O ano de 2020 marca o aniversário de 25 anos de Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995). A comédia histórica dirigida por Carla Camurati desempenhou um papel fundamental no cinema brasileiro. Primeiro, demonstrou a capacidade de levar o público a ver filmes nacionais, depois da paralisação quase completa das atividades durante o governo Collor. Segundo, demonstrou a capacidade de se apropriar de um fato histórico de maneira leve e popular, levando quase um milhão de pessoas às salas para descobrirem a fuga do português Dom João IV (Marco Nanini) e da espanhola Carlota Joaquina (Marieta Severo) ao Brasil.
Além disso, a produção trouxe um modo de distribuição ousado. Carla Camurati e a produtora Bianca de Felippes tiveram a obra rejeitada pelos distribuidores no começo, quando não se apostava no cinema nacional. Conseguiram apenas uma sala, que ficou sempre lotada. Assim, convenceram um segundo distribuidor, e lotaram mais uma sala. Aos poucos, o projeto conquistou um enorme sucesso financeiro e de público, a partir de um orçamento limitadíssimo. Além disso, venceu os prêmios Guarani de melhor ator, atriz e direção de arte. A comédia também serviu para consolidar a parceria entre Marco Nanini e Marieta Severo, que trabalham juntos desde o espetáculo As Desgraças de uma Criança (1974).
Carlota Joaquina: Princesa do Brazil se torna particularmente interessante em 2020, quando as leis de fomento e os editais de audiovisual são paralisados pelo atual governo, ao passo que as ameaças à Ancine nos fazem lembrar a extinção da Embrafilme, que levou ao colapso do cinema nacional. Por isso, o Papo de Cinema conversou com Carla Camurati, com a co-roteirista Melanie Dimantas, o ator Marco Nanini e o diretor de fotografia Breno Silveira (então em seu primeiro trabalho, muito antes do sucesso de 2 Filhos de Francisco, 2005), a respeito deste esforço hercúleo de retomada do cinema nacional.
A obra representou uma exceção em todos os sentidos: uma obra falada em três línguas, uma comédia bufona baseada em fatos, um filme com roupas de papel e cenários de pintura, uma produção em que as cenas sobre Portugal e na Espanha foram filmadas em Maranhão e no Rio de Janeiro. Um caso ideal para discutir a História do Brasil e a História do cinema brasileiro.
O ponto de partida do projeto soa curioso: contar a nossa História pela narração de um homem escocês (Brent Hieatt), que conta a história da Corte portuguesa no Brasil a uma garotinha (Ludmilla Dayer). Por que adotar o ponto de vista externo? Carla Camurati explica o processo:
“Quando chamei a Melanie, já tinha uma pesquisa muito grande, e já tinha começado a escrever o roteiro. Fui escrevendo toda a parte da menina e do escocês, porque eu precisava que esta história fosse contada pelo olhar de um estrangeiro. Se eu contasse esta história pelo olhar brasileiro, seria um ponto de vista totalmente diferente, e a crítica talvez não pudesse ter o humor que eu procurava. De alguma maneira, era preciso ter um olhar de fora, distante, para poder tanto fantasiar quanto brincar, ridicularizar e fazer apontamentos como quem conta a história de um país distante”.
Ela continua: “O escocês fala para a menina: ‘Dizem que no Brasil tem borboletas gigantes que sugam o cérebro das pessoas’. Isso é totalmente contemporâneo. Essa ideia do Salvador Dalí era correta, afinal: no Brasil tem borboletas gigantes que sugam o cérebro das pessoas. Parece uma piada, mas é algo muito mais profundo, quando vemos o caos político em que o Brasil se encontra, e como foi o processo de redemocratização do país como um todo. Foram dois impeachments, estamos em via de um terceiro, dentro de um país dividido… Existe uma visão terrível do que conseguimos construir”.
