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Especial 25 Anos :: Corisco & Dadá

Publicado por
Marcelo Müller

O cenário é o sertão nordestino atravessado pela presença mítica dos cangaceiros. A história é a de Corisco e Dadá. Ele, nascido Cristino Gomes da Silva Cleto, um dos cabras mais valentes do temido bando de Lampião. Ela, nascida Sérgia Ribeiro da Silva, menina violentada e arrastada para essa vida itinerante no abrasivo terreno poeirento como forma de pagar as dívidas do pai. Uma história de amor que começa com fúria e ódio. Personagens da vida real que em 1996 chegaram às telonas pelas mãos do cineasta cearense Rosemberg Cariry. Vale lembrar que os anos 1990 foram marcados pela chamada Retomada do cinema brasileiro. Depois de alguns anos de vacas desnutridas por conta da extinção de diversos instrumentos estatais de fomento/regulação/organização da atividade no Brasil, aos poucos nossos artistas voltavam a ter telas para se expressar. Época de filmes fundamentais que já tiveram especiais de 25 anos aqui no Papo de Cinema, tais como O Quatrilho, Terra Estrangeira, O Menino Maluquinho: O Filme e Carlota Joaquina: Princesa do Brazil. Mas, é importante que pensemos aquele momento também fora do dominante eixo Rio-SP. E Corisco & Dadá (1996) foi um dos exemplares mais relevantes para que essa Retomada não permanecer restrita às duas capitais sudestinas. “Curiosamente, Lírio Ferreira e Paulo Caldas lançaram Baile Perfumado (1996) no mesmo ano. E as duas produções dialogam em vários sentidos e aspectos, dos personagens iguais à mesma época em que ambos se passam. Apesar de diferenças de perspectiva, esses longas celebram o futuro ao olhar para trás”, conforme consta na nossa crítica sobre esse filme que abriu caminhos e possibilidades.

Chico Diaz como Corisco. Foto/Tibico Brasil

Há muitas pessoas vitais para o êxito de Corisco & Dadá, a começar por seu diretor. Rosemberg Cariry nasceu em Farias Brito, no Ceará. É formado em filosofia e doutorando em Belas Artes. Começou no cinema em 1975, demonstrando interesse por manifestações culturais locais que ele registrou em documentários de curta-metragem. Em 1986, dirigiu seu primeiro longa, O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Em 1993, ou seja, quando o cinema brasileiro vivia de esparsas e penosas iniciativas, lançou seu primeiro longa de ficção, A Saga do Guerreiro Alumioso. Ao receber em 1995 o Prêmio Retomada do Cinema Brasileiro, oferecido pelo ressuscitado Ministério da Cultura, ele pode colocar em prática seu projeto mais ambicioso até então, justamente uma leitura das deambulações de Corisco e Dadá pelo sertão de cangaceiros versus polícia volante. Para viver os papéis-título, convocou Chico Diaz e Dira Paes, intérpretes que deram profundidade emocional e intensidade política a esses dois personagens que vivem tragédias convergentes. O Corisco de Chico é um Diabo Loiro febril, inflamado pelo sol escaldante e pelas desigualdades sociais. A Dadá de Dira é uma mulher que precisa suportar dores constantes para sobreviver num ambiente predominantemente masculino, mas no qual Maria Bonita (esposa de Lampião) oferecia um modelo de imposição feminina. Histórias contadas pela Xerazade arretada interpretada pela saudosa Regina Dourado.

