A princípio, uma parte considerável dos longas-metragens exibidos no 12º Festival Varilux de Cinema Francês se prestaria a tragédias profundas: os protagonistas descobrem que estão perto da morte em Adeus, Idiotas e Enquanto Vivo, ou recebem a notícia da partida iminente de seus familiares em Está Tudo Bem. Há catástrofes aéreas (Caixa Preta), humilhação e bullying virtual de um jovem promissor (Arthur Rambo, Ódio nas Redes), ameaças de um antissemita (Um Intruso no Porão), de mafiosos (Madrugada em Paris) e de adolescentes suicidas (Pequena Lição de Amor).
No entanto, poucos filmes realmente investem no formato do melodrama convencional. A seleção 2021 do evento presencial, que chegou a 50 cidades brasileiras, foi marcada por obras capazes de adotar ferramentas específicas de linguagem para driblar a mera lamentação diante das dificuldades, seja para rir dela, para escancarar seu absurdo, ou para explicitar o seu horror. A estratégia global destes filmes premiados nos maiores festivais do mundo consistiu em encarar os piores aspectos da contemporaneidade, num período devastado pelos resquícios da Covid-19, e imaginar como este mundo poderia ter sido.
Esta atitude transparece a inteligência dos autores consagrados e dos novos cineastas promissores: ao invés de se limitarem à constatação da realidade, comum a inúmeras obras lançadas desde 2019, preferiram moldar o aspecto mais sombrio do real às possibilidades fantasiosas da ficção. Por isso, a cabeleireira prestes a morrer por inalar muito spray precisará contar com a ajuda de um homem suicida e um arquivista cego para encontrar um filho abandonado em Adeus, Idiotas. Tendemos a rir da improbabilidade das ações — rimos daquilo que, sem o devido distanciamento, seria bastante triste.
Mesmo nos casos em que a morte se faz explícita e se converte em tema central, os diretores optarem por personagens que combatem a finitude ao invés de abraçá-la de maneira fatalista. Apesar da tristeza evidente, Emmanuelle (Sophie Marceau) dá boas risadas com o pai semiparalisado em Está Tudo Bem, e o dramaturgo moribundo (Benoît Magimel) consegue encontrar formas de respiro pelo contato humanizado com médicos em Enquanto Vivo. Os dois protagonistas de Mentes Extraordinárias viajam com um cadáver no carro, confrontando-se obviamente à morte, com bom humor. A ideia aristotélica e clássica de se purificar através dos sentimentos, chorando junto aos personagens, cede espaço a uma perspectiva mais reflexiva.
Os desaparecimentos desempenham um papel semelhante neste contexto. Em Caixa Preta, o principal investigador do desastre (Olivier Rabourdin) some sem deixar vestígios, e em Um Intruso no Porão, a partida misteriosa do vizinho negacionista (François Cluzet) semeia o pânico no edifício parisiense. O musical Tralala consiste basicamente na trama de um homem confundido com outro sujeito que desapareceu há 25 anos, e Pequena Lição de Amor investe na busca por uma menina fugidia que parou de responder às mensagens dos colegas, e não pode ser localizada. Mesmo os garotos de A Travessia são separados dos pais pela guerra, e nunca mais os reencontram.
Em paralelo, os amores soam destinados ao fracasso, prova de que a fuga do real não corresponde necessariamente à sua idealização. O médico corrupto (Vincent Macaigne) de Madrugada em Paris se mostra incapaz de manter o casamento com a esposa e o namoro com a amante; o jovem Lucien (Benjamin Voisin) de Ilusões Perdidas fica sem a mulher mais velha que amava, e sem a nova esposa, ridicularizada pelos demais; a possível união entre dois seres solitários em Titane termina numa tragédia gore. Com exceção notável de Delicioso: Da Cozinha para o Mundo, as demais produções evitam a romantização dos laços sociais.
Este foi o ano adequado para presenciar diretores investindo em registros diferentes de seus estilos habituais, ou fornecendo pontos de vista raros aos exemplares da cinematografia francesa que chegam às salas brasileiras. Philippe Le Guay, diretor conhecido pelas comédias dramáticas, aposta num drama com toques hitchcockianos, enquanto Laurent Cantet, cineasta das instituições, volta-se ao mundo ultraconectado e à lógica do cancelamento de reputações. Depois de tantos retratos sobre a sexualidade feminina elaborados por homens, chegou a vez de as mulheres oferecerem representações ternas ou paródicas da masculinidade em Um Conto de Amor e Desejo (dirigido por Leyla Bouzid) e Pequena Lição de Amor (dirigido por Ève Deboise).
Em paralelo, a tradicional animação do Festival Varilux se voltou à rara técnica da pintura a óleo animada em A Travessia, e o documentário apresentou o estilo muito específico de Yann-Arthus Bertrand, acostumado a observar seus temas literalmente do alto, em modo panorâmico, com Nosso Planeta, Nosso Legado.
Por fim, a 12ª edição do festival exibiu uma seleção de filmes particularmente forte: nem sempre se consegue trazer ao espectador brasileiro o vencedor dos prêmios César, a Palma de Ouro em Cannes, além de cinco filmes exibidos na Croisette francesa. Trata-se de obras ousadas, arriscadas, que não buscam ser consensuais — caso específico de Titane, mas em menor medida, também de Tralala, Arthur Rambo, Ódio nas Redes, Paris, 13º Distrito e Madrugada em Paris.
O evento abraça de maneira mais generosa o cinema autoral, compreendendo a noção de autoria para além do grupo de homens veteranos que dominam as premiações e festivais internacionais. Os “grandes” conviveram com artistas novatos que em nada deveram aos experientes — vide a Palma de Ouro entregue a uma cineasta mulher em seu segundo longa-metragem. Aos poucos, o espectador brasileiro se abre a outro star system: junto aos rostos conhecidos de Catherine Deneuve, Gérard Depardieu, Mathieu Amalric e François Cluzet, acostumamo-nos à imagem de Pierre Niney, Benjamin Voisin, Josiane Balasko, Laetitia Dosch, Vincent Macaigne e Noémie Merlant, cada vez mais presentes nas obras exibidas Brasil afora. Assim, a noção um tanto estreita do cinema francês no imaginário popular se abre a experiências bastante diversificadas.