Curiosamente, a fuga de Dom João IV ao Brasil não constituía o primeiro tema sobre o qual a cineasta queria trabalhar. “Queria fazer um filme inicialmente sobre o descobrimento, e não sobre a chegada da família real. Eu tinha lido uma carta sobre o descobrimento, de que eu gostava muito. Conforme eu lia e avançava neste momento do Brasil, pesquisei capitanias hereditárias, os Jesuítas etc. Quando cheguei na fuga da família real de Portugal e a chegada ao Brasil, percebi que aquele era um ponto muito importante. Era o momento em que o Brasil tinha o poder estabelecido, porque ser colônia é muito diferente de ter o rei morando no país. O Brasil foi apresentado ao mundo, de fato, neste momento. Independente de estar fazendo comédia ou não, quando você lida com a História, os fatos históricos são importantes. A comédia é a maneira lúdica de narrar os fatos – neste caso, por pertencerem à fantasia de uma garota de 10 anos”, explica.
A roteirista Melanie Dimantas confirma que, enquanto Camurati pesquisava a História do Brasil, as duas sequer se conheciam. “Eu ainda nem existia para ela neste momento. Eu tinha feito um filme com meu ex-marido, Não Quero Falar Sobre Isso Agora (1991), e a gente ganhou o Festival de Gramado. Este foi o primeiro roteiro que escrevi. Quando subi no palco para receber o prêmio, brinquei no discurso, dizendo que tinha adorado fazer o primeiro longa, e que quem quisesse poderia me chamar para novos trabalhos. Então a Carla me chamou. Talvez ela tenha achado fofa a minha fala, vai saber”.
A reunião das duas para escrever o projeto resultou num intenso trabalho de pesquisa: “A gente ia para a casa dela e revirava um material gigantesco de pesquisa, feito em colaboração com a Lara, uma pesquisadora da PUC. Começamos a imaginar como contar esta história em tom farsesco, sem ter o compromisso de ser completamente fiel ao desenrolar das coisas. Surgiu a ideia de contar a trama do escocês. Pensamos: e se um tio escocês contasse essa história a uma sobrinha rebelde? É como uma história de conto de fadas, com uma princesa. Mas era uma princesa muito triste e feia, que se casou aos nove anos de idade. Os elementos foram aparecendo. Era um conto de fadas sobre um país distante, assim como hoje ouvimos a história da Frozen, ou de qualquer outra num lugar exótico. No caso, era uma princesa espanhola que veio parar no Brasil”.
“Escrevemos o roteiro juntas o tempo inteiro, à mão, linha por linha”, Dimantas continua. “Cada uma tinha um caderno para ficar escrevendo cena a cena, e depois juntar as ideias de uma e de outra. Tinham desenhos misturados com o texto. Como este era o primeiro filme dela, seja por insegurança ou por já estar pensando em dirigir, ela decupava cena por cena. Era um processo louco. A gente sentia muito prazer em escrever, porque todo roteirista cria um filme na sua cabeça e se torna o primeiro espectador do filme que ainda não existe. Mas eu nunca me atentava demais aos enquadramentos e movimentos de câmera, exceto quando isso fosse fundamental ao ato de contar aquela história específica”.
“O roteiro era muito episódico: a gente lia livros, cartas, pesquisas, e mesmo peças de teatro da época. Curiosamente, coisas que a gente inventava apareciam mais tarde nas pesquisas! A gente imaginou uma personagem que queria comprar galinhas, mas os animais tinham sumido porque a Corte consumia tudo. Depois nos deparamos com um relatório fiscal da época demonstrando que todas as galinhas sumiram de fato, para consumo da Corte! Nós nos baseamos em fatos, mas é evidente que tivemos liberdades. Alguns historiadores deploraram o filme na época, dizendo que Dom João não era nada daquilo. Reclamaram que ele era um estadista, e que tinha ficado preso à figura paspalhona correspondente ao nosso imaginário. Mas dentro da narrativa fantasiosa de um tio à sobrinha, a gente achava que aquilo entraria sem sofrimento”.