Fazer cinema na Retomada

Quando Corisco & Dadá chegou aos cinemas, O Quatrilho e O Que é Isso Companheiro? tinham sido indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (categoria atualmente chamada de Melhor Filme Internacional). Claro que esse parâmetro não é o mais indicado para entender que estávamos crescendo novamente enquanto país de cinema, mas nos ajuda a compreender como foi determinante a existência de filmes-âncora-seminais para que a atividade voltasse a florescer no país. A adesão do público, a seleção para eventos internacionais, tudo isso contava como degrau para sairmos do cenário de terra arrasada deixado como legado da administração de Fernando Collor de Mello, desastrosa em vários sentidos e com vários ingredientes. “Naquele momento, sabíamos que era importante realizar esse filme da melhor forma possível e que ele representava um desafio não apenas pessoal, mas para toda uma equipe e mesmo para o movimento do cinema nordestino, que dava os primeiros passos em sua afirmação. Os recursos eram poucos e por três vezes tivemos que parar as filmagens, mas fizemos empréstimos, conseguimos apoios e realizamos o filme. Depois veio a luta para exibi-lo, inscrevê-los em festivais nacionais e internacionais etc. Por fim, conseguimos fazer com que o filme circulasse. O filme tinha e continua a ter uma força imensa, talvez pelo tema e a maneira como foi abordada essa história de amor, de forma tão visceral”, recorda Rosemberg. E quem também se lembra daqueles tempos de atividade essencial é Chico Diaz, alguém que de lá para cá se tornou uma figurinha carimbada em filmes de sucesso, em realizações que trataram de consolidar o cenário que ele ajudou a desbravar. “Não havia como ligar e/ou inserir o filme no fato histórico. Trabalhávamos muito, na medida do possível, queríamos o melhor. A ideia de Retomada, o conceito, surge depois ao nos depararmos com a nova musculatura de produção e temática. Sei que trabalhava muito e que vieram as consequências dessa dedicação. Quando vi, estava em filmes importantes da tal Retomada, como Baile Perfumado e Os Matadores.

O cangaço já tinha marcado de modo importante fases pregressas do cinema brasileiro. O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, anunciou a possibilidade de fazermos faroeste com tintas nordestinas – embora o filme tenha sido rodado em São Paulo. Mesmo que não tenha garantido a sobrevivência de sua empresa produtora, a Vera Cruz, o longa foi um sucesso retumbante e chegou a ganhar o prêmio de Melhor Filme de Aventura no Festival de Cannes. Depois dele surgiram vários exemplares do chamado “nordestern” e seus tantos derivados, como o “western feijoada”, noção que transportou a intensa lógica do gênero norte-americano por excelência ao Brasil interiorano de pegada caipira. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), por muitos considerado o maior filme brasileiro de todos os tempos – atravessado por Corisco –, é uma das pedras fundamentais do Cinema Novo, movimento sessentista que propunha uma Sétima Arte revolucionária capaz de contemplar a luta de classes ao transformar precariedade e subdesenvolvimento em linguagem de inquietação. “O que mais me impressionou foi a dimensão trágica da história, com referências às experiências humanamente vividas, embora parecessem impossíveis. As narrativas escritas e orais, cantadas nos versos dos cantores e descritas na literatura de cordel, foram posteriormente ampliadas pela ficção do cinema, ancoradas em arquétipos.  Fundamentei essa história de amor extraordinária a partir da estrutura da tragédia grega. Um homem, a sua glória e a sua queda, e uma menina forçada a entrar no mundo violento do cangaço, que se torna mulher e quer mudar o destino. Uma história que sempre me fascinou, que ultrapassa o cangaço e entra numa dimensão humana e universal”, afirma Rosemberg Cariry.

Chizo Diaz e Rosemberg Cariry nos bastidores. Chico Diaz como Corisco. Foto/Tibico Brasil

Corisco e Dadá: os intérpretes

É difícil imaginar Corisco e Dadá sem Chico Diaz e Dira Paes, mas eles não foram as primeiras escolhas de Rosemberg, algo muito comum no cinema. “Incialmente foram pensados alguns nomes, entre eles o ator Bertrand Duarte, mas não foi possível. Dadá, a ex-cangaceira, contou-me que quando ouvia a música ‘Anunciação’, de Alceu Valença, tinha a impressão de que os cangaceiros chegavam perto dela. Veio daí a ideia de chamar também o Alceu Valença para o papel de Corisco e cheguei a fazer um ensaio com ele. Nessa mesma noite, ele fez um show em Fortaleza vestido de cangaceiro. A proposição inicial era que a própria Dadá ouvindo ‘Anunciação’ começasse a contar a história. A Dadá morreu antes que a filmássemos, então convidamos a atriz baiana Regina Dourado. Glória Pires, que fizera com Chico Diaz a minissérie Memorial de Maria Moura (1994), também foi pensada para o papel de Dadá. Houve problemas com as agendas desses artistas, por conta de lançamentos de discos, novelas e outros motivos. Tínhamos um cronograma fechado e precisávamos cumpri-lo. O rio do Tao seguiu seu curso. Jefferson de Albuquerque Jr., diretor de produção do filme, sugeriu Chico Diaz e Dira Paes. Ótima sugestão. Deu-se o grande encontro e o Chico Diaz e a Dira Paes se dedicaram ao filme com corpos, corações e mentes. Fizeram um trabalho visceral. O filme deve muito ao trabalho desses atores e dos demais atores e atrizes que dele participaram”, afirma Rosemberg. Curiosamente, alguns anos depois, Alceu Valença dirigiria seu próprio filme ambientado na época do cangaço, o “nordestern” existencialista A Luneta do Tempo (2014), estrelado por Irandhir Santos e Hermila Guedes, respectivamente, como Lampião e Maria Bonita, numa pegada bastante diferente.

