Há quase 15 anos o Festival Varilux é a principal porta de entrada do cinema francês no Brasil, o seu grande divulgador por aqui. É por meio dele que recebemos (antes das estreias comerciais) obras representativas do melhor da França em termos cinematográficos. Ao longo dos anos, o festival também renovou o seu compromisso com a diversidade, vide a curadoria sempre muito atenta à variedade temática, estilística e de outras ordens. E em 2023 não foi diferente. Várias cidades Brasil afora receberam o evento que, também como de costume, ofereceu ao público a oportunidade de conversar com astros e estrelas que desembarcaram por aqui especialmente para acompanhar sessões, conversar com a imprensa e abrilhantar ainda mais a programação. Alguns aspectos temáticos sobressaíram na edição deste ano. Por exemplo, os personagens idealistas e que também podemos considerar sonhadores. O principal deles é o protagonista de O Astronauta (2023), sujeito que vai contra tudo e todos para tentar alcançar o desejo de ser o primeiro amador a orbitar a Terra num foguete feito no quintal de casa. Semelhante a ele em ímpeto está a personagem principal de O Desafio de Marguerite (2023), uma brilhante matemática que de modo semelhante contraria o senso comum ao tentar o “impossível”. Aliás, em ambos os casos as pessoas precisaram apreender a compartilhar seus sonhos com os outros.
De certa forma, O Livro da Discórdia (2023) também toca no assunto da obstinação pessoal, mas por uma via completamente diferente, a do sujeito empenhado em esconder da família que seu mais novo livro é uma versão ficcional da vida doméstica (e excêntrica) deles. No entanto, essa comédia faz igualmente uma ponte quase insuspeita com certo mal-estar contemporâneo escancarado em Anatomia de uma Queda (2023). E em ambos os filmes temos uma discussão em torno do ato da escrita, da relação nem sempre dócil entre realidade e ficção. Em O Livro da Discórdia, desenvolvido em tom agridoce, temos alguém inserido numa sociedade que premia a celebridade enquanto nem sempre discute profundamente os problemas de natureza grave. Nesse sentido, o protagonista é um homem que perseguiu durante muito tempo a fama, mas que deseja se livrar dela, a partir de algum ponto da trama, porque o sucesso pode significar perda familiar. Já em Anatomia de uma Queda, contado de forma bem mais solene e trágica, a crise é da ordem da verdade ou mesmo das percepções da realidade. Num sentido estrito, ao expor a parcialidade das versões e a porosidade do real, o longa-metragem de Justine Triet também desnuda uma sociedade feita de aparências e na qual os fatos são sempre relativos, subordinados à força da representação. São dois filmes aparentemente em tudo diferentes, mas que se colocados em paralelo nos oferecem possibilidades de ponderação sobre a atualidade.
Esse incômodo contemporâneo é latente em As Bestas (2023), coprodução França/Espanha que tem como protagonista um casal francês vivendo numa vila tradicional espanhola que está prestes a ser descaracterizada pela instalação de painéis solares nas redondezas. De um lado, a tentativa de geração de energia limpa (ótimo para um planeta tão devastado pela exploração de recursos naturais). Do outro, os efeitos dessa alternativa progressista na paisagem que será adulterada (física e culturalmente falando) para o surgimento desse novo “adequado”. Pode-se compreender o personagem principal que resiste às imposições do progresso como outro idealista/sonhador, assim sendo semelhante ao cineasta de Making Of (2023), alguém que luta contra o conformismo do “as coisas são assim e pronto” para conservar a sua integridade artística. Culpa e Desejo (2023) traz à tona uma polêmica que ajuda a chacoalhar determinados assuntos igualmente muito em voga, com seu paradoxo envolvendo uma advogada especializada em violência sexual contra menores que se envolve com um garoto muito mais jovem. Nessa toada de radiografar o hoje, Meu Novo Brinquedo (2023) pinta com tintas cômicas as diferenças de classe e a ideia de que é preciso combater ferrenhamente os abismos sociais para que os ricos não tenham poderes ilimitados e os pobres se submetam às desumanidades para sobreviver.
Outros pontos relevantes que permearam o 14° Festival Varilux do Cinema Francês foram as crises interpessoais. Vários filmes da seleção tocaram na dificuldade de comunicação entre pessoas e/ou grupos em certo momento antagônicos. Conduzindo Madeleine (2022) mostra um taxista e uma passageira de passado conturbado aprendendo a ouvir e se colocar à disposição do outro. Já Crônica de Uma Relação Passageira (2023) toca no sempre interessante tópico do relacionamento amoroso, das dores e delícias de ter um envolvimento romântico. Na trama, dois personagens decidem que terão conexão apenas sexual. Mas, quem disse que a gente controla todos os aspectos do (próprio) discurso amoroso, não é mesmo? Em Maestro(s) (2022) a dificuldade é de foro familiar, com pai e filho tentando juntar os cacos de uma ligação há muito deteriorada, em busca de reaver a comunicação de antigamente. Enfim, o que conseguimos detectar a partir da curadoria do 14° Varilux foi a atenção dos cineastas franceses a questões muito fervilhantes em nossa sociedade, apresentadas de maneiras distintas (comédias, dramas, thrillers, animação, etc.) que, assim, oferecem um painel muito interessante da cinematografia francesa feita hoje. Mantendo o seu compromisso com as salas de cinema, com os encontros presenciais num mundo tão virtual, o evento renovou com louvor a sua relevância e abriu caminho à próxima edição, a comemorativa de 15 de atividades no Brasil. Estamos bem ansiosos.
:: COBERTURA COMPLETA DO 14° FESTIVAL VARILUX ::
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