Dimantas confirma que mesmo as supostas lendas populares correspondiam aos fatos: “Dom João realmente não tomava banho. Ele tinha erisipela e outros problemas de pele. Um camareiro de fato costurava a roupa no corpo do Dom João enquanto ele dormia, porque ele sequer tirava a roupa. Isso vem do trabalho de uma pesquisadora muito séria. É evidente que brincamos com a imagem dele, mas não acredito que isso o invalide enquanto estadista. Uma frase do filme, ‘Quando você não tem muito o que fazer, é melhor não fazer nada’, era uma frase real dita por ele. Algumas pessoas sugerem que foi um desbravador, que ousou sair da Europa para se aventurar no Brasil, mas na verdade, ele fugiu, deixando os portugueses abandonados para serem invadidos por Napoleão. Nós fomos a única colônia a ser sede por um tempo”.
Marco Nanini comenta que, para os atores, havia grande liberdade de criação: “A Carla não me pediu para ler livros no processo, nem indicou referências precisas. Naturalmente, eu decidi ler vários livros sobre a época para saber mais sobre o percurso do Dom João IV, mas isso veio de uma necessidade minha. Apenas o sotaque precisava ser verossímil. Eu me preparei antes, treinei bastante, e neste processo a composição do personagem mudou bastante. Depois que eu dominei o sotaque, tudo ficou mais tranquilo”.
O ator garante que o teor da comédia atingiu um patamar consensual na equipe: “Não tinha limite nenhum [quanto ao respeito de fatos históricos]. Para compor este papel não foi fácil, mas caminhamos aos poucos até encontrar um teor com o qual todo mundo concordou. O filme é uma comédia, quase uma comédia deslavada. Então os personagens têm um tom caricato. Mas a história não foi distorcida: tudo aquilo aconteceu. Apenas os temperamentos nos permitiram brincar um pouco mais”.
“Nós nos divertimos, relativizamos algumas interpretações”, concorda Dimantas. “O Nanini fez uma interpretação meio bufona e bastante teatral, que corresponde ao estilo da Carla, mesmo em outros filmes. Ela gosta do burlesco, do exagero. Não sei se este é muito o meu estilo, mas este é o estilo dela. Eu não imaginava que as cenas seriam assim, com Dom João comendo um frango e babando, roncando. Eu não sei se faria assim, mas esta é a maneira com que a Carla enxerga este período. A gente optou por uma estrutura episódica, com momentos marcantes como a parte sobre o Banco do Brasil. Aquela parte era absurda! Inventar um banco ali, no meio do mato! Mas isso dialoga com o Cinema Novo, com este furor da invenção”.
Carla Camurati garante que nosso imaginário de luxo em relação à Corte não corresponde à realidade. “Essa é nossa fantasia em relação ao passado em função das roupas, dos talheres. Mas isso não imprime de fato, porque não temos filmes feitos na época, já que o cinema ainda não existia. Temos narrações por escrito, de vários autores. Quando você lê um livro de História, você acha que sabe muito. Quando você lê trinta livros de História, você percebe que não sabe nada, porque encontra muitas visões diferentes. As pessoas se contradizem o tempo inteiro. Alguns historiadores tomam partido, ou descrevem sob outra ótica – sobretudo no caso do Brasil, país que tem uma memória ruim e não valoriza a sua história. O Brasil tem síndrome de juventude eterna, síndrome de Peter Pan enquanto nação”.
A cineasta efetua uma ligação muito próxima entre a colonização e o século XXI. “Tenho a sensação que o país acredita estar sempre descobrindo a saída nova: apostamos num novo salvador, alguém que vai resolver todos os problemas. O país não cresce, não amadurece, buscando sempre a figura como executivo. Às vezes, quando olho o Brasil – talvez por estar fazendo um documentário sobre política agora -, penso como é impressionante a gente sempre escolher o mesmo personagem para o mesmo papel, do lado que ele estiver. Você veste a capa do xerife, do homem honesto, e amanhã, se gritar, falar alto, disser que vai botar todos os políticos corruptos na cadeia, você se elege presidente. O sistema altamente corrupto vem desde a chegada da família portuguesa no Brasil. Sempre gostamos muito de tirar proveito, de aproveitar da abundância do país. Você vê hoje as pessoas roubando de hospitais de campanha!”.