Infelizmente, não conseguimos conversar com Dira Paes para esta matéria em função de sua agenda de compromissos, mas Chico Diaz nos atendeu gentilmente para falar como foi sua entrada na produção para viver Corisco, o Diabo Loiro. “Eu vinha de Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, adaptado pela TV Globo, onde já fortemente se descortinava para mim o universo do sertão nordestino, sua fibra e sua gente. Inicialmente, Rosemberg queria o Bertrand Duarte para interpretar o Corisco e eu faria o Lampião. Não me lembro bem como as peças mudaram e deu no que deu. Nunca imaginaria, a priori, a dimensão desse personagem, nem o significativo caminho apontado pelo Rosemberg, nem o resultado obtido, nem as chaves de interpretação alcançadas. Mas claro que o cangaço em si e os seus heróis são matéria obrigatória para se entender o homem brasileiro, daí a minha curiosidade e vontade nesse trabalho”. Chico tinha pela frente o desafio de interpretar uma figura existente, personagem eternizado nos cinemas por Othon Bastos em Deus e o Diabo na Terra do Sol. “Não houve relação nem referência no momento da filmagem, apesar de que depois surgiram comparações, principalmente nos rodopios próprios do gestual do personagem histórico, daí ele chamar-se Corisco. Um detalhe que, se comparando, pouco significam diante da complexidade e da dimensão abismal do personagem”, afirmou o intérprete que aproveitou para recordar com saudosismo o trabalho com a colega Dira Paes: “Foi muito bom, pois já tínhamos uma relação de amizade e confiança anterior. Na verdade, tenho a impressão de que seria inicialmente um filme de enaltecimento da figura feminina, pois a narradora seria a própria Dadá em vida, o que não foi possível dado o seu falecimento. É onde vemos claramente a dedicação e a entrega da Dira nesse trabalho”.

Chico Diaz e Dira Paes como Corisco e Dadá. Chico Diaz como Corisco. Foto/Tibico Brasil

Histórias de Bastidor

“Tenho uma lembrança da equipe deslocando-se por sertões do Pernambuco e do Ceará, como um bando de cangaceiros (valentes e determinados), com trabalho dobrado sob o sol escaldante e em condições muitas vezes difíceis. Lembro com especial carinho dos camponeses que nos abrigaram e nos ajudaram, neles os atores perceberam falas, observaram gestos, ouviram narrativas, jeitos originais de viver e de sentir o mundo. Sempre apareciam alguns sertanejos e sertanejas, nas locações de caatingas profundas, para nos oferecer alguma fruta fresca, alguma quartinha de água, algum prato especial de comida. Essa solidariedade e hospitalidade foram realmente comoventes. Lembro também de um camponês que fez o papel do cangaceiro Moita Brava – homem do trabalho rústico que quando teve que abandonar a equipe chorou e quis levar consigo a roupa de cangaceiro. Ainda hoje, nos sertões do Cariri, ele toca sanfona em forrós e se apresenta com o nome de Moita Brava. Cheguei a reencontrá-lo alguma vezes. Ele é um amigo meu, do Chico e da Dira. Temos por ele muita afeição”, diz Rosemberg ao se recordar daqueles tempos. Já Chico Diaz se lembra principalmente do que sentia ao experimentar o figurino e das dificuldades impostas pela locação: “Na primeira prova de figurino eu parecia o Dunga, um dos sete anões, dada a minha baixa estatura (lembro bem da cara do Rosemberg) e a falsa expectativa de um ator alto como o Corisco era, mas foi esse mesmo figurino que me imbuiu de um espírito samurai necessário para vivê-lo. Lembro também das diferentes esperas, calores de mais de 40  graus naquilo que seria uma paisagem, do esmero com que o Pacheco, exímio maquiador, se dedicava à peruca usada e à supervisão severa do funcionamento e naturalismo”.

