas Lynch aproveitou a oportunidade e lançou Twin Peaks que chocou e fascinou a audiência em todo o mundo. Foi febre e criou um case na Televisão. A série revolucionou a TV, desbravou um mercado e mostrou que era possível agregar qualidade com boa audiência.
Dos cineastas em atividade, David Lynch é considerado o mais multimídia. Ele cria e produz para várias plataformas e formatos. Explora a Internet, produz curtas-metragens, dirige videoclipes e segue com sua bem sucedida carreira como realizador cinematográfico. Isto tudo sem abandonar sua metódica meditação transcendental, que costuma divulgar em todo o mundo, inclusive em Porto Alegre, quando aqui esteve em 2008 para falar sobre o tema. Lynch não abre mão de suas convicções, muito menos de sua particular visão de mundo, muito bem expressas pelos jogos mentais que propõe em todos seus trabalhos, seja no audiovisual, seja nos livros que escreve.
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DAVID LYNCH será tema do curso “David Lynch: O Lado Escuro do Sonho”, ministrado por Rafael Ciccarini nos dias 28 e 29 de julho, no Museu da Comunicação, em Porto Alegre.