“Nós já fomos o país mais maravilhoso enquanto colônia: era enorme, com ouro, madeira, pássaros. As mulheres da colônia usavam chapéus de plumas, imitando índios. Por isso tivemos tantos estrangeiros vindo do norte ao sul. Na hora de recontar isso, era preciso se ater aos fatos, mesmo ficcionalizando determinadas cenas. Todos os fatos de Carlota Joaquina estão presentes em pelo menos três ou quatro fontes confirmando a mesma informação. Mas existem diferenças entre o fato e a cena. Três historiadores dizem que Carlota Joaquina teve um caso com o jardineiro da Quinta do Ramalhão. A cena foi criada por nós, para o filme. Ninguém descreveu o encontro exato de Carlota. A fuga de Portugal vem de relatos, mas as cenas são criadas a partir dos relatos. Hoje o mundo tem outros registros. A nossa fantasia sobre o passado, em função dos objetos, sugere um glamour muito maior do que aquilo que havia de fato”.
“A Carla vai ler essa entrevista e vai querer me matar”, brinca Dimantas ao falar sobre o roteiro escrito pelas duas. “O filme se chama Carlota Joaquina, e embora a gente siga a Carlota durante certo momento, depois ela desaparece. Em quarenta minutos do filme, ela desaparece, e lá para o final a gente relembra: ‘E a Carlota? Ah, é verdade, ela tomou veneno e morreu’. Acaba assim. Tem um lapso enorme. Por outro lado, existe certo frescor nessa maneira de contar, sem fazer grandes gestos épicos. Os filmes históricos costumam trazer algo meio épico, mas Carlota Joaquina não tem nada disso. É farsesco mesmo. Hoje em dia, se eu me debruçasse sobre esse texto enquanto consultora de roteiro, ficaria louca”.
Questionada sobre referências para a construção de cenários, figurinos e objetos, Carla Camurati explica que se importou mais com os exemplos negativos, ou seja “as coisas que a gente não queria fazer”. Ela justifica: “Gostava de trabalhar com a equipe vendo filmes não para copiar, e sim para ver o que não daria certo. A gente apontava o que era ruim nesses filmes! O acerto é algo pessoal, que depende da química e de diversos outros fatores. Não adianta copiar, nem esteticamente. Mas dá para ver o trabalho dos outros e detectar facilmente os erros. Os acertos são mais difíceis de atingir. É muito melhor construir uma estética específica para a sua história. Então achamos as referências juntos”.
“A fotografia do Breno vem de pinturas: ele se baseou em Goya, Velázquez. Tínhamos uma palheta de cores muito estudada. Carlota Joaquina começa com tons frios, onde tudo é cinza e azulado na Escócia. Depois, ele cai na Espanha, onde existem os vermelhos, os pretos, com contraste, com fogo. Portugal ganha tons de branco, cinza e bege. A palheta inteira de cores apenas se une quando a história chega ao Brasil. Assim, a estética acompanha o raciocínio da história. Nós fizemos Portugal em São Luís do Maranhão, e a Espanha no Forte de Niterói. O que faz parecer que estamos na Espanha é o fato de as pessoas falarem espanhol, e as cores do Velázquez. Isso constrói o imaginário do espectador. A gente pinça a iconografia de cada um desses países”.
“Não só os nossos cenários buscavam ser muito cuidados esteticamente, mas a gente tinha que fazer um pouco em cima do que existisse de beleza no cenário”, concorda Breno Silveira. “Como nos quadros do Velázquez, a fonte de luz iluminava apenas o que era bom. O resto ficava sombrio. Quase todos os filmes de época que a gente tinha visto até então eram horríveis, por serem limpinhos demais. A pessoa veste uma roupa de época nova, sem sangue, sem sujeira, sem vida. Naquela época, as condições sanitárias eram muitos piores do que hoje. Dom João passou quase seis meses com a mesma roupa. Ele não tirava as roupas porque tinha medo dos insetos brasileiros, então ficava transpirando ali dentro. As coisas iam apodrecendo, sujando de gordura. Não existia sabão em pó”.