Passados 25 anos…e um remake? Continuação?

Corisco & Dadá foi condecorado nos festivais de Gramado, Cuiabá, Brasília, Natal e Havana (Cuba) e levou um pouco menos de 14.000 pessoas aos cinemas, de acordo com a Ancine (Agência Nacional do Cinema). Não se configurou necessariamente num sucesso comercial estrondoso, mas teve um desempenho ótimo se levadas em consideração as dificuldades de distribuição e a predominância dos filmes do eixo Rio-SP nessa ainda vagarosa abertura do circuito exibidor para o filme brasileiro. Mas, como será para Chico Diaz e Rosemberg Cariry assistir ao filme depois de 25 anos? “Sempre o vejo e sou feliz por isso. Assisti recentemente para uma futura montagem de Rei Lear em Portugal. Usei como uma aproximação, tem tudo a ver a relação com o divino e a posterior queda ao que é falível e mortal, assim como a loucura fruto desse abandono”, afirma Chico. “Tive a oportunidade de rever esse filme, em alguma exibição e mostras especiais. O filme tem uma força que ainda hoje me comove. Nele estão presentes o trabalho de fotografia de Ronaldo Nunes, um profissional bem experiente que antes fora assistente de Dib Lutfi, o talento e a sensibilidade e a coragem de Chico Diaz e Dira Paes, que artisticamente se jogaram no abismo das almas e dobras dos personagens, tentando desvendar as suas sombras e encontrar a humanidade possível em um cenário tão violento como era o do cangaço. O profissionalismo da maquiagem de Pacheco. O trabalho da produção. Tudo que se reuniu para resultar no que o filme é. Há nesse filme, na minha percepção, uma violência visceral, mas também algo que ultrapassa a representação física e dilacera a alma. Também é comovente o desejo de Dadá em criar os filhos, naquele cenário de lutas, mortes e perseguições”, diz o diretor Rosemberg Cariry.

O bando de Corisco e Dadá. Foto/Tibico Brasil

E para encarrar essa humilde homenagem a um dos nossos filmes mais importantes da Retomada, lançamos uma provocação para Rosemberg: quem ele escalaria se fosse realizar um remake de Corisco e Dadá? “Eu jamais faria um remake desse filme. Não teria mais o mesmo ímpeto. Seria impossível para mim. Penso às vezes que a história de Dadá, depois da morte de Corisco, tem uma dimensão que ultrapassa a dimensão pessoal e realiza-se na concretude da tragédia narrada incialmente no filme. Por vezes, penso na completude dessa tragédia. Dira como Dadá, lutando para juntar os ossos do corpo de Corisco com a cabeça que estava exposta em um museu para dar-lhe um sepultamento humano digno, de gente (como ele dizia). Chico Diaz como Corisco – um fantasma que revisita Dadá em seus sonhos e pesadelos. Fiz anotações sobre essas ideias. Quem sabe isso seja possível na próxima retomada do Cinema Brasileiro, já que o nosso cinema é feito de muitas mortes e ressureições. Feito a lenda da Fênix que está sempre ressurgindo das cinzas”. E essa imagem da ave mitológica serve perfeitamente para simbolizar o ímpeto resistente do cinema brasileiro que sobreviveu a várias tentativas de homicídio ao longo de sua história secular, como a que vem sendo arquitetada pelo atual governo federal. Nesse cenário de terra sendo arrasada, é especial e simbólico voltar ao amor de Corisco e Dadá se dando num cenário bruto, no qual o caráter inóspito e abrasivo é combatido pelo afeto que persevera, apesar de todas as condições desfavoráveis e obstáculos.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.