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O Festival de Berlim 2022 se iniciou com uma aura de rebeldia, ou mesmo de imprudência. Com o aumento dos casos de Covid-19 na Alemanha, devido à variante Ômicron, como podia o evento confirmar sua edição exclusivamente presencial? Sundance e Roterdã retornaram ao formato online, algo seguido no Brasil pela Mostra de Tiradentes, em preocupação com a saúde dos visitantes e trabalhadores do audiovisual — afinal, nenhum evento quer ser conhecido como foco de contaminação. No entanto, encerrada a 72ª edição, pode-se dizer que a empreitada foi bem-sucedida, graças a regras rígidas e à cooperação direta dos governos federal e estadual.
Para aprovar a edição em salas de cinema, os organizadores, prefeitos e ministros da saúde impuseram uma lista de metas draconianas a seguir: usa obrigatório de máscara PFF2 (e apenas esta) em todas as sessões, além de eventos com tapete vermelho reduzidos, e lotação máxima de 50% nas salas, com assentos interditados (nem mesmo casais, vivendo juntos, poderiam se sentar lado a lado). Cada profissional foi obrigado a fazer testes diários de Covid-19, patrocinados pela administração local. Com o resultado desse negativo, recebeu uma pulseira válida por 24 horas para frequentar as sessões. Caso o resultado fosse positivo, seria o fim da linha para o indivíduo em questão. Mesmo Isabelle Huppert, atriz homenageada este ano, contraiu o vírus ainda na França, e recebeu seu prêmio remotamente.

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A diretora da Berlinale, Mariette Rissenbeek. Foto: © Ines Wilczek / onscene 2022

Ao final, nenhum surto de Covid foi noticiado. Ainda que em formato atípico — os críticos, distribuidores e exibidores assistiram às produções entre os dias 10 e 16, e o público, entre 17 e 20 —, Berlim provou ser capaz de retornar às sessões em sala de cinema com segurança. O sucesso se deve a uma administração que valoriza a cultura a ponto de investir um esforço e um orçamento consideráveis em termos de organização e logística. Os ganhos de assistir às produções na sala de cinema, com qualidade excepcional de som e imagem, são inomináveis, em comparação com sessões caseiras. Através destes esforços, a Berlinale reforça a mensagem de que a sala de cinema constitui o local de predileção da experiência cinematográfica, ao invés da televisão de casa.
O cinema brasileiro teve uma bela participação este ano. A quantidade de seis filmes exibidos é inferior àquela dos anos anteriores, seja em reflexo de uma redução geral no número de títulos, seja como consequência das medidas do atual governo contra o audiovisual brasileiro. Mesmo assim, para a tristeza daqueles que torcem contra, o saldo foi positivo, tanto em reconhecimento artístico quanto em número de troféus. Fogaréu, de Flávia Neves, foi um dos três preferidos do público na Mostra Panorama, entre cerca de 30 longas-metragens do mundo inteiro. Manhã de Domingo, produção de estudantes de audiovisual da UFF dirigida por Bruno Ribeiro, venceu o prêmio do júri entre os curtas-metragens, e Três Tigres Tristes, uma representação divertida da pluralidade de sexualidade e gênero em plena pandemia, valeu ao cineasta Gustavo Vinagre o Teddy Award.

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Fogaréu, de Flávia Neves

Ainda tivemos a exibição de Mato Seco em Chamas, potente distopia política de Adirley Queirós e Joana Pimenta, que não hesita em taxar o presidente de genocida; Se Hace Camino al Andar, preciosa investigação de linguagem de Paula Gaitán, e O Dente do Dragão, alucinante obra experimental de Rafael Parrode. Não é pouca coisa. O cinema brasileiro esteve representado em mostras diferentes, com formatos e linguagens completamente distintas, porém sustentando o discurso comum de crença num país democrático, plural e defensor da cultura. De maneira mais ou menos explícita, todas as produções levaram à Europa os gritos de um Brasil sufocado pela gestão bolsonarista.
Em paralelo, a mostra competitiva se focou em obras intimistas, muitas delas marcadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A questão sanitária se fez presente de maneira incisiva este ano, quando os artistas tiveram tempo de elaborar e finalizar obras a respeito da crise. Both Sides of the Blade traz personagens utilizando máscaras, enquanto That Kind of Summer, A Piece of Sky e Peter von Kant se focam em experiências de clausura, com personagens presos em casas no campo, ou apartamentos na cidade. Histórias familiares se multiplicaram na seleção, pendendo à loucura (The Line, Robe of Gems), à solidão e depressão (Return to Dust, The Passengers of the Night) e à explosão (Alcarràs), dialogando com a degradação da saúde mental.