Silveira continua: “Vimos alguns filmes de época, como dever de casa, e eles tinham uma aparência de plástico. A gente preferiu a sujeira e o peso. Apesar da comédia, havia uma realidade ali. Mesmo com o cenário em papel, o que imprimia era uma estética forte. A maquiagem da Marieta tem peso, tem gordura, tem bigode. As roupas são amassadas. Essa estética é muito interessante. A história também entrava com uma luz mais quente através de frestas. Foi um trabalho bem complicado para um fotógrafo iniciante – teria sido bem mais fácil usar uma luz forte e iluminar tudo. Mas a brincadeira era criar uma linguagem surreal, parte vinda de quadros espanhóis da época, com um pé no teatral. Temos luzes que fecham e abrem. Eu me sentia pintando aquele cenário”.
Breno Silveira demonstra um carinho ímpar ao falar deste projeto, 25 anos após seu lançamento. “Carla dizia que este filme seria feito de papel e tinta, um tipo de spray. Eu achava tudo aquilo uma loucura, mas as pessoas tinham muito bom gosto para fazer. Foi uma experiência muito intensa. De verdade, o nosso set era muito precário. Olhando hoje, parece fabuloso, mas era tudo papel, tinta. Era algo muito felliniano“.
“Eu tenho inveja e sonho até hoje em fazer algo fabular. É neste contexto em que você se solta mais esteticamente. Mas eu sou movido por outra matéria em relação à Carla. O que me ajudou muito foi acompanhar o processo dela com os atores, e compreender que, com pouco dinheiro, você consegue fazer muito no sentido de transformar. Mas o que você olha, escolhe e enquadra precisa estar bonito. Ela tinha um cuidado muito grande com a estética e os atores. A Carla estava dirigindo e produzindo ao mesmo tempo. Eu também faço isso nos meus filmes hoje. Assino direção e produção, porque as duas coisas estão associadas: é preciso saber onde você pode gastar, onde vai fazer o plano sem dinheiro, e onde pode ser grandioso. Descobri que a Carla sabia muito bem onde precisava gastar o dinheiro para imprimir aquele resultado impressionante”.
“Ela me disse algo muito importante”, conclui o cineasta e diretor de fotografia. “‘A gente pode inventar uma mentira linda, melhor que a realidade’. Essas palavras são sábias, e foram muito importantes na minha carreira. A gente viajava com a nossa pequena trupe para onde o governo local desse apoio. Descobrimos esse resto lindo de rua em São Luís do Maranhão. A gente tinha dinheiro para fazer tudo numa diária só. Juntamos as pessoas locais para pintar a rua, mudar, mexer e filmar tudo num dia só. Isso me ensinou não só a dirigir, como a produzir também”.
Até hoje, Carlota Joaquina, Princesa do Brazil é estudado pelo modelo inusitado de lançamento – certamente não aplicável a todos os projetos, porém muito funcional na situação de penúria em que se encontrava o cinema nacional. Ao invés de enviar diversas cópias a várias praças e monitorar os resultados à distância, Carla Camurati acompanhou o filme, cidade por cidade:
“Tive o trabalho físico de ficar andando pelo Brasil inteiro, junto da Bianca de Felippes”, explica. “A gente lançava o filme como se fosse uma peça na cidade: a gente ficava alguns dias para poder comparecer em todos os programas, então foi trabalhoso. Mas Carlota Joaquina batia na tela sem erro. A empatia com o espectador, no sentido do humor e do senso crítico, funcionava, criando uma cumplicidade muito grande. Até hoje o filme tem isso. Carlota Joaquina não envelheceu: as pessoas têm um carinho muito grande por ele até hoje. Filmes sobre a História não envelhecem tanto quanto os filmes contemporâneos, que ficam presos aos seus anos. Estes podem virar clássicos, mas representam as suas épocas. Quando você rompe com a relação da imagem cotidiana, através da imagem histórica, por exemplo, o filme envelhece de maneira diferente, por já pertencer a outro tempo”.
Breno Silveira destaca que o projeto resgatou não apenas o público, mas também o orgulho de uma produção nacional, então publicamente atacada. “O maior impacto do filme foi ter trazido de volta o nosso público. Eu já fazia cinema antes, mas era muito complicado naquela época dizer que você fazia cinema. As pessoas respondiam: ‘Você faz aquela porcaria? Você faz pornochanchada?’. Imagina, para alguém que queria fazer cinema na época, não havia muito orgulho de fazer cinema nacional. Carlota Joaquina resgatou o público para o cinema nacional. Ele começou numa única sala, e olha a revolução que essa mulher fez! Ninguém quis distribuir o filme. Ela botou num cinema só, que bombou, e depois encontrou outro distribuidor e lotou a sala também. Logo foram os distribuidores que começaram a correr atrás dela, e não o contrário. Isso é lindo, é genial! Que eu saiba, é uma primeira vez no mundo! Todo mundo recusou o filme no começo, e ele fez sucesso por si só. O grande mérito foi resgatar o nosso público para ver coisas nossas”.
Mesmo a propaganda de Carlota Joaquina foi calculada em doses precisas para restringir gastos, segundo a diretora. “A Bianca conseguiu cinco anúncios de um quarto de página no Jornal do Brasil, na base de um anúncio por semana. A gente não tinha dinheiro, era uma permuta. Foi melhor apostar numa trajetória longa para o filme do que fantasiar com um sucesso estrondoso imediato. Eu pedia a Deus que o filme tivesse pelo menos três semanas. Esse era o meu desejo de todos os dias: eu ficava pensando como me sentiria se, depois de todo esse trabalho, ninguém fosse ver o filme! Pelo menos três semanas, Senhor! No final, foram onze meses em cartaz. Carlota Joaquina teve, ao todo, 28 cópias”.
“O Barreto me ligava para dizer: ‘Carlinha, abre esse filme! Você está perdendo dinheiro!’”, ela confessa, em referência a Luiz Carlos Barreto, um dos maiores produtores do audiovisual brasileiro. “Mas eu tinha a sensação de que precisava manter as salas sempre lotadas para eu de fato atingir as pessoas. Se eu abrisse muitas salas, eu gastaria dinheiro que não tinha, e acabaria com menos pessoas por sala. Na época, você lia relatos de pessoas dizendo: ‘Já é a sexta vez que eu tento ver Carlota Joaquina, mas não consigo’. Isso aumenta o sucesso do filme. Você faz uma onda, e mantém o filme num estágio diferente com o público. Eu e a Bianca optamos por manter a pressão. Não quisemos abrir mais do que isso. É como segurar o papagaio na hora do vento, em vez de dar a linha inteira”.
Marco Nanini concorda com a importância da obra. “Ninguém esperava que ele tivesse o sucesso que teve. Ele foi determinante na minha carreira no cinema, e acredito que tenha sido o mesmo para a Marieta e a Carla. Carlota conquistou esta fama de ter restaurado o vínculo do público brasileiro com o cinema. Desde o plano Collor, o cinema brasileiro perdeu seu público. Então, esta foi a retomada. O processo foi árduo, mas chegamos ao fim”.
“A produção de Carlota Joaquina foi vitoriosa e lucrativa, mas muito sacrificada, em todos os sentidos”, confessa Carla Camurati. “O filme foi feito em seis semanas, ao longo de oito meses, e tinha 60 latas. Foi feito com R$ 500 mil. Se você fizer a conta de 60 latas, vezes oito minutos e meio, você descobre o quanto de película a gente tinha para usar. Tudo era muito cuidadoso e precioso. O cálculo do filme era de três para um: eu podia ter no máximo três takes por plano! No momento de rodar, todo mundo tinha um empenho, seriedade e concentração imensos”.