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Both Sides of the Blade, prêmio de melhor direção para Claire Denis

As comédias se multiplicaram, na chave do absurdo social e político. Trata-se de uma ferramenta hábil para representar nossas angústias: sejas as cinzas de um escritor, perdidas e esquecidas durante o transporte (Leonora Addio), a vontade de uma escritora em fazer um filme, mesmo sem entender a linguagem do cinema (The Novelist’s Film), e a luta de uma mãe atrapalhada para provar que seu filho árabe não é terrorista (Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush). Houve bastante comicidade na trajetória de uma dona de casa conservadora transformada em militante pró-aborto (Call Jane), na decadência de um cantor de cassinos e asilos (Rimini), numa história de amor entre um adolescente e uma senhora de 60 anos (A E I O U: A Quick Alphabet of Love) e numa reunião de garotas ninfomaníacas (That Kind of Summer). Pelo menos metade das obras se abriu ao humor, uma porcentagem atípica e generosa, e sinal de que os criadores preferiram abordar a crise humana pelo prisma do distanciamento, ao invés de uma proximidade excessiva com o real.
Em contrapartida, o júri presidido por M. Night Shyamalan, do qual fazia parte o brasileiro Karim Aïnouz, fez escolhas seguras e clássicas: o cinema bem dirigido e pouco provocador de Alcarràs para a Palma de Ouro, o novelesco Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush para o prêmio de roteiro (o troféu mais triste da premiação), além da mise en scène improvisada, e literalmente caseira, de Both Sides of the Blade, para o prêmio de direção. Esqueça obras fervorosas como Titane, vencedor da Palma de Ouro, ou mesmo Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, que levou o Urso de Ouro em 2021. O diretor norte-americano e seus colegas privilegiaram um cinema para toda a família, para o bem ou para o mal. Neste recorte, o belíssimo The Passengers of the Night, de Mikhaël Hers, saiu de mãos abanando.

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Alcarràs, vencedor do Urso de Ouro

No entanto, as verdadeiras preciosidades vieram da Mostra Encounters, onde se destacam novas formas de linguagem e discurso — não confundir com a experimentação de texturas da Mostra Forum. Coma, de Bertrand Bonello, constitui uma aventura delirante pelos pesadelos da pandemia, literalmente, através do olhar de uma adolescente. A obra fornece uma das personagens mais marcantes da 72ª Berlinale: Patricia Coma, influenciadora digital do fim do mundo, e sátira aguda dos nossos tempos. O delicioso Axiom, de Jöns Jönsson, entrega ao espectador a jornada de um jovem mentiroso, em quem o espectador não pode confiar. Que caminhos seguir quando nosso narrador é pouco confiável? Já Sonne, de Kurdwin Ayub, poderia realmente estar na Mostra Competitiva com sua provocadora representação de jovens curdas vivendo na Alemanha contemporânea.
Fora da Encounters e da Competição, destacam-se Geographies of Solitude, documentário experimental da Ilha Sable, onde existe uma única moradora humana há 40 anos. Vencedor de três merecidos prêmios, o filme dirigido por Jacquelyn Mills combina uma melancolia e uma expressividade excepcionais. O português O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes, explora as possibilidades de dinamismo de uma obra concebida para o teatro, enquanto a alucinante comédia Nobody’s Hero, de Alain Guiraudie, mergulha numa França multicultural, onde uma prostituta, um homem comum e um garoto de origem árabe precisam se unir para sobreviver.

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Geographies of Solitude

Por fim, o festival trouxe uma seleção forte — não a mais ousada e inventiva dos últimos anos, tampouco a mais convencional, como vinha acontecendo nos três anos anteriores à gestão de Carlo Chatrian na curadoria. O sinal vermelho se acende à distribuição geográfica dos filmes: apesar de manter a paridade de gêneros e se abrir à representatividade étnica de minorias, Berlim se torna cada vez mais eurocêntrica, numa linha já questionada em Cannes e Veneza. Ora, o evento sempre foi conhecido pela capacidade de olhar para o sul do globo terrestre, e espera-se que este posicionamento seja mantido nas próximas edições — especialmente dentro da Mostra Competitiva.
De qualquer modo, a edição 2022 comprovou a possibilidade de produzir e consumir filmes de maneira responsável, embora isso exija um esforço coletivo e uma criatividade artística notável de uma comunidade que, compreensivelmente, se encontra cansada após estes anos doentes. Berlim apresentou obras provocadoras; e outras carinhosas, intimistas, com pouco espaço entre os dois. São obras de urgência, realizadas em orçamentos menores, muitas vezes via sistema de coprodução com outros países. O cinema se reinventa e se reafirma diante da crise. O simples fato de existir face às adversidades constitui um gesto político fundamental.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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