“A gente filmava durante uma semana, e depois parava. Então Tadeu Burgos e Emília Duncan reconstruíam tudo, e eu partia em busca de dinheiro, mostrando o material que já tinha filmado. Alguém me dava mais algum dinheiro, então eu voltava e tentava organizar com todos: ‘No próximo mês, vamos tentar filmar na última semana?’. Era preciso reunir as agendas de todo mundo. Por incrível que pareça, eu não perdi ninguém nesse processo, todos mantiveram as suas funções do início ao fim. Isso é mérito da equipe, não tem nada a ver comigo. Elas tinham um empenho enorme para com o filme. Às vezes eu digo que filmes são como filhos: cada um tem a sua memória. Eu corri atrás do Carlota Joaquina, nunca precisei empurrá-lo. Entende a diferença?”.
Para um diretor de fotografia estreante, como era Breno Silveira na época, este foi um desafio considerável. “Como a Carla não gostava de cortar os planos, e sempre usava planos-sequências, era muito difícil fazer algum plano capaz de contar tudo o que a gente pretendia contar, sem fazer um close, sem mudar o foco. Existia um trabalho de ensaio pesadíssimo com os atores e com a câmera. Hoje eu vejo planos e digo: ‘Como a gente fez isso?’. A Carla babava com isso. Era preciso começar com o plano geral geral, andar, passar pelo close de um personagem, pegar o cara que falava atrás dele, girar a câmera, pegar ele, voltar, abrir o quadro e contar tudo. Para as cenas acontecerem, foi um verdadeiro balé”.
“Teria sido muito mais fácil cortar os planos, claro. Planos-sequência dão trabalho, e a equipe inteira precisa se mover como uma orquestra. Mesmo assim, hoje em dia é mil vezes mais fácil, porque a gente filma com digital, então não tem problema. Se dá errado, você apaga e faz de novo. Mas na época era filme, era película. Se gastasse aquela lata, precisaria comprar outra, e cada lata custava uma fortuna, em dólar. Por isso a gente não tinha alternativa na hora: precisava acertar. Antes, você revelava, gastava uma nota, e se não estivesse bom, o negativo ia para o lixo”, explica.
Um dos temas mais recorrentes nas conversas com a equipe diz respeito à questão financeira, e aos imensos obstáculos superados por Carla Camurati enquanto produtora e diretora. Breno Silveira, em especial, trouxe boas anedotas sobre o trabalho árduo:
“No meio do filme acabou o dinheiro. A Carla entrou no set enquanto a gente preparava a iluminação. Ela pegou um três tabelas, sentou ali no meio e começou a chorar. Ela falou: ‘Gente, desculpa. Acabou o dinheiro do filme e vamos ter que parar’. A gente perguntou quando pararia, e ela: ‘Hoje mesmo. Não tem mais dinheiro para pagar ninguém. Não sei o que fazer’. Então o filme parou. Cerca de um mês depois, ela nos liga dizendo: ‘Olha só, vendi o carro do meu pai, e consegui um dinheirinho emprestado. Vamos continuar’. Ela chamou os quatro maiores salários – Marieta, Nanini, Bianca e eu – e explicou que não tinha como fazer o filme e pagar o nosso salário ao mesmo tempo. ‘Estou oferecendo aqui 10% da bilheteria para cada um de vocês’, ela disse. O engraçado é que, até então, todos os filmes brasileiros dos últimos dez anos tinham dado prejuízo. Nenhum tinha dado lucro”.
“Todo mundo sabia disso, e respondemos para a Carla que não, obrigado, porque ninguém queria se tornar sócio de um prejuízo. A gente disse que continuaria trabalhando e ela pagaria a gente depois, quando pudesse. Mas ninguém aceitou os 10%, porque cinema brasileiro não dava certo na época. A única pessoa que aceitou foi a Bianca de Felippes. A gente não imaginava que estaria às vésperas de fazer um grande sucesso do cinema brasileiro depois de dez anos. Eu rio dessa história até hoje. A Carla me encontra e me diz: ‘Está vendo no que deu? Vocês não aceitaram!’. Quando eu encontro a Bianca ou a Carla, sempre me lembro disso. Carlota Joaquina rendeu uma fortuna para um filme brasileiro na época. Se não me engano, ele fez quase um milhão de espectadores. Depois disso ele ainda passou na televisão”, conclui.
Melanie Dimantas sublinha que também recebeu uma proposta de sociedade no projeto: “Quando comecei o projeto, a Carla estava sem grana. Eu estava grávida, e eka me prometeu: assim que tiver grana no filme, eu te pago. Eu olhava pra ela e pensava que um filme histórico não daria certo, que seria uma loucura na época da retomada. Ela falava sobre o lançamento, sobre como distribuiria, e eu pensava: ‘Essa mulher é louca’. A questão da grana foi engraçada. Quanto ela ofereceu a parceria, pensei: como vou ser sócia de algo que não vai dar nenhum dinheiro agora? Preciso comer! Eu e o Breno dissemos não, apenas a Bianca aceitou. No final, a Bianca comprou um apartamento com o dinheiro do filme, já eu e o Breno não chegamos nem perto disso! A Carla ainda pagou mais do que tinha prometido, quando o filme fez sucesso, mas nada que me permitisse comprar um apartamento!”, brinca.
Pouco tempo mais tarde, Breno Silveira viria a desenvolver uma trajetória notável como diretor de 2 Filhos de Francisco (2005), À Beira do Caminho (2012), Gonzaga: De Pai pra Filho (2012) e Entre Irmãs (2017). O cineasta estima que a experiência em Carlota Joaquina foi determinante para sua carreira:
“Dois Filhos de Francisco não foi por acaso. Eu não tenho nada a ver com o sertão sertanejo do Zezé di Camargo. Mas sabia que algumas histórias podiam se comunicar com o público. O Brasil está repleto de histórias boas pra caramba, e precisamos resgatar isso. Temos que nos ver na tela, não dá para ficar usando o enlatado sempre. Tudo o que está ali é verdade e mentira, porque existe uma pesquisa gigante por trás. Muita coisa ali é exagerada ou fantasiada, mas a partir de fatos. Essa é a nossa história. Quando comecei a fazer 2 Filhos de Francisco, eu sabia da importância de falar da nossa cultura e levar as pessoas de volta para a sala de cinema. A Carla foi a pioneira nesse processo. Eu tenho muito orgulho de falar sobre Carlota Joaquina. Só de lembrar o título desse filme, já tenho vontade de falar. Foi um filme muito importante na minha carreira”.
Carla Camurati estima que o resultado excepcional não lhe trouxe pressões para repetir a proeza. “Eu não me senti comprometida com o sucesso, tanto que o meu segundo filme foi uma ópera. Se eu estivesse comprometida com o sucesso, teria feito Princesa Isabel, ou Pedro II. As pessoas me perguntavam: ‘Você não vai fazer outro filme histórico?’. Talvez hoje eu pudesse. Carlota Joaquina hoje poderia ser uma série: aquele escocês contaria agora outro momento absurdo da história do Brasil! A menina vai crescendo, já seria adolescente, ou contaria para a filha dela. Mas naquele momento, a linguagem do Carlota Joaquina foi tão forte que eu me sentiria plagiando a mim mesma se fizesse outro filme assim. Eu não buscava reproduzir o mesmo sucesso que tinha alcançado”.
“Depois optei de novo pelo contrário: depois fui para a ópera, e então falei sobre a velhice. É claro que gosto do sucesso, e quero sempre fazer filmes que as pessoas vejam. Não tenho nenhuma vontade de fazer filmes para poucos, ou que falam restritamente ou subliminarmente sobre coisas. Isso não significa facilitar nem o conteúdo, nem a linguagem. Carlota Joaquina é falado em três línguas, na época em que muitos diretores diziam que o público não gostava de ler, e detestava a História do Brasil. As pessoas me desaconselhavam. Mas para mim era fundamental que tivessem as três línguas, só assim as pessoas entenderiam o que estava acontecendo de verdade. Se as pessoas falassem em português na Espanha, dentro de um Forte em Niterói, o filme não teria a força que teve para as pessoas. Ele seria mais galhofento, seria menos crível, mesmo enquanto fantasia. Para mim, isso não era uma opção”, conclui.